NAS ONDAS DO DESEJO
O carnaval sob o prisma de uma pernambucana no Rio de Janeiro
Publicado em 02/2021
O título que escolhi pra o zine, é o nome de uma das primeiras músicas de carnaval que despertou meu corpo miúdo de criança, fervendo ele inteiro nas ruas do Recife. Uma espécie de frevo-axé com caboclinho, levadas de samba-reggae, batidas de maracatu e um sacolejo de ciranda, uma mistura de gêneros que eu juro, faz bastante sentido e compunha as melodias dos grupos musicais famosos do carnaval pernambuco nos anos 90. O tempo passou, os estilos musicais foram mudando mas uma coisa permaneceu merminha que igual: chega fevereiro e o corpo vibra intenso nas ondas do desejo, seja nas ladeiras de Olinda, nas noites suadas do Recife Antigo, chegando na Marechal Âncora ou mesmo dentro de casa, em plena pandemia. Feito um despertador que não atrasa e nem perdoa, 1m60cm de gente se queima todinha quando o carnaval é pronunciado, ainda que seja pra ser traduzido em palavras, fotografias ébrias de qualidades duvidosas, memórias e uma caipirosca de seriguela pra molhar a palavra, porque estamos privadas do arêrê mas seguimos vivinhas.
Costumo brincar que o carnaval formou meu caráter e, por mais tiração de onda que seja, tem um fundo danado de verdade. O ano era de 1997 e minhas fantasias já estavam prontas, todas feitas de papel crepom, uma cor por dia. Fui empolgada mostrar pra minha mãe e, em um fuxico de conversa entre ela e meu pai, pesquei que “esse ano nem o Jaca Mole e nem o Jaca Dura vão sair. Só o Jaca Mé vai ter apoio da prefeitura”. Só pra contextualizar: Jaca Mole e Jaca Dura eram os blocos mais populares do meu bairro, Aldeia, uma região com muito pé de jaca. E o jaca Mé era o bloco de elite - tinha até banho de espuma - e o único que teria apoio financeiro naquele ano. Aquilo virou um burburinho da bixiga e ligeiro meus pais se articularam com outros amigos, com donos de botecos da área e, juntos, fizeram os Jacas do povão saírem, com trio elétrico, banho de mangueira e discurso esculhambando o prefeito em um microfone pra todo mundo ouvir. Meu pai quase saiu preso, de bandana e abadá. Esse foi o mesmo carnaval em que pintamos de amarelo pastel, com estrelinhas coloridas e outras lombras, a caminhonete lá de casa. Enfeitamos a rural todinha e até no Galo da Madrugada a bichinha se enfiou. Avalie que em uma mesma semana eu ajudei a pintar um carro, vi dois blocos serem colocados na rua em tempo recorde com engajamento coletivo e ouvi o prefeito sendo esculhambado publicamente por não beneficiar os menos favorecidos. Se isso não é formação de caráter, me diga então o que é!
O Frevo de Olinda x As marchinhas do Rio de Janeiro
“Tu preferes o carnaval de Olinda ou do Rio? É muito diferente?” Uma pergunta que escuto todo ano, tanto do povo de Recife querendo vir, quanto da galera do Rio querendo ir.
O primeiro carnaval que passei de verdade no Rio, estava completamente desacreditada em ter alguma alegria sincera. Havia terminado uma relação há pouco e estava localizada no famoso point Na Merda. O óbvio seria pegar o primeiro avião com destino à felicidade e afugentar minha tristeza nas ladeiras de Olinda, dançando um frevo rasgado e enchendo a cara de Axé de Fala* com as amigues mas o preço altíssimo da passagem não permitiu e só restou a opção de me jogar por aqui mesmo. E eu me joguei, visse? Cuspi pra cima, pois foi um dos melhores carnavais da vida.
Já no primeiro dia, consegui entender as principais diferenças na dinâmica daqui e de lá para além das músicas. De cara, a montação nos looks e os registros. O povo aqui sai bem montado e, do nada, uma câmera profissional pode brotar, te fotografar e você tá lá no insta famosinho, onde um bocado de gente vai ver . É um hit esse negócio por aqui. Até hoje me pergunto se isso, de alguma forma, não atrapalha a espontaneidade da coisa toda. Por que carnaval pra mim sempre foi sobre estar toda cagada, borrada e anônima. Mais uma na multidão. Por outro lado, é massa demais ter umas fotos lindas de presente pra posteridade. Em Olinda até tem montação mas não tem essa cultura dos registros audiovisuais profissionais feitos por alguém da galera. É meio 8 ou 8000. Ou é foto de celular ou corre o risco de sair na TV, ao vivo, e os coroa em casa assistindo teu beijo em close estadual. Quem nunca apareceu na TV Jornal em situação constrangedora que atire a primeira serpentina.
Aqui no Rio, enquanto mulher, mesmo saindo sozinha de casa, me sinto segura. Uma vez que você chega no local, é certeza que, mesmo sem combinar, só fica só se quiser, porque sempre vai pintar alguém conhecido e quando viu, já tá em um bonde e depois em outro e se perde e se acha e aquela delícia toda, gostosa demais. Até quando eu quero me perder, brota alguém com uma piriguetinha 3 por 10 de presente falando “tu paga a próxima”. Tá todo mundo ali naquele bloco. Uma bolhona. Um grande casulo voando junto. E até que esse momento acabe e a gente migre pra outro, é um local seguro pra ser e estar. Mesmo semi-nua, mesmo mulher, mesmo sozinha. O negócio é colar com alguém que tá por dentro dos rolês quando o bloco der sinais de últimos suspiros, pra seguir em bando e em segurança. Até porque na maioria das vezes envolve pegar táxi, caminhadas longas e pausa pra refeição.
Em Olinda não. Em Olinda não tem isso de certezas, planilhas, grupos de whatsapp com localização em tempo real ou restaurante. Também não existe bloco secreto da galerinha: a programação (gigantesca) sai previamente e é acessível pra todo mundo, não vai privar, desviar, mudar de nome e trolar ninguém – vai quem quer e provavelmente vai tá muito cheio sim. Também não existe pegar táxi no meio da onda boa. E nem fazer uma caminhada gigantesca até o próximo beijo na boca. Tá tudo posto. Em Olinda é uma grande confusão absolutamente organizada, caótica, espantosamente maravilhosa e tudo acontece ali, de manhã até de madrugada, se tiver disposição. Todo mundo que pula carnaval está no mesmo local, ao mesmo tempo: rico, pobre, preto, branco, as gay, as hétera, adulto e criança. Dezenas de ladeiras e ruelas se cruzando e se abraçando. Não faço ideia de como mas cabe todo mundo, bem juntinho, misturado e tantas vezes num apertado danado. Mas tem brisa! E tem mar. E belos coqueiros. E água de côco direto do côco por dois reais. E um prato de macaxeira com charque do lado da barraquinha que vende roska de cajá, caju e seriguela. O sumo do prazer. A cerveja, bem diferente do Rio, costuma ser quente mesmo, não vou mentir. Os ambulantes de lá têm muito o que aprender com os daqui.
Sobre os bloquinhos da galera, mais vazios e tranquilos, eles até existem… Só que até chegar nele, tu já cruzasse com dezenas de outros blocos aleatórios com orquestras maravilhosas que podem e provavelmente vão te seduzir e te carregar. Por que tem isso, a qualidade sonora das orquestras é altíssima. O som é absurdo de bom e muito alto, é uma ruma de profissionais tocando. O folião que tá colado na banda até o do fundão, vai frevar gostoso com os metais afiados e afinados. Todos os blocos acontecendo simultaneamente no mesmo local – gigante. Ah, a gente chama bloco e não cortejo.
E a gente não fica 12h no mesmo cordão percorrendo a cidade inteira feito é no Boitolo ou Tecnão, que tu podes começar na Praça XV e terminar no Leme. Ou concentrar na Praça da Bandeira e do nada invadir a sapucaí. Descer e subir escadarias com cuidado pra não derrubar o boyzinho da frente. Se relar todinha no muro da subida pra o Morro da Conceição pelo bequinho que tem na Pedra do Sal. Atravessar à pé, em multidão, um túnel que tu só passa de carro o restante do ano. Perder a voz cantando em uníssono pela oitava vez que nós é que bebemos e eles que ficam tontos bem na hora que tá passando em frente ao seu trabalho, ou ser buscada na porta de casa com uma orquestra. É muito sobre isso. O carnaval do Rio é se reconectar e reapaixonar pela cidade, percorrendo ela inteirinha com uma outra perspectiva. Uma lupa bonita demais. E ai em algum momento tu pensa: beleza, Rio, tu me maltrata o ano inteiro mas olha que beleza que é se amar pendurada no Theatro Municipal.
O carnaval de Olinda é uma doideira, democrático, pra todes, belíssimo, imenso e, acima de tudo, catártico. Como nada que eu já tenha vivido.
Bom mesmo seria pegar o boitolo embaixo do MAM, cruzar um portal e encontrar com o Boi da Macuca, já virando a esquina dos Quatro Cantos, num poropópó só.
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Fomos ensinadas a jogar o corpo no mundo e agora temos que recolher cada pedaço, lidar com os incêndios no peito, permanecer no interior de poucas paredes e em companhia de uma ou outra pessoa. Solidões compartilhadas e a certeza de saber que, seja lá quando for, a gente vai fazer uma festa ainda maior, mais bonita, brilhosa e intensa. “A nossa sorte é que a gente é alegre”, me disse meu amigo Thales um dia desses. Precisei concordar. Mesmo no meio dessa agonia, a alegria às vezes vem sem nem ser chamada. Sem cabimento algum, ela vem.
E ela há de vir violenta esticando cada sorriso que o tempo nos tirou.
Encerro este relato com um trecho da canção do título, que a gente cantou tantas vezes mais alto que aqueles coqueiros de minha terra, entre uma golada e outra, um xêro e outro, uma saudade e tantas presenças, rindo e chorando:
“À beira mar quero que a solidão
Olhe prá nós e sinta-se sozinha
A se acabar o coração me dói
Quando estou só nas ondas do desejo, a navegar... “
*Axé de Fala, popularmente conhecida por Axé, é uma bebida que tem berço na África e em Olinda fez residência. Composta por água ardente, mais de 12 ervas e finalizada com semente de guaraná e mel.
Anette Alencar é jornalista formada pela UNICAP, fotógrafa e integrante do I Hate Flash, professora de Frevo @ No Pique do Frevo, DJ de brega e produtora da Festa Xêpa, cozinheira e produtora de conteúdo na Cumbuca Sem Pantim.