Abre (F)alas - Transfobia
Apesar das particularidades, a trajetória das pessoas trans se aproxima quando o assunto é a transfobia
Publicado em 02/2017
Carnaval. Alalaô. Que calor. Confete. Serpentina. Marchinha de manhã. Samba de tarde. Funk de noite. Colombinas, pierrôs, bruxinhas e palhaços. Tudo pode, tudo é diversão. Só que não. Além da alegria da folia, o Carnaval é época onde a liberdade bate de frente com todas as formas de opressão, aquelas que já nos acompanham ao longo do ano e se fantasiam de lobo em pele de cordeiro para sambar até o amanhecer, já que "nesses quatro dias, tudo é permitido" - mas nem tudo.
Para chamar atenção para as formas de opressão que se tornam corriqueiras durante a folia de Momo, botamos na rua o projeto "Abre (F)alas - Nós vamos passar". Esta série de zines abre espaço para a fala de pessoas que sofrem diversas formas de abuso e suas histórias, sejam elas de machismo, lesbofobia, racismo, homofobia ou transfobia. Um ensaio fotográfico sem fantasias ou adereços nos lembra que por debaixo das fantasias, camadas de glitter, tule e paetês estão pessoas que devem ser respeitadas na folia e fora dela.
Nos zines anteriores, abordamos o machismo (aqui), a lesbofobia (aqui), a homofobia (aqui) e o racismo (aqui). Hoje abrimos espaço para falar sobre transfobia. O Brasil é o país que mais mata mulheres transexuais e travestis e também o que mais consome produtos pornográficos que exploram transexuais e travestis. Ser trans não é usar saia de tule ou bigode de canetinha para sair em blocos de rua.
Por Eloá Rodrigues
Relatos de transexuais e travestis que sofreram algum tipo de transfobia no Carnaval. Por mais que sejam feitos por pessoas com realidades, vivências e experiências de vida bem diferentes, essas histórias, muitas vezes, seguem o mesmo caminho em algum momento. E temos algumas razões para isso.
Vivemos em uma sociedade extremamente machista e hipócrita que incentiva a obsessão pelo falo e, por outro lado, executa um papel misógino. O Brasil é um dos países mais inseguros para a população LGBT, é o país que mais mata mulheres transexuais e travestis e também o que mais consome produtos pornográficos que exploram transexuais e travestis.
Por mais que tenham origens, particularidades ou privilégios, a trajetória das pessoas trans se aproxima quando o assunto é a transfobia. Conversando com os personagens deste Abre (F)alas, pude notar que as experiências de assédio, violação de direitos ou outros tipos de agressões, simbólicas ou não, continuam sendo uma realidade muito presente, que ganha força nesta época do ano.
Joana Couto tem 26 anos, é modelo, artista visual e mulher transexual que sempre gostou de Carnaval - e morar no Rio de Janeiro só a deixou ainda mais próxima da folia. Mas ela confessa que, nos últimos anos, tem aproveitado menos. "As pessoas se soltam. A transfobia fica muito mais naturalizada dentro do Carnaval - assim como tudo, parece que no Carnaval tudo pode", conta.
Joana tem uma passabilidade cis, o que significa que ela "passa por" uma mulher cisgênero - em outras palavras, a sociedade a enxerga como uma pessoa cujo gênero é o mesmo designado em seu nascimento. Mas Joana reconhece que, quando assume sua real identidade, as pessoas tendem a manter um distanciamento - principalmente os homens. Entretanto, ela nunca teve problemas em relação à ocupação de espaços ou agressões físicas, mas afirma que piadinhas e deboches fazem parte da rotina - por mais que ela não questione essas atitudes no meio da folia para evitar desgastes.
No último Carnaval, uma menina foi elogiá-la e disse que ela era muito bonita. Quando agradeceu o elogio, veio a pergunta: "Ué, você é homem?". E a resposta certeira de Joana logo em seguida: "Onde é que você está vendo homem aqui? Você que está sendo transfóbica, não sou eu que sou homem". "Ela ficou toda desconcertada e pediu desculpas. Só porque ela percebeu, a partir da minha voz, que eu era trans, ela quis me desmoralizar e me desmontar, como gênero e como pessoa. Parece bobo, mas é muito grave isso", ressalta.
Por ser privilegiada em alguns aspectos de sua vida (privilégios reconhecidos por ela mesma), a modelo acredita que consegue driblar mais facilmente as questões cotidianas com a ajuda de sua família. Mesmo não tendo muitas referências de militância ou questões de gênero na infância, Joana afirma que buscou dentro de si mesma a inspiração para descobrir quem realmente era.
O sotaque de Naomi Savage logo entrega: a mulher trans de 35 anos nasceu em Belo Horizonte - e por lá não gostava de Carnaval. Mas antes mesmo de qualquer identificação feminina, já curtia alguns momentos de festas como drag queen - e chegou até a vencer um concurso de drags bafas de BH, em 1999.
Em 2014, se mudou para o Rio de Janeiro e em 2015 firmou união estável com o Carnaval. Na época, Naomi trabalhava como profissional do sexo, mas conseguiu curtir um pouco e percebeu que aquela energia era aquela com a qual se identificava. O amor pelo Carnaval fala mais alto e nem as risadas e insultos que escuta ou os relatos de agressões físicas a impedem de curtir os blocos de rua. "Sou uma menina louca que adora a noite", conta, empolgada.
Mesmo sendo uma mulher trans negra, pobre e sem passabilidade cis (detalhe que não a incomoda nadinha), a modelo relata que a maior opressão que sofre é o machismo. Naomi conta que, mesmo nas situações em que sua presença "impõe medo", as opressões continuam e até se fortalecem, mas não há barreira que impedirá ela e as outras meninas transexuais e travestis de ocuparem todos os espaços aos quais têm direito. "O que ainda falta muito para as pessoas é o respeito pelo próximo. E no Carnaval as pessoas perdem completamente o respeito pelo próximo, acham que tudo é festa, e acabam acontecendo coisas que não deveriam acontecer", pontua.
Até o dia desta entrevista, Naomi não tinha sofrido nenhum tipo de agressão física. Mas naquela mesma semana a situação mudou. No dia 18 de fevereiro, ela e uma amiga voltavam para casa depois de um festa, por volta das 5h40, quando foram surpreendidas por homens transfóbicos com muito ódio e acusadas de roubo - coisa que elas não fizeram. Durante a confusao, Naomi conseguiu entrar em um táxi para proteger sua integridade física, mas o próprio taxista a entregou para os homens, que a agrediram com socos e chutes e proferindo palavras de ódio. Mais um caso de transfobia gratuita nesta época do ano. Felizmente, Naomi e sua amiga passam bem.
"Falar de si é como se pôr em uma caixa." Foi assim que o cantor, empresário e homem transexual Kaique Teodoro, de 22 anos, começou a nossa conversa. Ele cai na folia desde a infância e sempre curtiu muito, pois nunca sofreu nenhuma imposição para suas fantasias e escolhia aquelas ditas como "para meninos". Mas, com o passar do tempo, as exigências foram aumentando, assim como o assédio e o desconforto de estar em certos lugares. O machismo é uma das opressões mais fortes que sofre, mas ele encontra refúgio e amparo nos familiares e amigos.
A transição do jovem cantor rolou na adolescência e a satisfação pessoal chegou mais rápido. Por isso, se considera um privilegiado. Kaique também conquistou a passabilidade, mas os insultos e piadas não dão trégua. "As pessoas dão as costas para uma travesti ou para um homens trans. As músicas, algumas marchinhas de Carnaval mesmo, são transfóbicas. E homofóbicas também. Nunca consigo me sentir totalmente livre no Carnaval, acho meio hostil. Usar o banheiro, no caso do homem trans, é horrível. Não saber se eu posso chegar em uma pessoa, por exemplo. Sempre fico com uma pulga atrás da orelha de não saber como a pessoa vai me tratar quando descobrir que eu sou trans", conta.
Depois de conversar com todos os personagens escolhidos, percebo que, independente das particularidades, a transfobia que sofrem não chega nem perto do machismo. Isso é fruto da sociedade patriarcal e machista da qual fazemos parte. Quando opressores se deparam com pessoas que de fato vivem sua liberdade, sentem a necessidade de expressar seu ódio.
O que vamos fazer para mudar a realidade dessas e de outras pessoas que sofrem transfobia depois de ler este zine? Vamos continuar só observando de braços cruzados? Ou de fato tentaremos combater qualquer tipo de opressão que cruzar o nosso caminho no dia-a-dia?
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Eloá Rodrigues é mulher transexual com identidade travesti, negra, pobre, transfeminista, modelo, atriz e escritora. Apaixonada pelas artes e, principalmente, pelo Carnaval.
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Direção criativa: Brena O'Dwyer, Derek Mangabeira e Victor Curi
Edição: Beatriz Medeiros
Fotografia: Juliana Rocha
Styling: Nathalia Gastim
Beleza: Barbara Bosque
Repórter: Eloá Rodrigues
Produção: Jeanne Yépez
Vídeo
Direção, edição e som: Calí dos Anjos
Câmera: Lívio Leite
Cor: Alexandre Marcondes
Agradecimentos: Lab Collection