Abre (F)alas - Homofobia
Queremos respeito não só no Carnaval, mas no ano inteiro
Publicado em 02/2017
Carnaval. Alalaô. Que calor. Confete. Serpentina. Marchinha de manhã. Samba de tarde. Funk de noite. Colombinas, pierrôs, bruxinhas e palhaços. Tudo pode, tudo é diversão. Só que não. Além da alegria da folia, o Carnaval é época onde a liberdade bate de frente com todas as formas de opressão, aquelas que já nos acompanham ao longo do ano e se fantasiam de lobo em pele de cordeiro para sambar até o amanhecer, já que "nesses quatro dias, tudo é permitido" - mas nem tudo.
Para chamar atenção para as formas de opressão que se tornam corriqueiras durante a folia de Momo, botamos na rua o projeto "Abre (F)alas - Nós vamos passar". Esta série de zines abre espaço para a fala de pessoas que sofrem diversas formas de abuso e suas histórias, sejam elas de machismo, lesbofobia, racismo, homofobia ou transfobia. Um ensaio fotográfico sem fantasias ou adereços nos lembra que por debaixo das fantasias, camadas de glitter, tule e paetês estão pessoas que devem ser respeitadas na folia e fora dela.
Hoje abrimos espaço para falar sobre homofobia. Ser gay não é piada ou esquete de humor.
Nos zines anteriores, abordamos o machismo (aqui) e a lesbofobia (aqui).
Com a colaboração de Vitória Régia da Silva
No Carnaval, o homem gay fica confinado ao lugar de menos respeito e mais humor. O editor de cinema e TV Marlon Peter enxerga essa realidade e pontua que “o gay virou uma caricatura no Carnaval. É piada o ano inteiro, mas no Carnaval as pessoas se sentem mais livres de te ofender e explorar a sua imagem”. Marlon ainda completa: “se você foge da heteronormatividade, as pessoas já te olham de maneira caricata. Se você for gay e tentar se colocar de outra forma, já ofende as outras pessoas”.
Queremos respeito não só nesses quatro dias de festa, mas no ano inteiro.
Marlon tem 25 anos e conta que cresceu vivendo o Carnaval, principalmente o das escolas de samba, frequentado por sua família há muitos anos. Recentemente, seu pai presidiu a Caprichosos de Pilares e o próprio Marlon trabalhava na assessoria de imprensa de outra agremiação. “Ficamos cinco anos direto vivendo e respirando o Carnaval”, lembra. Hoje ele divide sua agenda carnavalesca entre os blocos de rua e Sapucaí. No meio das escolas de samba, além de ter um cargo alto, conhecia todo mundo. “As pessoas me tratavam diferente de alguma forma e isso me incomodava. Enquanto no bloco eu era só mais um. Gosto dessa liberdade, me sentia muito mais à vontade”, afirma.
Segundo Marlon, quem circula entre as quadras, barracões e a Sapucaí lida com o machismo e a homofobia de forma generalizada. Apesar do discurso de aceitação usado por muitos, na prática é diferente. “Me respeitam pela minha posição, mas não respeitam o gay do barracão. As escolas de samba são compostas, basicamente, por mulheres e gays. Os gays, normalmente, estão na parte mais criativa. Na área burocrática, você vê mais a heteronormatividade”, pontua.
Como um homem negro e gay, Marlon sofre com homofobia e também com o racismo. Seu corpo é fetichizado e sexualizado o tempo todo, o que gera a constante busca de afeto do homem negro para além da sexualidade. “ A gente percebe diferenças no tratamento. Quando comecei a frequentar o Carnaval de rua, lembro que ia para a Farme de Amoedo (rua de Ipanema muito querida pela comunidade LGBT) e, por ser negro, me olhavam de uma forma mais sexualizada, faziam piadinhas sobre meu pênis", recorda.
Maria Eugênia Linhares de Oliveira dos Reis, ou só Marie, como prefere ser chamada, tem 23 anos e começou a ir em blocos carnavalescos com a mãe, ainda pequena. Aos 12 anos, já ia para a folia sozinha. Um dos motivos pelos quais o Carnaval a conquista é a liberdade que essa época oferece para exercer sua cratividade, mas destaca que ser mulher, negra e lésbica é difícil e que o assédio está sempre presente. "Ser mulher no carnaval é bad, os caras chegam achando que você é propriedade deles”, afirma.
A homofobia é uma forma de opressão que tem recortes específicos, entre eles, o de gênero, que faz com que mulheres lésbicas sofram com a lesbofobia, que une a homofobia e o patriarcado. No Carnaval, a mulher negra lésbica é hiperssexualiada e os casos de racismo não são poucos. Sempre que está acompanhada por outra mulher, por exemplo, Marie conta que os homens ficam pedindo beijos e tentando fazer parte da relação. Reflexos de uma sociedade machista, racista e lesbofóbica.
A lesbofobia já fez com que Marie sofresse diversas agressões verbais no Carnaval, mas um caso de agressão física em 2014 ficou na sua mente. "Estava em um bloco, em Ipanema, com a minha namorada na época. Um homem hetero viu que estávamos juntas e, quando fui comprar cerveja sozinha, ele me pressionou contra a parede para tentar me beijar. Eu falei que não queria, comecei a gritar e meus amigos tiveram que tirá-lo de cima de mim. Depois disso, o meu dia acabou, voltei para casa logo depois, traumatizada”, recorda. Na cabeça, as frases do agressor ecoaram por muito tempo: " Você não sabe o que é bom”, “Você não sabe o que é transar com um cara de verdade”. Na verdade, Marie sabe exatamente o que quer e gosta: respeito.
William Kahlo nasceu na Paraíba há 26 anos, mas se mudou para o Rio de Janeiro pouco depois de seu primeiro aniversário. Sua relação com o Carnaval é relativamente nova, já que, até os 20 anos, era muito religioso e não gostava da folia. Atualmente, diz que "não vive", mas curte o Carnaval.
Há alguns anos, William conheceu a dança afro, hoje uma de suas grandes paixões e objeto de estudo. Foi através dela que o jovem estudante de moda conheceu o Carnaval e descobriu e se empoderou do seu corpo. Desde então, William frequenta poucos blocos, com preferência por aqueles que valorizam as tradições e influências africanas. "No Carnaval, o homem gay tem uma representação cômica e satirizada, falta respeito, mas sobra humor. Já sofri várias agressões verbais e presenciei agressões físicas contra homossexuais algumas vezes. Os homens héteros acham que estão perdendo espaço e nossa presença os incomoda", afirma.
Cada um dos entrevistados tem uma relação diferente com o Carnaval, mas o que têm em comum é a busca para se sentirem respeitados dentro e fora da folia. Por enquanto, um caminho é buscar blocos menores e com pautas relacionadas à questão LGBT. Mas ninguém deveria ser impedido de circular em nenhum ambiente por nenhum motivo referente à religião, raça, cor, gênero ou orientação sexual.
Infelizmente, o Carnaval (ainda?) não é diferente do resto do ano, mas a homofobia não pode nos impedir de aproveitar a festa. Seremos livres para vestir, agir e nos relacionarmos com quem quisermos - e mesmo os que não quiserem vão ter que nos aceitar. Nós resistiremos. Lutamos para ter nossa sexualidade validada e respeitada todos os dias - com purpurina ou sem.
Vitória Régia da Silva é estudante de jornalismo e escritora. Mulher negra e bissexual, atualmente é uma das editoras da Revista Capitolina e colaboradora em outros sites. Ama o Carnaval e já está com sua fantasia de unicórnio pronta para o deste ano.
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Direção criativa: Brena O'Dwyer, Derek Mangabeira e Victor Curi
Edição: Beatriz Medeiros
Fotografia: Juliana Rocha
Styling: Nathalia Gastim
Beleza: Piu Gontijo
Repórter: Vitória Régia da Silva
Produção: Jeanne Yépez
Vídeo
Direção e edição: Calí dos Anjos
Câmera: Lívio Leite
Som: Marta Lopes
Cor: Alexandre Marcondes