Abre (F)alas - Machismo
No Carnaval, nem tudo é brincadeira e purpurina
Publicado em 02/2017
Carnaval. Alalaô. Que calor. Confete. Serpentina. Marchinha de manhã. Samba de tarde. Funk de noite. Colombinas, pierrôs, bruxinhas e palhaços. Tudo pode, tudo é diversão. Só que não. Além da alegria da folia, o Carnaval é época onde a liberdade bate de frente com todas as formas de opressão, aquelas que já nos acompanham ao longo do ano e se fantasiam de lobo em pele de cordeiro para sambar até o amanhecer, já que "nesses quatro dias, tudo é permitido" - mas nem tudo.
Para chamar atenção para as formas de opressão que se tornam corriqueiras durante a folia de Momo, lançamos hoje o projeto "Abre (F)alas - Nós vamos passar". Usando o Carnaval como recorte para falar de machismo, lesbofobia, homofobia, racismo e transfobia, esta série de zines abre espaço para a fala de pessoas que sofrem essas formas de abuso e suas histórias. Um ensaio fotográfico sem fantasias ou adereços nos lembra que por debaixo das fantasias, camadas de glitter, tule e paetês estão pessoas que devem ser respeitadas na folia e fora dela.
O machismo abre esse desfile, com a esperança de encontrarmos menos opressão quando chegarmos na Apoteose.
Por Brena O'Dwyer
Toda a permissividade pode disfarçar violências. A aparência de um palco de padrões morais suspensos pode esconder estruturas que permanecem e outras novas que são criadas. A produtora cultural Luiza Nasciutti explica que toda essa tolerância impede o "não". Uma violência disfarçada que vai além do assédio óbvio. "Ah, é Carnaval! O que custa um beijo?" Custa vontade. Que liberdade toda é essa se a gente não pode dizer "não"?
Mas a gente quer participar, se divertir.
Luiza me descreve um sentido bastante próprio de estar na rua. Ela vai andando e andando, atrás da banda, de repente, na frente da banda, às vezes sem nem saber cadê a banda. Olha pro lado e percebe que está bem no centro da cidade, mas sem documentos, compromissos, sapato social. Um efeito que só é possível nesta época do ano: o Carnaval. A rua é totalmente diferente quando não é só passagem. Uma forma de estar presente. E ela ama o Carnaval, ama se perder, se arrumar, purpurina é coisa séria. “É o único momento do ano em que é autorizado brilhar infinitamente”, diz. Para Luiza é um estado liminar: as pessoas ficam mais tolerantes, menos irritadas, o suor, o fedor, o esbarrão e até o trânsito ficam mais compreensíveis. A cidade se mobiliza.
Nem tudo é brincadeira e purpurina.
Um dia num bloco, enquanto ela dançava, um amigo-de-um-amigo diz para ela fazer logo um topless, explorar toda essa liberdade. Liberdade coisa nenhuma, a norma do assédio permanece. Apenas mais um cara que acha que pode mandar nela. Além disso, Luiza é lésbica e esse beijo entre duas mulheres muitas vezes é visto como um convite, como se fosse para seduzir. E claro que é, afinal, um beijo seduz, mas não o respeitável público. O ponto final é a outra boca sendo beijada, ninguém te chamou. Mas existem estratégias e ela não deixa de curtir. Vai sempre equipada para espantar os caras, arminha de água é uma ótima. Cada uma tem seus jeitos.
Fabiana Pinto, de 21 anos, morava com a família em Nilópolis, cresceu perto da Beija-Flor e, vendo todos os "esquemas", não gostava de escola de samba. Mas amava a música, a bateria e queria participar da festa.
Em um bloco que desfilava por Ipanema no meio do Carnaval, decidiu atravessar a multidão com uma amiga e alguém tinha que ir na frente. Foi então que vários homens fizeram um corredorzinho, mas tinha pedágio para passar e um deles agarrou sua amiga. Depois desse dia, começou a tocar na bateria do bloco Sargento Pimenta, que toca músicas dos Beatles no Aterro do Flamengo. Tocar no bloco foi uma forma de curtir sem medo, sem confusão, sem um monte de homem em cima e passando a mão.
Não é só machismo, mas também racismo. Em outro carnaval, Fabi estava na Lapa, de madrugada, voltando de um bloco e queria fazer um lanche. O lugar estava cheio de gringos e um deles perguntou "quanto ela cobrava para ir no motel". A amiga branca passou incólume dessa proposta. Pediram o lanche para viagem e comeram em casa. O corpo da mulher negra é quantificável. "Qual seu valor? Quanto você cobra?" Essa não é nenhuma invenção do feriado, o Carnaval só escancara.
Fabiana conta que parte do processo de aprendizagem é passar a ter desenvoltura para lidar com essas coisas. Agora ela vai sempre em grupos maiores, rodeada por pessoas que querem se divertir, formando uma rede.
O Carnaval pode ser um momento de liberdades, uma abertura pode ser boa ou ruim. E a gente precisa fazer parte para ajudar a definir isso.
A economista Camila Callegario, de 28 anos, começou a frequentar blocos na época da retomada do Carnaval de rua carioca, lá por 2008. Ia a todos os blocos no eixo Centro-Zona Sul, ia até não aguentar mais. Hoje anda um pouco cansada. "Não tem como falar de Carnaval sendo mulher e não falar de assédio", pontua. Nesta época há um conflito claro: de um lado a libertação sexual feminina, "meu corpo minhas regras", "eu sou dona de mim", e de outro, o assédio e a objetificação. O Carnaval é uma arena.
Ter controle sobre si própria, estar mais livre, mais pelada e mais segura com si mesma não evita o desrespeito masculino. Essa ideia do empoderamento baseado em si própria, no corpo, no individual, em se sentir poderosa consigo mesma não é suficiente. É necessária a mudança de poder nas relações. A libertação feminina não pode ocorrer só no âmbito individual. A liberdade tem que estar no coletivo.
Camila não tem mais paciência para passar por esse tipo de assédio. Além disso, é lésbica, então são duas pessoas para se preocupar. Ela e Marcela, sua namorada, não têm disposição para entrar num embate.
Medo é um sentimento que acompanha as mulheres. No ambiente do Carnaval, isso se torna ainda mais palpável por conta da ideia de inconsequência, de que é um momento em que tudo pode. A festa profana, livre, sexual, ativa. Camila gosta desses momentos, mas no Carnaval não vai mais, e explica que estamos perdendo essa luta se o resultado é o abuso. "As mulheres mudam a relação com si mesmas, com os próprios corpos, com outras mulheres e com os homens, mas os homens não mudam em relação às mulheres", afirma.
Claro que essas questões não são próprias da Quarta-feira de Cinzas, mas no Carnaval a arena está posta. Uma questão da vida das mulheres: querem ser livres, se sentirem lindas, celebrar suas vidas, seus corpos, mas, quando vão para a rua, são assediadas. A liberdade sexual tem que ser boa para as mulheres e não um serviço à vontade do homem.
No final da nossa conversa, Camila conta que o plano é voltar a frequentar o Carnaval quando achar que vai ter espaço, que vai ser mais tranquilo. Para ela, é importante ocupar os espaços. E eu espero que ela volte, justamente porque estamos nesta arena de disputa. A rua e a festa não são - e não podem ser - privilégio de ninguém. Reivindicar todos os espaços, inclusive o banquete, porque a gente precisa se divertir e juntas somos mais fortes.
- Luiza Nasciutti é produtora cultural e estuda a vivência das mulheres na Vila Autódromo. Para ela, fantasia é coisa séria e Carnaval é maravilha.
- Fabiana Pinto tem 21 anos e cresceu na Baixada Fluminense. Apaixonada por batuques, é escritora e estuda saúde coletiva. Atualmente, colabora para a Revista Capitolina e para a NOO mag.
- Camila Callegario, 28 anos, carioca, economista, trabalha como analista de orçamento público. Interessada em política, rolézinhos e novidades.
- Brena O’Dwyer é antropóloga e escritora, co-fundora da revista Capitolina e colaboradora da Alpaca Press e do Mulheres que Escrevem. Ama o Carnaval e não dispensa uma fantasia.
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Direção criativa: Brena O'Dwyer, Derek Mangabeira e Victor Curi
Edição: Beatriz Medeiros
Fotografia: Juliana Rocha
Styling: Bruna Sussekind
Beleza: Piu Gontijo
Repórter: Brena O'Dwyer
Produção: Jeanne Yépez
Vídeo
Direção, som e edição: Calí dos Anjos
Câmera: Lívio Leite
Cor: Alexandre Marcondes
Agradecimentos: Solv Store, Aro Swimwear e OS/ON