Abre (F)alas - Racismo
Para vítimas do preconceito diário, o Carnaval são só mais quatro dias entre os 365 do ano
Publicado em 02/2017
Carnaval. Alalaô. Que calor. Confete. Serpentina. Marchinha de manhã. Samba de tarde. Funk de noite. Colombinas, pierrôs, bruxinhas e palhaços. Tudo pode, tudo é diversão. Só que não. Além da alegria da folia, o Carnaval é época onde a liberdade bate de frente com todas as formas de opressão, aquelas que já nos acompanham ao longo do ano e se fantasiam de lobo em pele de cordeiro para sambar até o amanhecer, já que "nesses quatro dias, tudo é permitido" - mas nem tudo.
Para chamar atenção para as formas de opressão que se tornam corriqueiras durante a folia de Momo, botamos na rua o projeto "Abre (F)alas - Nós vamos passar". Esta série de zines abre espaço para a fala de pessoas que sofrem diversas formas de abuso e suas histórias, sejam elas de machismo, lesbofobia, racismo, homofobia ou transfobia. Um ensaio fotográfico sem fantasias ou adereços nos lembra que por debaixo das fantasias, camadas de glitter, tule e paetês estão pessoas que devem ser respeitadas na folia e fora dela.
Nos zines anteriores, abordamos o machismo (aqui), a lesbofobia (hoje) e a homofobia (aqui). Hoje abrimos espaço para falar sobre racismo, pelo olhar de negros, indígenas e orientais. Índio não quer apito, quer respeito.
Por Lola Ferreira
Na festa da carne você pode tudo. Fantasiar-se do herói favorito, do ídolo de infância, do cantor crush da adolescência. É o período em que você sai de si para dar vazão aos outros, aos desejos. Quatro dias em que você tenta realizar todas as vontades, sem pensar na quarta-feira que se avizinha. Para determinadas pessoas, entretanto, existe um fator que não passa despercebido nem com toda a purpurina e serpentina do mundo: a raça.
Desde o nascimento, negros, indígenas e orientais são marcados e categorizados como diferentes – bem como tudo que fuja do padrão que todos conhecemos. Sendo vítimas do preconceito diariamente, o Carnaval se torna apenas mais quatro dias de problemas, episódios dolorosos e análises assustadoras da sociedade em que vivemos. Desta forma, o Carnaval nada mais é que quatro dias entre os 365 dias do ano, com tanto racismo e resistência quanto sempre, só que com a diferença da liberdade como fator que permite tudo. Não, nem tudo é permitido.
Valeria Monã tem 50 anos e trabalha com dança afro e teatro negro desde os 18. O sobrenome adotado já depois de adulta significa “insubstituível”, bem como ela e toda mulher preta realmente é. Valeria já foi do Carnaval de Sapucaí – “era só me dar uma fantasia e eu desfilava” – e hoje se dedica um pouco mais ao Carnaval de rua, no qual sai com mais duas amigas homenageando o movimento de resistência negra Panteras Negras. E é nas ruas que ela vê, nos quatro dias de folia, extensões das violências às quais a mulher negra está exposta diariamente.
“A ‘nega maluca’ me incomoda muito. Isto desrespeita, porque colocam um estereótipo na nossa beleza. O nosso black não é qualquer black, a nossa bunda não é qualquer bunda, ela é linda. A fantasia de nega maluca trabalha a estética negra de uma forma ridícula e isso dificulta a relação da pessoa negra com a palavra 'negra'. Cria um incômodo”, pontua.
A fantasia que divide com amigas também causa espanto para quem está de fora. Ela afirma que muitos veem a postura combativa e a autoestima elevada daquelas mulheres como soberba e não entendem que homenagear o movimento é um ato importante.
Também nas ruas há uma predominância, nos últimos anos, de fantasias que remetem a religiões de matriz africana. Candomblecista, Valeria enxerga com cuidado este movimento de usar símbolos que não são conhecidos. Para ela, é fundamental que tenha muito respeito com aquilo que não se conhece, porque o desconhecido pode ser o sagrado de outros. “O mínimo é o cuidado e este cuidado não rola. Tem que saber onde está pisando. Eu sinto falta deste respeito, não só no Carnaval, mas na vida como um todo”, diz.
O desrespeito também é comum com corpos de mulheres negras. Valeria observa um entendimento geral de que o corpo preto pertence a todos, menos a quem realmente o detém. “O pior é acharem que podem nos abordar de qualquer jeito - e isso não é só no Carnaval”, reforça.
Mônica Pan é filha de chineses e tem 28 anos. Ela também reitera a ideia de que o desrespeito com o dito diferente não é exclusividade do Carnaval. Atualmente, ela trabalha esporadicamente como modelo e percebe que há a predominância de alguns estereótipos no mundo da moda, ainda que o mercado esteja se abrindo. Tanto é que foi em um set que ela ouviu, em tom de “brincadeira”, que na China só comem cachorros. A lista de episódios desrespeitos e preconceituosos também inclui alguns no Carnaval.
Apesar de ter voltado a curtir os blocos de rua há cerca de oito anos, ela diz que evita os blocos grandes pelo tumulto, mas sempre está pelas ruas do Rio. Certa vez, contudo, ela foi chamada de Yoko Ono simplesmente por ser descendente de oriental. Por mais que pareça inofensiva, a ideia de que todos os orientais são iguais tira a personalidade e humanidade destes. Ainda sobre a festa da carne, Monica ressalta que é uma época em que acontece uma situação que ela desaprova totalmente: “O que eu não gosto é quando confunde. Uma roupa chinesa e uma maquiagem de gueixa. A pessoa é o quê, afinal?”.
Mônica também pontua que um gesto muito comum em festas e viagens é, sim, ofensivo: puxar os olhos e esticá-los para simular a feição de um oriental. “É muito ofensivo porque remete a zoações. Ninguém puxa o olho para representar os orientais, e eu não me sinto homenageada desta forma, só acho que a pessoa está me zoando”, afirma.
Apesar de estarmos em uma época em que as pessoas estão discutindo e analisando a carga de problema que há em hábitos anteriormente comuns, Mônica ainda vê resistência de pessoas que reproduzem preconceitos. “Eu acho tão absurdo alguém apontar para uma pessoa que a atitude dela é extremamente ofensiva e a pessoa, que não pertence à minoria, dizer ‘não, eu não acho’. Mas não tem que achar nada, quem tem que achar sou eu, porque a pessoa não sofre com isso”, ressalta.
Ainda assim, Mônica acredita que a mudança começa desta forma: policiando aos poucos aqueles que são agentes deste preconceito. “Ninguém é livre de preconceito, a gente tem que se desconstruir também”, diz.
Lucas Brazil, de 31 anos, é designer e tem ascendência negra e indígena. Além de exercer a profissão, Lucas trabalha com crianças, educação e ludicidade. Ele é apaixonado por Carnaval e não vê a hora de pular a festa. Devido às áreas de atuação, talvez, ele enxergue na educação um meio fundamental para acabar com episódios de preconceito e racismo que existem no ano inteiro e, também, no Carnaval. “A maior parte dos problemas do Carnaval é resultado da ignorância, no sentido do não-saber das pessoas. A gente vai ter inúmeras pessoas confundindo desenhos africanos com árabes, por exemplo”, comenta.
Ele acredita que o caminho para que as pessoas conheçam a cultura que estão consumindo, de alguma forma, é fazermos, pacientemente, trabalhos educativos. “Eu acho que as pessoas não têm ideia do que estão fazendo. Usar o termo 'apropriação cultural' é mais voltado para quem está consciente daquilo. O que eu penso é que, antes de falar sobre apropriação, temos que mostrar que aquela é uma cultura. A pessoa tem que conseguir reconhecer uma cultura e entender os sentimentos alheios quanto a ela. É falta de saber. Ainda acham que se vestir de palhaço ou orixá, pirata ou baiana é a mesma coisa. O primeiro passo é uma conscientização para aqueles que estiverem abertos a isto”, diz.
Com esta visão, Lucas ainda se vê sendo agente e sujeito de alguns preconceitos de raça e classe que são cotidianos. Recentemente, em um bloco de Carnaval, estava vendendo sacolés alcoólicos quando foi chamado de vendedor. Ao passo que estranhou a nomenclatura que usaram com ele, um garoto negro, também analisou o motivo de não ter naturalizado o termo. Posteriormente, compreendeu que para brancos e/ou ricos, vendedores eram somente aqueles negros como ele. Os outros universitários que vendiam algo para ter uma renda extra, eram só foliões empreendedores com ideias boas. A conscientização, portanto, deve ser geral.
“É a consciência interna que eu acho que, cada vez mais, as pessoas têm de ter. Mas ela não virá sem o mínimo de conhecimento e conversa. Tem que haver o lado que briga e xinga, mas também tem que ter o lado que conversa e analisa. A partir daí, podemos tirar os extremos e ver em qual situação cabe qual reação”, afirma.
Idjahure Kadiwel é carioca e filho de pai índio, nascido em aldeia. O sobrenome dele é, portanto, uma homenagem. Foi este nome que levou Id a buscar sua identidade indígena e lutar por avanços para o povo dono desta terra. Id acredita que o Carnaval do Rio exprime a alienação das pessoas em relação à educação. “Não vou proibir ninguém de fazer nada. As pessoas acabam denotando sua consciência. Talvez queiram honrar as mulheres ao se vestir de mulher, por exemplo, mas a homenagem não fica clara porque o intuito é a festa”, pontua.
Ele define a festa da carne e a relação dela com minorias de forma categórica: inclusão abstrata e uma exclusão concreta. “As pessoas se vestem dessas populações [negros, mulheres, indígenas], mas não se preocupam com a violação do direito destas pessoas”, ressalta.
Frequentador de alguns blocos, Id recentemente ouviu a marchinha em que se canta “índio quer apito, se não der pau vai comer” ser entoada por centenas de pessoas. A partir daquele momento, em que todos cantavam a música com muita empolgação, ele analisou que a animação é contagiante, mas a mobilização é inexiste. “É muito contraditório mobilizarem desta forma sua energia e alegria e não se mobilizarem para ameaças de mudanças de legislação sobre as terras indígenas, por exemplo”, destaca.
Este ano, a Imperatriz Leopoldinense traz Xingu como protagonista de seu enredo. Idjahure acredita que é importante aproveitar este momento para jogar luz sobre outras questões que remetem à luta do povo indígena e outras reivindicações. “Algumas lideranças indígenas irão desfilar na escola e estão se preparando para ocupar o espaço de uma forma simbólica e estratégica, para além da pura alegria e festança”, conta.
Para Id, o Carnaval é importante porque mistura o sagrado e profano: “Eu acho que o Carnaval tem algo de liberação, que é muito importante para a nossa sociedade reprimida. Mas, para além disso, ele deve ser essa ferramenta de um pouco mais consciência em relação à diversidade da nossa sociedade”.
Cabe a nós utilizar estes quatro dias para fazer diferente, mas não só. É fundamental que debatamos e discutamos o racismo em todos os dias do ano, para que possamos nos livrar dele. Livre-se daquela piada, reflita sobre aquela marchinha, guarde a fantasia ofensiva: para você é pouco, mas é aos poucos mesmo que fazemos a mudança.
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Lola Ferreira tem 23 anos, é preta e jornalista por missão e formação. Colabora com a revista Capitolina, edita o site Cenas Lamentáveis e ainda arruma tempo para escrever mais um pouco. Acredita que o Carnaval é a data mais importante do ano, antes que o próprio aniversário, e dispensa qualquer coisa que não seja álcool e gargalhada nos quatro dias de festa.
Direção criativa: Brena O'Dwyer, Derek Mangabeira e Victor Curi
Edição: Beatriz Medeiros
Fotografia: Juliana Rocha
Styling: Nathalia Gastim
Beleza: Barbara Bosque
Repórter: Lola Ferreira
Produção: Jeanne Yépez
Vídeo
Direção, edição e som: Calí dos Anjos
Câmera: Lívio Leite e Calí dos Anjos
Cor: Alexandre Marcondes
Agradecimentos: Lab Collection