Abre (F)alas - Lesbofobia
Até no Carnaval, ser mulher e se relacionar com mulheres significa quebra de padrões e mais luta
Publicado em 02/2017
Carnaval. Alalaô. Que calor. Confete. Serpentina. Marchinha de manhã. Samba de tarde. Funk de noite. Colombinas, pierrôs, bruxinhas e palhaços. Tudo pode, tudo é diversão. Só que não. Além da alegria da folia, o Carnaval é época onde a liberdade bate de frente com todas as formas de opressão, aquelas que já nos acompanham ao longo do ano e se fantasiam de lobo em pele de cordeiro para sambar até o amanhecer, já que "nesses quatro dias, tudo é permitido" - mas nem tudo.
Para chamar atenção para as formas de opressão que se tornam corriqueiras durante a folia de Momo, botamos na rua o projeto "Abre (F)alas - Nós vamos passar". Esta série de zines abre espaço para a fala de pessoas que sofrem diversas formas de abuso e suas histórias, sejam elas de machismo, lesbofobia, racismo, homofobia ou transfobia. Um ensaio fotográfico sem fantasias ou adereços nos lembra que por debaixo das fantasias, camadas de glitter, tule e paetês estão pessoas que devem ser respeitadas na folia e fora dela.
Após abordar o machismo (no zine que você pode conferir aqui), hoje abrimos espaço para falar sobre lesbofobia. A luta é todo dia.
Por Isabela Peccini
Pensar em Carnaval é pensar em festa, diversão e liberdade. Esse é o momento do ano em que tudo pode. As ruas são ocupadas por gente e música, as roupas se transformam em fantasias, os amigos estão sempre por perto e horário marcado mesmo só o dos blocos. Falando assim parece até que esse tempo e espaço que é o Carnaval pertence a outro mundo, mas, como Carnaval é criação nossa mesmo, temos que olhar mais de perto e com mais cuidado.
Ser mulher em uma sociedade construída com base no machismo é luta constante. Cada passo que damos, cada elemento da nossa vida é parte desse sistema. Cada pé fora do padrão é resistência e, além de tudo o que envolve a nossa personalidade e responsabilidade, a nossa sexualidade também precisa se encaixar nesse molde. Ser mulher e se relacionar com outra mulher, portanto, é mais um padrão quebrado e mais luta pela frente. No Carnaval, esses padrões não se desfazem. O que acontece é que eles se disfarçam. A gente acredita na liberdade desses quatro dias e, no fim, só quem sabe o que acontece ou não somos nós, que vivemos. Então, vamos falar.
O Carnaval é contraditório, contêm em si os dois lados de uma mesma moeda. Se a mensagem é a da liberdade, de se deixar extravasar, de viver outras experiências, ela é levada às últimas consequências. “Liberdade para quem?” pergunta a cientista social Leonildes Nazar, a Leo. Ela nasceu em São Luis do Maranhão, mas já acompanha o carnaval carioca há quase 10 anos. Fato é que “a liberdade pode ser muito agressiva também, porque as pessoas se sentem livres pra fazer o que quiserem, mesmo que seja uma violência contra outra pessoa.” Os homens se comportam de forma muito invasiva em relação às mulheres lésbicas, sempre sendo insistentes, se colocando no meio de uma relação para a qual não foram convidados, hipersexualizando seus corpos. Ela também sinalizou o quão recorrente é o assédio verbal nos blocos e, enquanto mulher negra e lésbica, o quanto se sente invadida.
Por estar no contexto do Carnaval, ainda há uma não aceitação ao fato de você não se sentir bem em determinadas situações. Ou seja, você é assediada e ainda é reprimida quando reclama porque é Carnaval, é um momento feliz, de festa e liberdade, e não de insatisfação. O paradoxo da liberdade carnavalesca leva a um conflito interno na hora de expor as afetividades na rua, de um bloco pra outro; uma mão na outra pode ser uma opressão gratuita, não é um momento que dá para esquecer das violências cotidianas que nos acometem e, por isso, a Leo até prefere andar em grupo
As próprias fantasias também carregam esse paradoxo: ao mesmo tempo em que você supostamente está livre pra vestir o que quiser, as pessoas se sentem livres para pensar e falar o que quiserem em relação à sua roupa e ao seu corpo. Tudo é político, da expressão de carinho no meio da multidão à fantasia daquele dia. Para as mulheres lésbicas, o sentimento é de ser uma constante atração. A afetividade entre mulheres é construída como algo exclusivamente para a apreciação dos homens. E eles se sentem confortáveis, inclusive, de entrar no meio, de participar sem pedir autorização, de tocar, de falar. Eles se sentem realmente ofendidos por verem que uma relação pode existir sem eles e invadem o seu espaço de todas as formas
“Toda mulher que sai num bloco vai sofrer todos os tipos de consequência, ela vai ser assediada... E não importa o quão masculinizada ela seja, qualquer vestígio de feminilidade já abre um portal para sofrer esse tipo de consequência”, diz Mikhaila Copello, 24 anos e estudante de Arquitetura e Urbanismo, que sabe que sair na rua no Carnaval nunca é passar ilesa.
Se quando saímos na rua nos outros dias do ano somos abordadas e assediadas, nos dias dessa grande festa a intensidade desse tipo de situação é ainda maior. Ela vê o Carnaval como um evento cultural de muita energia, em que tudo é potencializado, tanto o que é bom quanto o que é ruim. Certa vez, em um bloco na Zona Sul do Rio de Janeiro, ela, que estava acompanhada por outra mulher, saiu por alguns instantes do seu lado e quando voltou e a beijou, recebeu um tapa forte nas costas. Ele veio de um homem que, logo antes tinha recebido um não da pessoa com a qual ela estava. A agressão é como uma resposta, uma forma de dizer que quem deveria estar ali era ele, que um “não” pode até acontecer, mas não se for pra ter uma mulher no lugar em que ele queria estar.
Para a Thalita Teglas, designer de 29 anos, a vontade de estar no Carnaval ou de se afastar dele veio junto com momentos e questões importantes da sua vida. Tanto a sua relação com o próprio corpo quanto com a sua sexualidade foram fatores pAra se afastar um pouco da folia. Por não ter o corpo visto como padrão, “se eu usasse uma fantasia x ou y as pessoas de repente me olhavam de uma forma estranha, falavam alguma coisa e se sentiam com essa permissão porque era Carnaval. Mas, recentemente, tentei rever isso comigo mesma porque não era só um problema do outro, mas também um problema meu, e pensei que se era pra mudar alguma coisa, que eu começasse a fazer isso de dentro para fora.”
A aceitação do próprio corpo foi importante, assim como se ver bem enquanto mulher lésbica. “Nessa primeira fase de gostar do Carnaval, eu ainda me relacionava só com homens. Esse 'bode' do Carnaval, então, veio junto com esse momento de entendimento enquanto lésbica e tem a ver com a falta de lugares em que você se sente confortável para ser quem é e quer ser”, pontua.
Thalita fala muito da importância de todos esses movimentos terem sido feitos coletivamente. Junto com outras pessoas, o enfrentamento fica mais forte também, sendo menos difícil de encarar. “A sua própria existência é difícil para as pessoas, se você existe de forma diferente daquela pessoa ela fica... não sei qual é o sentimento, não sei o que essa pessoa pensa. Não sei, eu não fui criada com esse valor de que algo no outro me pertence”, diz.
As três entrevistadas buscam blocos parecidos no Carnaval: sempre os menores e mais novos, fugindo das grandes multidões, e os que se colocam abertamente em relação às pautas de mulheres e LGBTs. Essa é uma tentativa de estar em um lugar mais acolhedor, com pessoas que vivem e sentem o mesmo que você, uma forma de proteção. Além do bloco, o cuidado de sempre sair em grupo e com roupas que sejam confortáveis e frescas, mas que, de alguma forma, mantenham seu corpo protegido é comum entre elas.
A representatividade e a coletividade são essenciais para o sentimento de pertencimento e segurança. Buscamos lugares para exercer essa liberdade, quando o que devia acontecer, de fato, era que ela pudesse ser exercida em todo lugar. Poder ser quem é e se relacionar com quem quiser sem assédios, invasões, agressões ou qualquer que seja a interferência é luta de todo dia, inclusive do Carnaval. Só assim a festa pode ser realmente livre e desfrutada por todas e todos.
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Direção criativa: Brena O'Dwyer, Derek Mangabeira e Victor Curi
Edição: Beatriz Medeiros
Fotografia: Juliana Rocha
Styling: Bruna Sussekind
Beleza: Piu Gontijo
Repórter: Isabela Peccini
Produção: Jeanne Yépez
Vídeo
Câmera: Lívio Leite
Direção, som e edição: Calí dos Anjos
Cor: Bruno Morieval
Agradecimentos: Solv Store, Aro Swimwear e OS/ON