Mulheres que fotografam: Flora Negri
Uma pernambucana que transforma seus medos em imagens incríveis
Publicado em 04/2018
Toda sala de aula tem seu time de nerds (ou CDFs, como diziam no nosso tempo), aquela galera que estuda de um tudo, sabe de tudo e só tira 10.
E nós apostamos que a fotógrafa Flora Negri era assim no colégio. Ela estuda. Letras, Artes Visuais, História, História da Arte, Fotografia. Em casa, no colégio, na universidade ou no Instituto Candela, tradicional escola de fotografia de Recife - da qual a Duda Portella também falou.
Na nossa entrevista pra este Mulheres que Fotografam, a pernambucana falou bastante sobre as referências acadêmicas e livros que acompanharam sua trajetória. E tudo isso, de alguma forma, aparece nas fotos que ela faz. Nem todo nerd vira engenheiro, afinal.
Quando você começou a fotografar? O que despertou a vontade de trabalhar com fotografia? Desde criança era algo que me encantava. Minha mãe sempre teve um olhar muito sensível pra imagem e, consequentemente, pra fotografia. Ela é professora, e eu cresci rodeada de outras tantas, a maioria mais relacionada à Arte e História, então observar e pensar a imagem foi algo muito natural dentro do meu desenvolvimento. Na adolescência, tive uma amiga que era filha de fotógrafo e tinha uma câmera, na época meu sonho de consumo. Nós nos fotografávamos muito, era divertido e me inspirava, mas não pensava na possibilidade como profissão. Comecei a cursar Letras e logo depois já sentia que não conseguia me dedicar, que não queria de fato aquilo pra vida. Mas ainda sem saber o que seguir. Minha família sempre notou minha inclinação pra fotografia, quando terminei o ensino médio, meu primo e minha tia me deram uma Canon T1i, com ela comecei a fotografar com mais frequência. E calhou que nessa lacuna de buscar o que queria fazer, comecei a ganhar dinheiro com fotografia. Fotografei o aniversário de um amigo como presente, amigos dele viram as fotos e começaram a me contratar pra fotografar aniversários, formaturas, batizados...
Mas sempre gostei do retrato, e aí fui estudar pra entender melhor como podia trabalhar e criar com aquela ferramenta. Acho que o que despertou essa vontade foi a possibilidade do meu trabalho ser um espaço de criação e troca, que é parte do que a fotografia representa pra mim.
Além de ter entrado na minha vida quase como uma terapia, num momento em que meu psicológico tava uma bagunça por questões pessoais complicadas. Acabei usando-a como forma de expurgar algumas dessas questões, e criei uma relação de fotografar meus "demônios" pra lidar melhor com eles. A verdade é que tenho uma sorte imensa de trabalhar com algo que verdadeiramente me faz bem.
Chegou a trabalhar (ou ainda trabalha) com outra coisa além de fotografia? O quê? Sim, passei um período dando aulas de literatura e na época da faculdade de Letras estagiei numa mini agência de conteúdo digital aqui em Recife, já juntando dinheiro pra trocar de câmera e pagar um curso de fotografia. No começo, trabalhei só na parte de produção de conteúdo e monitoramento, depois comecei a produzir conteúdo fotográfico, pouco antes de sair.
Fez algum curso ou aprendeu a fotografar sozinha? Já fotografava há um tempo, mas sentia uma necessidade grande de aprender mais e aí fui parar no Instituto Candela, uma escola de fotografia de Recife. Lá, Ivan Alecrim, que é fotógrafo e professor, me abriu um universo novo que eu precisava conhecer pra entender rapidinho que fotografia era o caminho mais forte e legítimo em mim. Fiz alguns cursos lá e passei um bom tempo vivendo mais no Candela, devorando os livros de história da arte de Ivan, do que em qualquer outro lugar.
Qual equipamento você usa? A maior parte do meu material foi produzida com minha antiga câmera, uma 60D, com uma 18-135mm e uma 50mm 1.8. Agora trabalho com uma 5D Mark IV e a 24-70mm 2.8. A câmera do meu celular não é grande coisa, mas ainda assim uso muito quando é o que tenho à disposição.
O que você mais curte fotografar? Gente. Ultimamente tenho até sentido uma necessidade maior de abstrair, estudar as formas da natureza que não o corpo humano... Mas nada atrai mais meu olhar que as pessoas e a possibilidade de troca que a fotografia como ferramenta fomenta.
Tem algum projeto pessoal de fotografia? Qual? Nenhum que já esteja na rua ou que tenha uma roupagem definida. Mas dois que pra mim são muito importantes martelando na cabeça. Um deles é motivo de estudo e experimento tem uns anos, mas abre um espaço muito íntimo e frágil meu, talvez por isso tenha sentido a necessidade de guardar pra mim um pouco, pra entender melhor as dimensões disso. Mas acredito que ao longo desse ano ele vá aparecendo aos pouquinhos.
Diz aí quem são as mulheres que influenciam o seu trabalho. Fiz Artes Visuais depois de desistir de Letras, também não terminei, mas foi um período de aprendizado muito importante. Na primeira aula de uma das minhas cadeiras favoritas, assistimos um documentário chamado W.A.R. (Women Art Revolution), onde descobri um pouco da história e o trabalho de Ana Mendieta. Sabe quando o trabalho de alguém parece te dar voz de alguma forma? Foi o que senti. Ela e Francesca Woodman provavelmente são as mulheres que mais transformaram meu trabalho, na prática. Que mais se enraizaram na minha cabeça. E acredito que o que me inspira é o conteúdo que consumo e me afeta, me transforma de alguma forma, nem que só um pensamento. Música influencia muito meu trabalho, literatura também. Lembro quando escutei pela primeira vez o disco “Ascensão”, de Serena Assumpção, no começo de 2016, e meu jeito de enxergar muita coisa mudou. Fiz uma série de autorretratos inspirada nesse álbum. No fim do ano passado, também tive uma conexão grande com relação à produção com o disco de Luedji Luna, “Um Corpo no Mundo”.
E voltando um pouco pra produção fotográfica, tem um tempo que estudo e tenho me admirado com a força e a legitimidade do trabalho de Zanele Muholi, fotógrafa e ativista sul-africana.
Por que é importante termos mais mulheres trabalhando com fotografia no Brasil? É importante termos mais mulheres trabalhando e tendo reais e favoráveis condições de trabalho na área que elas, nós, quisermos. Mas sinto que em fotografia, o registro, a história, perdem muito tendo um olhar tão majoritariamente masculino. Por exemplo, quando vou estudar o fotojornalismo no Brasil, os registros mais antigos são masculinos. Olho pra uma foto e me pergunto como seria poder ver aquela realidade pelos olhos de uma mulher. Não porque seria uma foto melhor ou pior, mas porque seria um olhar feminino, que é, necessariamente, diferente do masculino. Pela forma como somos, como sentimos o mundo. O retrato de uma mãe amamentando tirado por um homem vai me contar uma estória diferente do tirado por uma mulher. Quero ter acesso aos dois olhares sobre o mundo, ou a quantos possam existir. Numa relação de potencialização, não de detrimento.