RETRATO: TAGUA TAGUA
Felipe Puperi Desatravessa em seu Pedaço Vivo
Publicado em 03/2019
Era uma tarde insuportavelmente quente de fevereiro no Rio de Janeiro e já dava para sentir o clima do Carnaval tomando as ruas do centro da cidade. Ambulantes vendiam fantasias, as pessoas suadas se esbarravam nas calçadas, os carros buzinavam no engarrafamento, todo mundo se olhava como se estivessem esperando algo catastrófico acontecer — o que, na verdade, era o que estava acontecendo todos os dias desde o início do ano.
Eu corria apressado pois estava dez minutos atrasado. Entrei esbaforido na Livraria Travessa da Avenida Rio Branco e de cara encontrei o Felipe Puperi em pé de frente para uma mesa de livros, folheando um exemplar da Hilda Hilst. Me desculpei pelo atraso e ele simpático respondeu que não tinha problemas, estava aproveitando o tempo para folhear os livros. "Eu adoro ler, mas nos últimos tempos não tenho tido tempo de ler nada por conta dos trabalhos com a banda."
Subimos para o café no segundo andar, sentamos numa mesa e aproveitei para lhe dar os parabéns. Felipe tinha feito 34 anos no dia anterior. No mesmo dia do show no Coordenadas Bar em Botafogo. "Acho que nunca fiz um show no dia do meu aniversário. Foi bom, foi uma boa forma de dar uma festa, mas na verdade não tive muito como comemorar porque fiquei bastante ocupado com tocar e produzir o show.''
Desde que interrompeu as atividades como vocalista e guitarrista da banda Wannabe Jalva para investir na carreira solo, Felipe descobriu uma nova forma de encarar seu trabalho como artista. "Hoje estou aprendendo a gerenciar o lance, pois com a Jalva tinha gente que fazia tudo, eu só precisava ficar na função criativa. Agora, se eu não fizer, ninguém vai fazer."
Após oito anos tocando com a banda, Felipe montou o projeto solo Tagua Tagua que conta com a colaboração de diversos amigos músicos. Amigos que ele coleciona desde o início da sua carreira profissional em Porto Alegre, cidade onde nasceu e morou até os 32 anos.
QUEM VAI INDO
Aos treze anos Felipe comprou um cavaquinho. Foi o seu primeiro instrumento. Ele admirava os solos que os músicos tiravam do pequeno instrumento. Depois adquiriu um violão, pois passou a se interessar pelas possibilidades harmônicas e melódicas dos acordes. O primeiro disco que lembra de ter comprado na vida foi "Vamo Batê Lata", disco duplo ao vivo dos Paralamas do Sucesso, lançado em 1995. Um álbum icônico da década de 90 e que teve mais de 1 milhão cópias vendidas, a maior vendagem da banda. O segundo disco que ele comprou foi "Assim Caminha a Humanidade", do Lulu Santos, que também rendeu um disco de ouro e recolocou o cantor de volta nas paradas musicais. Ele costumava ouvir esses discos todos os dias. Aos quinze anos entrou numa escola de música onde estudou violão erudito, teoria musical, aprendeu a ler partitura tocando Vila-Lobos. Essas influências refletem hoje nas suas composições como músico profissional, especialmente na sua preocupação com o encadeamento melódico da músicas. Ele me disse que é a melodia que guia o seu processo criativo enquanto levantava o braço para chamar a garçonete que agilmente chegou à nossa mesa. Felipe pediu água com gelo e limão, eu pedi um refrigerante de uma marca que não está patrocinando esta reportagem. Neste instante, Francisco Costa subiu as escadas, nos cumprimentou e tirou da mochila os equipamentos para as fotos.
"Eu e o Chico estávamos no seu show de ontem", falei. "Foi a primeira vez que vi vocês tocarem e senti o som de vocês como uma neblina de uma outra atmosfera. Como que do cavaquinho e dos Paralamas você chegou a essa sonoridade?"
A partir dos dezessete anos, a adolescência na sua fase mais aguda, foi quando Felipe descobriu Led Zeppelin, The Doors, Cream, e a música lhe trouxe um outro sentimento e deixou de se relacionar apenas como ouvinte e passou a se interessar em criar suas próprias composições. Comprou uma guitarra interessado nos timbres, nos solos, nas possibilidades de efeitos, na barulheira. Um ano depois ele entrou na faculdade de Comunicação, porém, o interesse por música não cessou. Pelo contrário, dentro do campus conheceu amigos com os mesmos gostos musicais. Em seguida começou a estagiar em uma produtora de som, onde pôde estudar mais a composição de outra forma. "Conheci o Rafael [Rocha] na faculdade e o Tiago [Abrahão] no trabalho", disse. "Conversávamos muito sobre a vontade de fazer músicas. Por conta da produtora a gente já estava dominando formas de gravar, era muito prático. A gente tinha uma ideia, gravava. Tinha outra ideia, gravava, e assim íamos testando." Depois lhe apresentaram ao baterista Fernando Paulista, e os quatro decidiram montar uma banda. Assim, em 2010, surgiu a Wannabe Jalva. "Éramos quatro moleques. A gente não sabia muito bem para onde as coisas estavam caminhando. Foi assim que as coisas foram acontecendo, sem muito planejamento, só pela vontade de fazer um som. Era um projeto em que eu, hoje olhando pra trás, posso dizer que não sabia muito bem o que estava acontecendo, só fui indo."
WELCOME TO JALVA
Nesse indo, a banda lançou o disco Welcome to Jalva em 2011. A partir daí o indo foi indo mesmo, abriram um show do Pearl Jam, dividiram palco com os indies do Cut Copy, tocaram com Jack White, Two Door Cinema Club e Vampire Weekend e participaram do lineup de grandes festivais. O fato das letras serem todas em inglês facilitou o ingresso no mercado internacional. Fecharam uma série de shows no CMJ Music Marathon, em Nova York, e na sequência marcaram apresentações em cinco outras cidades americanas. A crítica americana recebeu bem o quarteto. A jornalista Maggie Stamets, do Stereogum, descreveu que o som da banda proporcionava um "sentimento celestial". E Miles Raymer, da Entertainment Weekly, colocou os Jalva no mesmo balaio dos Strokes, Mutantes e Pink Floyd.
Além deste primeiro disco, lançaram em 2014 o EP Collecture com cinco faixas consideradas "carismáticas e envolventes sem perder a identidade forte, superlativas do início ao fim", pelo crítico André Felipe de Medeiros do MonkeyBuzz. Os fãs curtiram as novas experimentações da banda, mas ficaram na expectativa de um segundo álbum. Em 2016 foram convidados pela Red Bull para gravarem uma parceria com Curumin no Red Bull Station, e lhes puseram uma condição: a música tinha que ser em português. "No primeiro momento hesitamos", me contou Felipe entre uns goles de água com gelo e limão. "Gostávamos da vibe de fazer músicas em inglês. Sempre tiveram essas pressões externas, pessoas que perguntavam Quando é que vocês vão fazer música em português? Mas não estávamos preocupados com isso, até que surgiu esse convite dando essa condição para rolar o projeto."
Felipe já tinha uma música praticamente pronta. E para a surpresa de todos, a letra em português encaixava perfeitamente no som espacial da banda. Assim, entraram no estúdio e gravaram a música Mareá, com participação do Curumin. Fizeram seis shows e um clipe com a letra in motion na tela para o lançamento. No trecho da letra: "Foi cego na estrada torta / que ele foi reto não parou nem idealizou pra si", parece com o que ele descreve da sua vivência com a banda. Já o refrão da música, "Se jogou, se lançou / Se jogou na multidão, mas não soube voltar", até poderia prever o que aconteceria em seguida.
"Eu já estava querendo fazer uma coisa diferente", contou Felipe. "Mareá se parece mais com o som que eu faço agora do que com o Wannabe Jalva. Tanto é que eu tenho tocado ela nos shows."
TOMBAMENTO INEVITÁVEL
"Houve um momento na vida em que eu perdi o chão", falou Felipe, passando pelos carros da Avenida Rio Branco. Os imensos prédios do centro produziam uma imensa sombra protegendo os passantes do calor direto do sol. Francisco encontrou uma brecha de luz vindo por entre os prédios e pediu para Felipe ficar parado na faixa de pedestres. Subi na calçada e fiquei fazendo a contagem regressiva do sinal vermelho para o verde. Chico não estava usando uma câmera digital. Tinha optado por usar a sua Mamiya Rb67, uma câmera analógica profissional criada nos anos 70 que lhe exigia um outro tempo para focar, angular, enquadrar, até finalmente clicar. Felipe permanecia imóvel, obedecendo a direção do Chico enquanto eu cantava "7... 6... 5... Vamos pessoal! Vai abrir! 3... 2...1..." O sinal abriu e os carros buzinaram. As motos passaram raspando por eles. Chico gritou "Pronto, foi!" e os dois vieram correndo até a calçada. "O que vocês acham de continuarem a conversa no pátio do Museu do Amanhã? Lá deve estar mais claro para eu tirar outras fotos", sugeriu Chico. Topamos a ideia e seguimos andando.
"Você estava dizendo que houve um momento em que perdeu o chão", retomei o assunto.
"Isso. Um monte de coisa tinha desmoronado. Saí do lugar onde eu trabalhava há uns 8 anos, a banda deu uma parada e um relacionamento que eu tinha há uns cinco anos acabou. Caiu tudo. Foi quando percebi que não tinha mais motivos para estar lá. Sem banda, sem trabalho, sem namorada, nada me prendia em Porto Alegre."
Felipe viajou para o Chile a fim de renovar as energias, reavaliar o passado, refletir o presente e planejar o futuro. Lá, refletiu sobre sua vida pessoal e profissional, analisando os caminhos que havia seguido até então, o que a vida lhe apresentava de ideias, tentando entender os movimentos que estavam acontecendo na sua vida. Quando está tudo perdido, o que é preciso fazer? Se renovar, inventar algo novo. Foi assim que uma ideia começou a surgir com força em sua cabeça: a vontade de montar um projeto diferente e dessa vez inteiramente seu. Em suas andanças ele chegou em um vilarejo chamado "San Vicente de Tagua Tagua". Perguntou à um nativo o significado do nome da cidade que lhe respondeu que Tagua Tagua é o nome de um enorme lago de água transparente esverdeada que foi nomeado pelos primeiros povos que chegaram ao Chile. Estava decidido o nome do projeto.
Ao voltar para Porto Alegre, mostrou o esboço de algumas músicas para os amigos que toparam colaborar com o projeto. Foram para uma casa no litoral gaúcho, há três horas da capital, e fizeram uma pré produção. "Eu já sabia muito o que eu queria, que é o lado positivo de ser produtor. Voltamos da praia com uma proposta muito estruturada. Finalizei o EP no mini estúdio que eu tinha em casa. Dei o nome de 'Tombamento Inevitável', porque era o que aconteceu, era o fim de tudo."
O INÍCIO DE TUDO
O disco estava pronto mas ainda não tinha sido lançado quando Felipe recebeu uma ligação do cantor Felipe Catto. "Ele disse 'Tô com uma música minha e da Zélia Duncan, tá afim de produzir junto comigo?' Eu fiquei animado, só que tinha que ir para São Paulo." Puperi topou o convite e juntou umas roupas numa mochila, seu computador, headphones, e embarcou para São Paulo. "Liguei para uma amiga e perguntei se podia ficar na casa dela por uns dias. Ela disse que morava num apê pequeno, mas que eu podia ficar na sala." Esses dias duraram dois meses, e o trabalho com Catto cresceu — ao invés de produzir apenas uma música, Puperi produziu o disco inteiro. Sentindo que os planos estavam se concretizando, decidiu procurar um lugar para morar. Enquanto isso, estava com o Tombamento Inevitável embaixo do braço esperando o momento certo de lançar. "No fim do ano lancei o EP, contratei assessoria de imprensa, marquei show de lançamento, e foi então que vi que, coincidentemente, o Catto estava lançando seu disco no mesmo dia. Ou seja, eu estava lançando dois trabalhos ao mesmo tempo!"
PEDAÇO VIVO
Em outubro de 2018, Tagua Tagua lançou o novo EP, Pedaço Vivo, gravado de maneira caseira no estúdio Casa das Fitas Balançantes, que fica em sua garagem, em São Paulo. Desde então, segue em turnê pelo Brasil. Até o momento, o artista já passou por Porto Alegre, São Paulo, Sorocaba, Sesc Campinas e Sesc Bauru, fez parte do lineup de festivais no nordeste e também no sul, e no dia anterior trouxe o show para o Rio de Janeiro.
A dinâmica de trabalho com o Tagua Tagua se difere muito do que ele fazia no Wannabe Jalva. Felipe passou oito anos tocando no Jalva mas na época também tinha um trabalho que sustentava a sua vida. Agora, está decidido a focar inteiramente no projeto. "Eu era muito avoado naquela época. Agora eu centrei mais. Quando fiquei sozinho eu tive que começar a fazer mais as coisas. Antes eu gostava de ficar viajando, criando no estúdio, não precisava ficar frente à frente. Hoje em dia sou eu. Só eu. Se precisa resolver alguma coisa, é comigo."
Pergunto se ele sente se os outros músicos da sua geração também estão nessa de incorporar todas as funções que um projeto demanda.
"Nem todo mundo tá nessa. Converso muito com as pessoas e vejo como eles não conseguem entrar nessa de gerir o trabalho. E eles reclamam de uma coisa e eu penso 'Porque não é você quem faz isso?' Tem artista que não sabe nem planejar para onde quer ir, o que quer fazer, onde que quer chegar. Eu ouço mais as pessoas reclamando de que as coisas estão lentas, não estão dando certo, do que 'Eu tô fazendo muita coisa e não estou conseguindo criar.'
Em Abril o Tagua Tagua vai fazer uma turnê por várias cidades do nordeste. Em Março, vão tocar em Portugal. Felipe aproveita os raros momentos de ócio para terminar as composições que está criando para um novo disco. "Eu tenho dosado essa verve de produtor e empreendedor sem boicotar meu lado artístico, não quero atropelar o processo, fazer um monte de música e depois perceber que nem era o que eu queria estar lançando."
O sol estava começando a esfriar e desaparecer atrás dos prédios espelhados do centro da cidade. Faltavam poucos dias para o carnaval. O ano estava apenas começando.