Retrato: Lenine em trânsito
Lenine escreve as crônicas musicais dos dias atuais em seu novo trabalho
Publicado em 06/2018
Para onde você está indo?
Não se engane, no Brasil de 2018, esta é a pergunta mais importante a ser fazer. Vivemos atualmente a condição de incógnita da incapacidade de prever o que vem por aí. Se você está lendo este texto num futuro distante, então você já sabe o que aconteceu, mas nós aqui, enquanto sentimos os dias e as horas passarem, oscilamos entre o otimismo e pessimismo discutindo o que vai acontecer até o final do ano.
Como sempre tem feito em sua carreira, Lenine escreve as crônicas musicais desses dias em seu mais novo trabalho, apropriadamente chamado de "Em Trânsito".
"Em trânsito para onde?", eu pergunto a ele.
"Eu não tenho a mínima ideia. E acho que ninguém tem", ele responde. "Esse sentimento do transitório está completamente impregnado no projeto deste disco. Tudo tem essa urgência e essa coisa de que não dá para olhar pra trás, muito menos pra frente. E agora? Esse caos que a gente está vivendo é uma distopia."
Segundo pensamentos filosóficos, o passado é impotente, o presente é potente e o futuro é prepotente. Logo, nada mais presente que estar em trânsito. Ou seja, estar em trânsito é o movimento da potência.
"Eu fui compelido a fazer um trabalho que é cinza, é duro, e que reverbera o momento que estou vivendo. Em Trânsito é uma ode ao processo. Não à toa, subverte a ordem imposta pela indústria que é lançar um disco de estúdio, fazer show e depois lançar um disco ao vivo."
A obra de Lenine possui duas trilogias. A primeira, composta por O Dia em Que Faremos Contato (1997), Na Pressão (1999) e Falange Canibal (2002), é formada por conjuntos de músicas que ele tinha composto sem um conceito definido. A segunda trilogia é composta pelos discos Labiata (2008), Chão (2015) e Carbono (2015), em que as canções gravadas já foram criadas sob conceitos criados antes da gravação. O novo disco é uma espécie de fusão das duas coisas. "Em Trânsito" é a gravação de um show com músicas inéditas que entra em turnê ao mesmo tempo em que é lançado como disco.
"Uma coisa é fazer disco. Outra coisa é fazer show. Sempre acreditei que o estúdio era um grande laboratório, era onde eu podia experimentar, me aproximar de pessoas com quem nunca toquei mas sempre admirava. O Em Trânsito me possibilitou focar o coletivo levando em consideração que esse grupo de pessoas ia formatar o show antes do disco."
TECNOLOGIA DO AFETO
Eu e o fotógrafo Francisco Costa chegamos ao apartamento do Lenine, localizado no pacato bairro da Urca, no Rio de Janeiro, numa tarde ensolarada de quarta-feira. Fomos recebidos pela sua assessora, Anna Carolina Braz, que nos guiou até a sala onde faríamos a entrevista. "Fiquem à vontade que ele já está vindo", ela diz abrindo as cortinas das janelas. "Essa hora tem uma luz muito boa para as fotos."
A sala possui janelões que dão vista para a baía da Urca, onde se vê os barquinhos flutuando na água e os jovens que naquela hora começam a sentar na mureta em frente ao tradicional Bar Urca para conversar, beber cerveja e assistir o pôr do sol. Enquanto Chico procura o melhor cenário para as fotos, me aproximo da estante. Dezenas de livros sobre música, biografias de cantores, entrevistas e ensaios teóricos. Entre os livros, fotografias, obras de arte folclórica, diversos DVDs e, no centro, uma televisão. No canto, um suntuoso tabuleiro de xadrez cujas peças são figuras medievais.
Não esperamos muito até que Lenine surge por uma porta, com o andar calmo e o sorriso no rosto. Tudo o que eu imaginava sobre ele estava certo, nos cumprimentou com simpatia e com muita elegância se mostrou disponível para o que poderíamos lhe propor. Ele sentou numa poltrona cativa apelidada de Carbono (era, de fato, da cor cinza-carbono, mas o fato dele ter um disco com o mesmo nome me fez pensar que era mais especial do que parecia), eu sentei no sofá ao seu lado e Chico disse que ficaria em pé em busca dos melhores ângulos.
Antes de começarmos, sua assessora pergunta se ele está se sentindo confortável.
"Eu tô", ele responde com a notável candura do sotaque pernambucano. "É que nunca fico à vontade falando."
"Mas vendo você falar dá a sensação de que você continua criando enquanto está falando", falei.
"Não é que eu não goste de falar, eu adoro falar", os olhos verdes de Lenine se fitam com resolução. "Sou um dependente da palavra. Sou colecionador de palavras. Mas é sempre difícil falar sobre o que se faz, principalmente falar sobre um processo em que eu ainda estou."
Explico a minha visão de que suas letras são como crônicas do nosso tempo, e dentro disso há a crônica do sublime, do dia a dia, do simples, do amor e da política.
"Poxa, muito obrigado por falar isso", ele sorri. "Eu sempre faço analogias do meu trabalho com a literatura. E ouso achar que minha música pode ser reveladora. Que daqui a 50 anos alguém pegue um disco meu e diga 'Naquela época era assim', como uma fotografia do tempo. Eu sou muito movido à isso."
O prazer da leitura começou cedo, incentivado por Geraldo Pimentel, seu pai. Quando era adolescente e morava em Recife, ouviu o pai falar da poesia de Carlos Drummond de Andrade e então correu para procurar saber do que se tratava. Ficou encantado pela potência dos versos livres, em seguida foi até o pai e revelou estar apaixonado pela descoberta "Pai, Drummond é foda!". Então seu Geraldo respondeu "Sim, sim, mas para entender Drummond tem que ler João Cabral." Atravessado pela curiosidade, correu até a biblioteca da escola e pegou uns livros do João Cabral de Melo Neto. A poesia da construção, o conceito da escrita como uma composição consciente, encheu seu imaginário. E novamente voltou para o pai dizendo "Pai, Cabral é foda!", e o pai respondeu "Sim, sim, mas para entender João Cabral tem que ler Augusto dos Anjos."
"Meu pai instigava a gente", Lenine explica. "Era uma coisa que não terminava, ele nos ensinou a ter a sede do conhecimento."
Certa vez, seu Geraldo estava levando o filho para a escola quando aconteceu um acidente no trânsito, um carro havia batido na traseira de outro. O homem que tinha sido o culpado pelo acidente saiu do carro e começou a ofender a mulher do carro à frente, gritando que ela estava errada. Vendo tudo aquilo acontecer, seu pai falou "Fique aqui que eu vou ali rápido resolver um negócio", saiu do carro, foi até a mulher e lhe entregou seu cartão "Olha, eu vi tudo, esse cara está errado. Se precisar, eu sou testemunha." Então o homem ficou puto e partiu pra cima dele "Você sabe com quem está falando?" Seu Geraldo se virou novamente para a mulher e disse "Além de errado ele está doido, não sabe nem quem ele é." E assim entrou no carro e foi embora.
"Meu pai praticou em casa o socialismo que ele acreditava." O nome Lenine é uma homenagem ao líder comunista russo Lênin, que o pai, fundador do PCdoB em Campina Grande, admirava.
Segundo definição do próprio Lenine, "Meu pai era um ateu franciscano." Ele diz, com a voz mansa de carinho, que um dos maiores ensinamentos de seu pai foi a Tecnologia do Afeto. "A gente falava sobre tudo, de virgindade à maconha. Papai gostava de conversar, de falar sobre as coisas. Meus amigos se reuniam lá em casa toda sexta-feira antes das saídas, e meu pai, sabendo disso, comprava cervejas para eles. Muitas vezes eu saía sozinho porque meus amigos preferiam ficar lá conversando com ele."
Aos 20 anos e a dois semestres de concluir a faculdade de Química, Lenine contou aos pais da intenção de trancar a universidade para apostar na carreira de cantor no Rio de Janeiro. O anúncio foi feito durante o jantar, momento em que seu Geraldo sempre realizava o que a família convencionou chamar de “plenária”. A mãe, Dona Dayse, não gostou da ideia do filho desistir do diploma e ir embora para outra cidade. Mas seu Geraldo não titubeou e olhando fixamente para o filho disse: “Por que você demorou tanto pra tomar essa decisão, rapaz? Perdeu todo esse tempo na faculdade!”.
Geraldo Pimentel faleceu no dia 16 de julho de 2015, com 93 anos, dormindo em sua própria cama. Lenine afirma que a base de criação do disco novo foi feita graças à tecnologia do afeto, que aprendeu com seu pai. "Este projeto firma a minha assinatura coletiva. A minha carreira é um lance familiar. Não só com a família que a gente nasce mas também com a família que a gente escolhe. Tem gente que está há trinta anos comigo. É isso o que move, é o que liga tudo. Foi feito com pessoas que estão juntas, que se movem juntas. É isso que me deixa mais vivo."
OLHO DE PEIXE
A chegada ao Rio foi acompanhada de dificuldades. Sua primeira moradia foi num apartamento em Botafogo com um grupo de amigos que também dividiam o sonho de viver de música. Começou a fazer contatos no meio artístico, participou de inúmeras rodas de samba, passava os dias compondo e procurando intérpretes para oferecer suas canções. Foi nessa época que conheceu e começou a namorar a jornalista Anna Barroso, sua esposa até hoje. Em 1983, gravou com Lula Queiroga o seu primeiro LP, chamado “Baque Solto”.
“O disco foi simplesmente ignorado pelo mercado, pela mídia e pelo público. Ninguém falava nada a respeito. Era como se eu não tivesse feito nada”, lembra.
Os tempos difíceis duraram mais do que o esperado e chegou a pensar que não conseguiria. Para poder ganhar uns trocados e pagar as contas, Lenine fez uns bicos. Foi tradutor de romances em inglês, roteirista do programa Os Trapalhões e até vendedor de livros, no esquema de porta em porta. Não fosse o trabalho de Anna, com quem já tinha estabelecido um relacionamento estável, aqueles tempos teriam sido muito mais difíceis. Foi graças ao apoio da mulher e à confiança que ela sempre depositou na vocação dele, que Lenine pôde continuar investindo no sonho que o tinha trazido ao Rio.
Levou dez anos para gravar o segundo disco, “Olho de Peixe” (1993), ao lado do amigo e compositor Marcos Suzano, Lenine considera esse o seu trabalho mais importante. Este longo hiato entre os dois discos tem uma explicação simples. Após o fracasso de “Baque Solto”, ele não encontrava gravadoras dispostas a dar espaço à sua música. Empresários e produtores diziam que o som dele era difícil de ser classificado. Nas gravadoras de rock, falavam que Lenine fazia MPB, nas de MPB, diziam que ele fazia rock. A solução foi ele mesmo produzir o disco e lançar pelo selo independente Velas, comandado pelo Ivan Lins. O trabalho virou cult no Brasil e serviu de cartão de visita para festivais nos Estados Unidos, Europa e Ásia.
De lá pra cá foram treze discos lançados, centenas de parcerias, músicas feitas especialmente para trilhas sonoras de novelas, de espetáculos de dança, assinou a produção de discos da Maria Rita, Chico César e Pedro Luís. Em 2004, foi à Paris convidado pelo projeto Carte Blanche, na Cité de La Musique — foi o segundo brasileiro a ser convidado, antes dele somente Caetano Veloso. Em 2013 celebrou 30 anos de carreira com shows e o lançamento de um documentário. Nessa trajetória Lenine colheu cinco prêmios Grammys e três Prêmios da Música Brasileira nas categorias Cantor e Álbum. E teve três filhos, João, Bruno e Bernardo, que também enveredaram para a música, mostrando que os acordes da família seguem harmoniosos.
EM TRÂNSITO
Chico abaixa a câmera e diz "Tem uma certa dimensão terapêutica nesse processo de se colocar em trânsito que..." e antes que ele pudesse concluir o comentário, Lenine estica os dois braços e responde festivo "Sim, completamente!" Uma das novidades do novo projeto é que pela primeira vez Lenine apresenta as canções sem a tradicional companhia do violão. A técnica de Lenine como violonista é uma de suas marcas, reconhecida pelo público do mundo todo. Neste trabalho ele teve que exorcizar o seu estilo para encarar algo completamente novo. Ao apresentar as músicas novas no palco, seus braços dançam cortando o ar enquanto ele se entrega totalmente ao cantar, acompanhado de Bruno Giorgi (guitarra), JR Tostoi (guitarra), Guila (baixo e synth) e Pantico Rocha (bateria). "E isso tem sido revelador, como na terapia", ele fala respondendo ao Chico. "Eu nunca tinha me permitido a fazer isso, e agora a minha relação com a música mudou por conta desses novos estímulos."
Pergunto como ele enxerga a indústria do entretenimento com a superexposição de alguns gêneros musicais em detrimento de outros. Ele vira a cabeça, olhando para a estante e pensa em voz alta "Como posso responder isso para você?" Respira fundo e continua, "Olha, não tá no meu papel julgar o que é bom ou ruim, mas sempre existiu uma música extremamente comercial ligada à indústria, um tipo de música mais efêmera. Eu prefiro acreditar que estou em um nicho diferente."
Mas Lenine é um artista do mainstream, com presença corrente nos espaços da mídia tradicional. "Há uma confusão como se eu fosse alguém da indústria, mas as pessoas não podem esquecer que eu sempre fui meu próprio produtor fonográfico porque lá no início a indústria me disse um Não."
Meticuloso com o próprio trabalho, ele sabe exatamente o que está fazendo. "Eu sempre procuro saber onde estou. Eu sei quem são vocês porque eu estudei quem são vocês e sei com quem estou falando. Por exemplo, lancei o single desse disco no programa da Fátima Bernardes. Foi uma coisa pensada. O nome da música se chama "Intolerância", e é, como você disse, uma crônica sobre os tempos de hoje. Achei que seria oportuno falar essas coisas para aquele público, falar sobre intolerância com eles. Entendeu?"
Eu pergunto "Você falou que estamos vivendo uma distopia, então qual é a saída para essa distopia?"
Ele se curva para frente, olha para baixo como que procurando as frases no tapete "A gente não vê possibilidade de mudança porque a dissimulação está em tudo. É difícil pra mim, depois de todos esses anos, perceber que não vai dar pra mudar as coisas assim de um dia pro outro." Então num rompante, Lenine levanta a cabeça e pergunta firme "Vocês viram This is America? [do Childish Gambino]. Olha só, esse cara botou as coisas em outro patamar. Eu assisti o clipe diversas vezes e na hora pensei 'Chegou o futuro com esse cara.' Isso vai tocar na rádio? Não vai, mas foda-se. Não é pra tocar na rádio, não importa se vai tocar na rádio. É outra coisa." Ele respira aliviado e retorna o corpo para trás. "Entendeu? É isso o que quero dizer. O que eu faço vai além de entreter. Eu continuo acreditando que a música é redentora mesmo. Se não acreditasse eu não continuaria fazendo."
Já havia passado mais de uma hora que estávamos sentados ali conversando. Tínhamos que ir embora pois Lenine daria mais outras entrevistas na sequência. Preliminar de lançamento de disco é assim, ele passa o dia dando entrevistas para diversas partes do país, ou numa coletiva com vários jornalistas, ou por telefone, ou presencialmente, como foi com a gente.
Ao nos despedirmos, reparo que na mesa de centro da sala há três livros grossos sobre plantas e flores. Faço um elogio à edição de um dos livros e Lenine se reaproxima contente me mostrando o que ele considera ser uma peça rara da bibliografia botânica. Além da família e da música, Lenine tem uma outra paixão: orquídeas. "Sou um orquidoido", ele conta que possui mais de 600 espécies de orquídeas no orquidário que tem em sua chácara no Vale das Videiras. Sua doidera interfere até nas turnês, pois agenda passar por determinadas cidades para encontrar plantas específicas e conversar com colecionadores como ele. As plantas que ganha ou compra são transportadas de caminhão, junto com o equipamento de som. Ele tem documentado as flores que encontra Brasil afora a partir das turnês que realiza, e planeja um dia publicar um livro com esse conteúdo. "Se a gente começar a falar sobre isso, aí vai ter que ser uma entrevista mais longa", ele diz rindo. "Na próxima vez vamos fazer uma entrevista só sobre isso", respondo. E então Lenine fecha "Opa, esse seria meu sonho! Vamos marcar? Amanhã!"