Experimentamos o Oku Abó
Uma vivência na cultura dos povos tradicionais de terreiro
Publicado em 07/2017
Para iniciar a nossa narrativa, sente-se e fique à vontade. Vamos começar contando a história de Olorum (Olódùmarè). Olo = senhor, Orum = astros. Senhor dos Astros. O criador e o princípio de tudo. Contam os mais velhos, que Olorum não conseguiu manter-se sozinho diante de sua própria grandeza. "Eu preciso ter companhia, preciso de alguém que se pareça comigo, que pense, que sinta, que chore e que ame." Foi aí que percebeu alguma coisa dentro dele pulsando, um coração.
Seu coração era justamente o astro em que nós vivemos: a Terra. "Meu coração é tão bonito, vou botar nele tudo o que tenho!" E assim Olorum começou a povoar nosso planeta, mandando conhecimento e bondade. Primeiro a comunicação. Através de uma explosão profunda é que surge Exu (Èsù). Esse Exu que chamam de diabo, na verdade, é o Big Bang! Exu é o comunicador, a boca do mundo, o dinamizador que faz os homens pensarem e questionarem.
E assim Olorum monta os homens: Exu, à sua imagem e semelhança, com seus vícios e virtudes. Exu sempre estava com o falo ereto (ou pau duro mesmo), Exu é a reprodução. Muitos dizem que ele usa garfos, mas ele usa o Ogó, uma espécie de madeira usada como um bastão mágico comunicador. Cada orixá, cada signo, acompanha uma cor, um número, um alimento, um acervo botânico.
Exu usa vermelho e preto. Quem é de Exu tem que vestir essas cores e vai se sentir bem. É a medicina do orixás, é cromoterapia. Sua numerologia? O 7. Seu vegetal, a cansação. Não se deve fazer nada sem antes comunicar a Exu. No terreiro, chamam esse “aviso” de despachar a porta. Cantam pra ele: "Exu, com licença para entrar na sua casa e ter uma boa festa, pra gente comemorar e ser feliz, pra que não haja briga, pra que dê tudo certo." Se tiver um pandedê danado no terreiro, já sabe: esqueceram de despachar a porta!
Foi por aí que seguiu a nossa jornada pela mitologia dos Orixás, na voz do mestre Aderbal Ashogun. Ori = cabeça, Axé = força, energia. Orixá = energia da cabeça. São 16 os orixás principais, mas as derivações são tantas que podem chegar a 265. É como um mapa astral, cada um tem o seu.
Era fevereiro quando embarcamos rumo a Itatiaia para experimentar o Oku Abó, vivência de 3 dias que propõe uma imersão na cultura dos povos tradicionais de matriz africana. Aderbal, Clarisse, Nádia e seus companheiros do terreiro comandado por Mãe Beata de Yemanjá foram nossos professores. João, nosso anfitrião na Escola de Permacultura Fazenda da Serra. Nosso grupo era misto. Muitos já eram frequentadores do candomblé, outros, curiosos para adentrar neste universo com empatia. Negros buscando identidade. Brancos conhecendo uma história que por anos sobrevive debaixo do preconceito cultural. E no fim do dia, o mesmo sentimento de amor entre nós. De união, aprofundamento e propagação desse conhecimento que deveria estar nas escolas.
Oku Abó (Ẹ káàbó) significa "bem-vindo" em yorubá. Não é sobre religião, é sobre a história da diáspora africana. Como os povos se comunicavam, dançavam, se alimentavam e se organizavam em sociedade. Tudo baseado na hierarquia dos Orixás. A cultura local das cidades é reproduzida dentro do território do Candomblé. É através dos contos de cada Orixá que vamos fazendo as conexões com os nossos hábitos. Em 16 atos, a aventura da humanidade. Exatamente da mesma maneira que os povos exerciam suas atividades é que nossas aulas se dão: cantando, contando histórias, dormindo e acordando juntos, aprendendo, nos alimentando, nos divertindo, com muita música e dança.
A estrutura dos terreiros é muito peculiar. Existe um alicerce social hierarquizado, que, no caso do Ilê Omi Oju Aro, onde vivem nossos professores, é o matriarcado. Em qualquer ação dentro do terreiro, a autoridade maior é a Yalorixá ou Babalorixá. A liderança é composta, em sua maioria, por cientistas, médicas espirituais ou mães de santos. Ya+Olo+Ri+Xá = mãe e senhora da cabeça, do raciocínio, a única ferramenta que nos diferencia dos outros seres.
O instinto maternal é valorizado dentro dessa estrutura. Mesmo que o homem seja o líder religioso, sempre tem uma mulher responsável por manter a ordem da comunidade. O empoderamento feminino vem da referência dos Orixás, onde não havia privilégios por conta de gênero. Xango e Yansã poderiam ter o mesmo comportamento de se relacionarem com outros parceiros, por exemplo. O gênero humano não necessariamente vai coincidir com o gênero do seu guia espiritual, um homem pode ser filho de Yansã e vai bater cabeça como as mulheres, por exemplo.
No segundo ato, Olorum percebe que precisava pôr regras em seu coração, já que por si só, Exu era problemático. Afinal, se ele quer gente morando na Terra, precisa garantir que essas pessoas vão sobreviver. Pensou em um signo que pudesse desenvolver tecnologias. Ogum - quem primeiro inventou o facão, quem primeiro inventou o arado, a foice. Ogum, o Deus do ferro. Ogum, o conhecimento do general e da ira. No candomblé, não existem os pecados capitais da Igreja Católica. Com auto-conhecimento, a ira tem o seu valor. Ogum é conquista. Se veste de azul, se veste com mariô (folha do dendê) e não teme a morte.
Seu melhor amigo: Oxossi. O esquematizador, o mapeador da natureza, o caçador. Oxossi foi o primeiro Ojé, ou seja, o primeiro a dominar a conexão com os ancestrais da Terra. Ele detém uma varinha de amoreira com o poder de controlar os mortos. Com Ogum e Oxossi, nosso planeta estava pronto para ser povoado. Juntos, eles desenvolveram a sociedade.
E se alguém se machucasse nessa história? É aí que entra a parte mais ampla do conhecimento de matriz africana: a conexão entre os vegetais e o animais, a medicina sagrada. Dizem que Osanyin (ou Ossanha) tem uma perna só, mas nem por isso era excluído. Era ele que detinha o conhecimento da medicina. É o signo que nos mostra a importância da acessibilidade. Ensinou o Abó, a medicina das infusões. A defumação, medicina utilizada para equilibrar espaços. Cada folha tem um propósito. Os inaladores, os óleos essenciais. Osanyin, o alquimista. Suas cores são verde e branco.
Aderbal ensina que a medicina dos povos tradicionais de terreiro não é contra a medicina científica. A medicina africana é a da prevenção, é acordar, cumprir com seu ofício, comer bem, estar perto da sua família e amigos, dançar, dar risadas. No fim do dia, não é necessário ir ao SUS. O alimento é a medicina. O Oráculo é o diagnóstico médico holístico. O jogo de búzios, a ferramenta. O patuá é um amuleto feito desse diagnóstico, cada signo tem o seu.
O ato de incorporar é um tabu entre os participantes por ser um processo extremamente individual. O que chamamos popularmente de "pegar santo" é um estado de meditação conduzido através de rituais cânticos, assim como os mantras para os budistas.
Aderbal nos contou que esteve em templos na China, onde foi muito bem recebido e pôde fazer analogias com os ritos dessa cultura. Não há intolerância no Candomblé. Mãe Beata de Yemanjá é adepta do reiki e teve ligação com as bruxas Wicca quando passou por Berlim. Os índios foram os professores dos escravos para sobreviver nos quilombos. As roupas com anágua, usadas pelas mulheres nos terreiros, são influência das sinhazinhas na época do Brasil Colônia - não existe esse costume na África. A palavra religião aprisiona.
O projeto Oku Abó tem como principal pilar levar educação ambiental para os cultos afro e desmistificar algumas práticas. A mutilação de animais é um mal deste século. O ensinamento original prega uma alimentação feita com propósito e sem desperdício. Em cada refeição, um cântico com pedido de desculpa e agradecimento pela transição de energia. Só se mata um animal de grande porte por ano.
As pessoas passaram a fazer oferendas na natureza indiscriminadamente por contra própria. Não se pode homenagear Oxum, orixá que reina sobre as águas doces, sujando os rios. Aderbal vem fazendo um trabalho de conscientização com os adeptos do Candomblé e mutirões de recuperação em espaços impactados por obras religiosas. Tem um ditado em yorubá que ratifica a nossa consciência ecológica: "Kó Si Ewé Kó Si Órisá" = Onde não tem água e não tem folha, não tem Orixá.
Um fato de suma importância que aprendemos nas aulas é que, no período colonial, a Floresta da Tijuca abrigava a monocultura de café. Como já sabemos o que acontece nesse tipo de plantio, com o tempo, a terra ficou imprópria e um major colocou seis escravos para reflorestar a região que hoje conhecemos como a quarta maior área verde urbana do país. Nesse processo de reflorestamento, todas as espécies lá plantadas foram escolhidas de acordo com a botânica do Orixás, com lírios próximos de cachoeiras, por exemplo.
Outra curiosidade que aprendi na vivência é a origem da palavra "uó": ela vem de "ewó", que em yorubá significa “restrição”. Quer dizer que algo me faz mal, eu não me dou bem com isso, e virou gíria, "fulano é uó!".
Eu poderia ficar horas aqui transcrevendo minhas anotações dessa vivência para vocês, mas meu melhor conselho e desejo é: VIVAM ISSO! Pesquisem, conversem com pessoas próximas, visitem um terreiro. É uma cultura muito rica e cheia de influências no nosso dia-a-dia. Nossa maior falha é não ter essa diversidade no nosso processo educacional tradicional. Essa ignorância faz com que nos dias de hoje ainda existam casos de racismo cultural religioso - e não tem nada mais uó que isso.