FAÇA SAMBA COMO UMA GAROTA
ALMOÇO NO BOTECÃO COM AS MINAS DO SAMBA QUE ELAS QUEREM
Publicado em 04/2019
Domingueira de março, aquele clima bom. Carnaval passou e o encontro com as meninas, enfim, fluiu. Já estava há algum tempo em busca desse papo, mas como as agendas não batiam, deixamos pra depois da ressaca.
A cena das rodas de samba - bem como a do pagode, por assim dizer - sempre foi marcada pela massiva presença de homens e estereótipos bem definidos em relação às mulheres, como cantoras ou passistas, mas raramente como instrumentistas. Se formos considerar a quantidade de rodas inteiras feitas por mulheres, fica mais latente ainda, e daí vem a importância de coletivos como o Samba Que Elas Querem.
Depois de pedirmos algumas cervejas, iniciamos a prosa. A ideia era descobrir como Gegé (tantan), Sil (vocal), Mari (percussão), Júlia (percussão e vocal), Bárbara (violão e vocal), Karina (flauta), Gi (percussão) e Ceci (cavaquinho) iniciaram sua relação com o Samba. Uma das características comuns da maior parte do grupo foi o envolvimento dos familiares delas com a música, o que levou-as a tocarem instrumentos desde novas. “Enquanto uma cantava na rádio com a avó, outra ouvia vinis no sistema de som do pai depois do futebol de domingo, tinha a que demorou 20 anos pra se envolver, mas tocava em bandas de rock só com mulheres desde a adolescência, aquela que ia pro Cacique desde criancinha… Várias trajetórias diferentes, num mesmo mundo”, contam elas.
Dessa vivência nas rodas e na rua que cada uma percebeu a necessidade de fazerem um projeto voltado para uma pauta ainda invisibilizada, mesmo com a existência de grupos como o Moça Prosa - coletivo parceiro delas, hoje. Sil dá o papo: “o Moça Prosa, de alguma maneira, foi uma referência e parceira. Mas estamos num momento de construir referências femininas dentro do Samba. Isso é um desafio que a gente descobriu juntas. A gente fez parte desse estalo de que precisamos ter essas referências e estimular outras mulheres. Temos exemplos de mulheres de outros estados e cidades que começaram a se movimentar por conta disso. Antes era mais inconsciente, era uma vontade de ‘vamos fazer juntas’, depois veio o entendimento da importância do que estávamos fazendo. Um bom exemplo: perceber que as primeiras filas são somente de mulheres nas nossas rodas.”
“A gente já se esbarrava em rodas como o Bilhetinho, Pedra do Sal e Vaca Atolada. Mas não chegava nem a ser embrionário, era um desejo. Depois passamos a trabalhar nossas conexões, até que chegamos na criação de um projeto que abraçou todas as minas, mães, crianças, senhoras”, diz Júlia.
Enxergaram que esse passo devia ser dado, começaram a trocar entre si, criaram um grupo no Facebook, mas a oportunidade perfeita surgiu com o aniversário da Sil. Bárbara e Mari dizem: “As meninas se organizaram pra rolar uma canja de todo mundo, Mari chegou e canjou, no meio do segundo set, foi muito fluido. Todo mundo curtiu e disse que esperava que rolasse de novo. Depois disso, lançamos oficialmente o SQEQ na primeira edição do Passeio é Público e dali surgiram vários convites pra tocar no Ganjah. Foi muito de fora pra dentro.”
O foco delas hoje é aumentar a relação com outros grupos e rodas de mulheres, criar uma rede que possibilite um circuito de facilitação de idas e vindas para diversos lugares pelo Rio. Devido aos nossos famigerados prefeito e governador, as coisas que já não são tão fáceis, estão mais complexas, ainda mais para mulheres. Karina e Sílvia falam, “sempre houveram mulheres que botaram a cara no Samba, o sistema provoca a gente a competir entre si, no corpo, na voz, em tudo. Isso provêm muito dos caras e estamos em outro pensamento agora. Olhando pra Beth Carvalho, é foda, tem que ser muito raçuda pra tocar cavaquinho no meio de uma porrada de homem naquela época. Ainda assim, ela é madrinha de inúmeros caras, mas nenhuma mulher. Ainda há muitos desafios.”
Ao que Mari complementa, “nossa relação com outras rodas de samba é algo voltado para outras rodas de mulheres, além de termos participado da homenagem pra Dona Ivone Lara, parte de ir tocar em lonas e centros culturais, e com isso, atrair outras mulheres.”
No meio desses desafios há uma rede de parceiros que se dispõe a fortalecer por conta desse posicionamento delas. “Muita gente chega se oferecendo pra ajudar de alguma forma, já filmamos 3 horas de roda com uma galera que colou e fortaleceu, levaram drone, várias câmeras e outros equipamentos. A vibe é muito convidativa pra isso”, reforça Karina.
Essa perspectiva de colaboração é o que faz a energia delas pulsar, tanto nos projetos, como o disco que está sendo preparado, “vai rolar um disco, e nosso discurso precisa estar afinado com tudo que a gente se relaciona. O que estamos tocando, onde, quando, como, etc”, quanto na forma de ver o que significa movimentar a cena, “o samba é muito visto como lugar de pessoas que só querem curtir a vida, malandros, boêmios. Um grande desafio é mudar a mente das pessoas para pagarem com objetivo de curtir uma roda de samba, de irem a um teatro e pagar o ingresso. Óbvio que o Samba precisa estar na rua, mas vemos que existe uma importância do Samba e de quem faz esse corre em serem vistos como trabalho e trabalhador. O meio popular é quem abraça o gênero, então é desafiador monetizar a cena. Precisamos construir um pensamento geral de que pagar o evento é valorizar o trabalho de cada pessoa envolvida.”
Nesse momento, engatamos um papo sobre momentos marcantes na história delas. Sil e Bárbara contam que “teve uma matéria que saiu no The New York Times, a gente tinha 4 meses juntas, foi super bacana e deu um puta ânimo, porque ainda não tínhamos sido procuradas por nenhum jornal daqui do Rio. Pedra do Sal também foi especial, ainda mais porque nem fizemos evento nas redes sociais, por conta da pressão do prefeito e da polícia. Ainda assim, foi incrível, todo mundo adorou e foi uma energia muito boa.”
A energia coletiva que rola é, sem dúvida alguma, um dos elementos que mais permearam nossa troca. Durante esse início de tarde refrescado pela cerva que a gente bebeu, deu pra sacar que é dessa força intangível que surge uma reflexão crítica em relação às limitações e aprendizados acumulados no decorrer da carreira do grupo, muito alinhado no discurso.
“Quando vamos pra rua, não temos preocupação no quanto vamos ganhar, porque é um risco grande, é algo mais de posicionamento e atuação. Fazemos nosso sustento dos outros trabalhos. A ideia é separar esse caixa pra fazer investimentos, assim como a gente tem se relacionado com algumas marcas e editais. E claro, evitar eventos que não valem o stress”, falam Sil, Júlia e Mari.
Ao olhar para a frente, o SQEQ é bem calmo. Entendem a importância do dia a dia e de pautar aquilo que tem importância pra si como coletivo e para o público, e assim construíram uma forte relação com a militância, na política e no samba. Realizam a complementação disso através das redes sociais, por terem a compreensão que conteúdo hoje é o que amplia a relevância de quem se expressa: “Procuramos deixar claro pra todos o que pensamos, em relação a música e aos lugares que nos apresentamos, obviamente, também seguimos uma linha de compartilhar conteúdos que fundamentam a gente como artistas de posicionamento. Na semana do 8M ao 14M, compartilhamos diversos textos e produzimos posts sobre Marielle e nossas lutas como mulheres, até culminar na nossa apresentação na Cinelândia em tributo a Mari.”
A verdade é que eu queria ter passado mais tempo trocando ideia, as meninas são incríveis e têm muito mais histórias e opinião pra compartilhar. Pra quem ainda não colou, vale lembrar que elas acabaram de soltar uma agenda parcial no instagram.
“Nós somos mulheres de todas as cores, de várias idades e de muitos amores. Lembro de Dandara, mulher foda que eu sei, de Elza Soares, mulher fora da lei. Lembro Marielle valente e guerreira, de Xica da Silva, toda mulher brasileira…”