Expo Tuba
27/06/15 - "Memorial Leve" Por Pedro Staite
Publicado em 07/2015
Meu irmão, Raphael Hora (ou só Tuba), se matou no dia 13 de dezembro de 2014. Abriu mão da diversão inalienável de viver — e isso é um direito dele, também inalienável — por motivos que evidentemente fogem à explicação de qualquer pessoa ao redor. Muita gente se sentiu culpada, mas a culpa, se é de alguém, é de todo mundo, então não é de ninguém. E isso é o bastante para diluir qualquer coisa. As razões que o levaram a se suicidar compõem um arquivo que morreu com ele, e tentar entender os motivos é uma busca que, nesse momento, não faz sentido empreender, porque não existe resultado satisfatório para sair disso.
Uma constatação interna que aflorou de maneira absurda com a tragédia é a de que o Raphael era, é e vai ser sempre muito querido. O primeiro momento em que a dor pareceu menos irreversível ocorreu quando uma profusão de gente de tudo quanto é grupo, idade e credo veio falar comigo e com a minha mãe oferecendo ajuda e consolo. Bem ou mal, a torrente de carinho que dedicavam a ele foi direcionada para a nossa família, e esse conforto foi inestimável.
A mente do meu irmão sempre foi muito inquieta. Ele vivia criando, desmontando, transplantando e modificando ideias. Com uma caneta de nanquim na mão e absolutamente qualquer superfície, ele punha numa imagem — que poderia ser uma raposa triste ou um halterofilista em apuros por causa de um passarinho — muita coisa dele mesmo.
Era sempre algo muito bonito, mesmo quando bizarro. Ele tinha a capacidade de extrair da tristeza e da depressão a graça, a beleza e outras rasgos bons do engenho humano. Talvez viver seja exatamente isto: rir quando a desgraça estiver distraída. E as suas ilustrações descreviam (se bobear até de maneira involuntária, como uma psicografia de si mesmo) um mundo horroroso, mas às vezes belo; depressivo, mas de vez em quando engraçado; bizarro, mas sem sublimar uma ternura que teima em aparecer.
O talento dele é uma das poucas coisas unânimes que eu já vi. Não conheço um infeliz que tenha falado: “Ah, desenha direitinho.” Todos os comentários a respeito da arte dele vinham com algum tipo de arrebatamento, isso eu vi mil vezes.
No dia do enterro, alguns amigos maravilhosos me sugeriram fazer uma exposição em homenagem ao meu irmão. A ideia era ao mesmo tempo prestar um tributo a ele e angariar fundos para o Instituto Família Staite à Beira da Falência, presidida pela matriarca Dulce e por mim. Foi uma excelente ideia, um vislumbre daquele mesmo dia (com centenas de pessoas incríveis reunidas por um motivo horroroso) em uma ocasião revigorante — as mesmas pessoas incríveis reunidas pela saudade, um motivo melhor.
Tentamos fazer a exposição, logo nos meses seguintes, na Comuna (ou no Comuna, ou em Comuna, não sei o gênero), que, a princípio, seria o lugar ideal porque ele vivia lá. Mas um conflito feroz de agenda impossibilitou a batida do martelo e a ideia da exposição foi perdendo o viço.
Um dia, o meu pai, que reúne uma mente animada e uma memória infalível, voltou a perguntar sobre o evento. Minha resposta caminhava para a mais implacável das impotências quando ele me interrompeu como se não tivesse ouvido nada:
— Por que você não faz na oficina?
Minha família paterna trabalha em uma oficina mecânica em Botafogo provavelmente desde os tempos do cabriolé (naquele tempo, o trabalho devia ser menos complexo), e nós dois, na infância, passávamos tardes inteiras brincando de dirigir os carros quebrados. Quando crescemos, passamos a ensaiar com a nossa banda lá, dividindo o espaço com carros quebrados da geração seguinte. O lugar, concluindo, era extremamente simbólico, perfeito.
Eu, Rachel (minha namorada incrível) e nossos amigos começamos a discutir os assuntos da “Expo Tuba”, desde a curadoria (que foi falha, pois deixamos a Caravela de fora), até os esquemas de fechamento das artes, de impressão e do fornecimento de víveres (petiscos e birinaites), que seriam garantidos pelo bar ao lado, cuja identidade visual também havia sido feita pelo meu irmão.
Foi ótimo tudo ter dado errado antes de dar certo. A oficina em si já estava um espetáculo à parte, pois tinha até uma moto pendurada no teto: não tinha como ser mais bacanudo. Eu, Rachel e uma amiga, a Mariana, fomos à Saara comprar ainda mais enfeites (como se a moto pendurada não fosse o suficiente), e tudo ficou lindo.
A Expo Tuba, no tempo geológico e na minha cabeça, durou um momento infinitesimal. Mas o esforço conjunto foi um exemplo glorioso de que dá para colocar amor em tudo. Chorar de saudades é tão digno quanto rir com saudades. Mas essa segunda opção é muito melhor.