Manifestações Antirracistas e Antifascistas
Relatos dos atos no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília
Publicado em 06/2020
No Domingo dia 07 de junho estivemos, à despeito das orientações da Organização Mundial de Saúde, reunidos em diversas capitais brasileiras com o intuito de reinvindicar que Vidas Negras Importam. É um pouco confuso sair para manifestar durante uma crise sanitária mundial como a que estamos enfrentando, contudo entendemos que essa não é a única crise que atravessamos nesse país. Há também a crise do racismo, de polícias assassinas, da falta de emprego, da precarização do trabalho, da fome, da guerra à pobreza travestida de guerra às drogas, da ascenção do fascismo e do capital. Partindo do entendimento que essas crises se atravessam por cima de corpos que tem cor, endereço e sobretudo histórias, vínculos e direito de ser e existir formamos nós do I Hate Flash um corpo no intuito de ocupar a rua e para nos ampararmos nesse momento enquanto coletivo. Fomos num ato afirmativo para posicionar nossos focos, nossas energias e comunicar a presença e insistência desse desejo por seguirmos vivos.
Abrimos espaço para nossos integrantes escreverem um parágrafo sobre essa experiência.
PAULO
Fiquei totalmente espantado quando vi a quantidade de policiais presentes antes mesmo do ato começar, congelei por alguns instantes.
Lembrei dos meus sobrinhos e de toda a importância da minha presença nesses atos, pensei no risco ao qual estava exposto. No entanto, são os mesmo riscos que sofro todos os dias a partir do momento no qual decido por meu pé na rua.
Eu decidi ir na fé, morrendo de medo de tudo dar merda.
Então eu vi um lado da Avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, se aglomerar, vi as pessoas se alinharem sob o sol, vi seus olhos firmes encarando os policiais, ouvi seus gritos de indignação, os gritos que eram liderados e que ecoavam em coral,eu vi suas placas dizendo: "BASTA! PAREM DE NOS MATAR! JUSTIÇA!". Havia um mar de punhos cerrados para os céus, o tempo corria diferente, ia esvaindo. Tudo se tornava apenas uma coisa, uma voz, uma mensagem, uma força. E em cada nome entoado sendo exigido justiça, outros milhares de nomes também eram lembrados no silêncio pelos nossos ancestrais.
Mesmo com medo da polícia em maior número eu me senti acolhido e seguro por curtos períodos de tempo ao lado de pessoas que compartilham do mesmo sentimento que eu.
ROMA
Poucas coisas me tirariam de casa durante a pandemia. Nessa curta lista, os poucos itens enumerados estariam relacionadas à pessoas que amo estarem em em perigo, e isso eu nunca permitiria.
O quanto antes lutarmos, mais cedo será a nossa vitória. Sendo assim, fui um dos primeiros a chegar. Queria vivenciar e testemunhar tudo desde o início, ser parte da tinta da caneta que escreve a história. Assistir à Praça Onze se encher mais umas vez de pessoas negras clamando por uma liberdade que nunca as foi dada, foi viajar no tempo e sentir a mesma energia de 100 anos atrás. Nossos corações estavam batendo em uma sincronia digna de escola de samba, naquele ritmo acelerado de quem tem pressa. Se um dia as cabeças dos nossos pais se curvaram até o chão pela força, hoje as nossos punhos se erguem por orgulho.
Caminhar na Avenida Presidente Vargas junto dos meus, me fez entender que a cada gota de sol sob a terra formamos um mar, um mar de gente disposta a erradicar o racismo de uma vez por todas.
GUETTO
Em defesa da democracia, pelo antirracismo e antifascismo manifestantes saem às ruas em plena pandemia do novo covid-19 para demonstração da união popular.
(Não nos calarão)
Mesmo com o risco de contágio do novo vírus, que por eu ser morador de periferia a ameaça está na minha própria casa, me levantei no dia sete receoso do que poderia encontrar na manifestação. Os meus registros foram feitos em apoio ao manifestantes negros, as crianças, as mães, jovens e aos moradores de rua que inundavam as ruas do centro de São Paulo.
Pude registrar a angústia dos ativistas negros que liberaram gritos de repúdio e, do outro lado havia uma misto de nervosismo e tensão por parte dos policiais. Apesar de um breve desentendimento entre um grupo isolado de manifestantes, o ato em si foi Pacífico e carregava consigo a legitimidade da força da povo.
DIEGO MOURA
“VIM PRA RUA PORQUE FORAM NOS MATAR EM CASA”.
Estava escrito em um cartaz que um cara preto segurava com as duas mãos pro alto enquanto andava pela Presidente Vargas, como se estivesse rendido, como se estivesse sendo vendido, como se pedisse socorro. Correndo mais um maldito risco.
Chegar no Centro não foi nem um pouco parecido como tantas vezes fiz nos últimos 15 anos. Na rua sempre me senti em segurança. Livre.
Cumprir a orientação de permanecer em casa em isolamento não me garante estar protegido da pandemia quando preciso ir ao mercado mesmo com todas as precauções.
A decisão de me juntar os meus amigos e as pessoas que estivessem na rua durante a manifestação não parecia ter alternativa. Decidi correr mais um maldito risco. O cartaz foi a resposta de que eu não estaria nem com medo e muito menos me arriscando, sozinho.
Éramos menos do que a metade da quantidade de policiais, como se pudéssemos fazer alguma coisa contra as armas que carregavam.
Se eles podem ir nos matar em casa sozinhos, correndo risco, na rua estaremos juntos, encontrando o caminho para nos sentir seguros.
MARÍLIA
Medo. Foi esse o primeiro sentimento que me veio à mente quando eu decidi cobrir os protestos. Nós, pretos, aprendemos desde criança que somos e seremos tratados diferentes pela cor da nossa pele. Eu coloquei crachás de diferentes trabalhos pra aumentar a impressão de que eu tava lá trabalhando, caso a polícia viesse. Foi minha primeira vez fotografando um protesto e também a primeira vez que eu participei de um protesto antirracista. Quando eu cheguei e vi a organização, vi aquele monte de gente preta se defendendo, se cuidando com comida, água, máscaras, cartazes, pretos advogados na frente, brancos fazendo uma barreira entre os pretos e a polícia, mães que perderam os filhos levantando cartazes e até momentos em que os moradores de rua se aproximaram para participar também, eu me senti acolhida. Me senti segura. Senti que somos muitos, de cores, classes e crenças diferentes. Meu primeiro protesto como mulher negra, bissexual e fotógrafa foi assustador, informativo, acolhedor e me mostrou que somos nós por nós. Temos que lutar para conquistarmos nossos direitos e um futuro com menos medo.
BLEIA
Eu não sei o que é sofrer preconceito pela minha cor. Nada me foi negado até por conta da classe social que ocupo o que me dá mais privilégios além de ser branca. Mas já sofri e sofro preconceitos de gênero e orientação sexual. Pessoas pensam e esperam pouco de mim por eu ser mulher e por ser sapatão. Lembram da gente na hora do feminicídio e da homofobia ou em datas comemorativas específicas, mas no dia a dia eu sei o que é sentir medo ao passar por certos lugares. O que é olharem como se fôssemos uma ameaça à ser restringida, evitada ou erradicada. Ao estudar a luta das mulheres e dos LGBTI+ muito se fala da luta dos negros. Essa luta inspirou muitas outras e como Marielle Franco uma vez disse “eu sou porque nós somos”. Gosto de pensar também que “eu sou porque muitos foram”. Junho também é o mês da luta LGBTI+ e Marsha P Jhonson, mulher transexual negra foi ao fronte da revolução pelos meus direitos de um futuro digno sendo abertamente lésbica. Em um governo tão segregador, racista, homofóbico e meritocrata, eu, mulher branca, me sinto no dever de estar do lado e no fronte da luta daqueles que lutam e lutaram por mim também.
BEL
Eu tive medo de ir. Tive medo que fosse 2013 de novo: o povo na rua pelos seus direitos e as pautas sociais progressistas sendo engolidas pela agenda conservadora. E da conservadora pra neofascista. Me assombrou pensar em ser um desserviço justo na causa que eu acredito. Dar pano pra golpe, piorar a pandemia. Karen foi o anjo responsável por eu decidir - como diria outra amiga - “colocar meu corpinho onde está meu discurso”.
Fui. Ainda bem que fui. Palavras de ordem antirracismo reverberaram pela Esplanada dos Ministérios. Pessoas pelas vidas pretas, a favor da democracia e da representatividade, contra o autoritarismo, a mentira e o descaso com o povo. Cansados. Exaustos. Mas firmes. Juntos. Se eu tive medo de 2020 parecer com 2013, eu não esperava que a semelhança seria justamente reacender em mim essa esperança que ficou 7 anos sem dar as caras - mesmo que eu fosse às ruas - de ver o povo ser soberano. Sim, a gente precisa ser organizado, articulado, estratégico e mobilizado pra certas coisas. Pra outras, basta ser humano. Basta.
HENRIQUE
Mesmo com a consciência do perigo em mente e a truculência policial sempre presente, corpos pretos e periféricos angustiados pelo Estado e governo genocida, atravessaram São Paulo rumo ao Largo da Batata para o ato Mais Democracia - Antifascista e Anti Racista. Já no Largo, era infelizmente visível e explícito a cor da pele predominante ali. Além deles, moradores de determinadas regiões da capital, regados de privilégios concedidos pela branquitude e condição social, também se juntaram. Este número ficou ainda mais evidente no momento no qual líderes de movimentos sociais pediram para que todas as pessoas de pele branca se abaixassem, como forma de respeito ao movimento preto. Pelo fim do genocídio do povo preto, pobre, quilombola e indígena.