Abraço Cultural ensina idiomas e renova a vida de refugiados e alunos
ONG completa um ano no Rio de Janeiro com mais de 350 alunos e inaugura nova sede
Publicado em 03/2017
Primeiro período do curso de inglês é aquilo: verbo to be, the book is on the table, umas músicas da Taylor Swift para praticar e tal. Bem, se você estiver no Abraço Cultural, na verdade, vai aprender inglês estudando tudo sobre a cultura árabe e africana - nada de Friends, Britney Spears ou comédias românticas da Julia Roberts.
Nascido em São Paulo e filho da ONG Atados, o curso de idiomas com professores refugiados está completando um ano no Rio de Janeiro com um balanço de 28 turmas (entre cursos regulares e intensivos), 11 professores contratados e 350 alunos falando inglês, francês, espanhol ou árabe. As primeiras turmas começaram em 2016 na Casa Dror, um centro cultural da comunidade judaica, juvenil e progressista, e na ONG Meu Rio, ambos em Botafogo. Agora, a ONG faz aniversário e começa 2017 com um espaço próprio, na Tijuca, conquistado em uma parceria com o Brasas, e o desejo de contratar mais professores. As aulas começam na próxima semana e ainda dá tempo de se inscrever, através deste site.
“Estamos abrindo 25 turmas! E pretendemos contratar mais cinco professores. Atualmente são nove: três sírios, dois ensinando árabe e uma, inglês; três congoleses, da República Democrática do Congo, que dão aula de francês; dois venezuelanos que ensinam espanhol e uma professora da Gâmbia responsável por uma turma de inglês. Queremos contratar mais um professor de árabe, um de inglês e três de francês. O francês está bombando!”, conta Tatiana Rodrigues, de 27 anos, coordenadora do Abraço Cultural Rio.
“No começo, a gente percebia que os alunos procuravam (o Abraço) pela causa. Foi um sucesso, enchemos todas as turmas. Desde então, notamos uma mudança no público. Ainda são pessoas que se sensibilizam com a causa, mas também tem gente que está vindo por ser um curso de idiomas bom e acessível, principalmente para as turmas de inglês. É bacana as pessoas descobrirem que os professores são nativos, refugiados, e viverem outras culturas”, explica.
A própria metodologia comunicativa estimula essa troca cultural. O material didático, desenvolvido pela equipe pedagógica de voluntários e pelos professores, tem bastante conteúdo de outras culturas, que, normalmente, não aparece naqueles oferecidos pelas escolas de idiomas tradicionais. “Você estuda francês, mas não vai aprender sobre a Torre Eiffel ou uma receita de crepe. Vai aprender sobre o Vietnã, sobre o Senegal, sobre escritores e políticos africanos e receitas haitianas, por exemplo”, comenta Tati. “Isso é muito importante para o professor porque ele fala de uma cultura que é própria. Ele consegue se apropriar desse material didático e passar para os alunos. A Cacau, nossa coordenadora pedagógica, gosta de falar que, na verdade, a língua é um meio de passar a cultura. Acho que o Abraço Cultural é bem isso: no fim das contas, é apresentar para a população essas culturas que estão tão à parte do nosso dia-a-dia. A gente não ouve falar de filmes, cinema, literatura e culinária de países africanos, por exemplo”, pontua.
E os professores a-d-o-r-a-m falar sobre a história de seus países, seus ídolos e costumes. Audrey Mandala é congolês de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, tem 27 anos de idade, dois de Brasil e ensina francês no Abraço Cultural. Audrey gosta tanto de contar histórias que está escrevendo um livro de poemas.
“Meu sonho é compartilhar o que eu tenho, é ajudar o mundo a conhecer um pouco melhor a África. Porque a única pessoa que sabe contar a própria história da África é o povo africano. Eu quero manter esse contato com o povo estrangeiro, sendo povo africano, para transmitir o conhecimento que eu tenho. Porque a África é uma identidade, não é só uma região”, diz o jovem, que estudava computação, era pastor de uma igreja e trabalhava em uma empresa de construção no Congo.
Audrey chegou no Rio em 19 de fevereiro de 2015, após ser preso e perseguido por ter participado de manifestações contra o atual presidente do país, Denis Sassou Nguesso, que se recusa a deixar o poder, mesmo após o final de seu segundo mandato consecutivo. “É República Democrática (do Congo), mas a democracia, na verdade, não existe”, diz, com um riso sem graça. O Brasil era a rota de saída mais fácil, e aqui Audrey ainda poderia morar com um de seus oito irmãos, que se refugiou no Rio após passar por problemas parecidos com os dele no Congo, há mais de 20 anos.
Foi através de alguns amigos que Audrey soube do projeto Abraço Cultural, no início de 2016. “Quando eu cheguei no Abraço, a primeira coisa não foi o dinheiro, foi o respeito, que é a coisa mais preciosa para mim. Respeito e consideração, foi o que eu encontrei aqui. Nos tratam bem, como um ser humano. O Abraço não quer complicar as coisas, quer te ajudar a mostrar quem você é de verdade e te ajudar a recuperar sua identidade e mostrá-la para o mundo. Na sala de aula, é incrível porque compartilhamos tudo. É calor, é amor, é uma troca. Nisso tudo, há uma revalorização do ser humano, uma reconquista da confiança”, se declara.
A auto confiança é testada diariamente, em diversos ambientes e situações, especialmente por Audrey ser negro e estrangeiro. “Tem um poema que escrevi que fala sobre isso. Não é fácil a vida no Brasil para um negro africano. É uma experiência muito forte, muito difícil, mas eu me sinto forte. Porque não adianta tentar mudar o outro, é melhor eu procurar um jeito de viver que realmente me proteja. Para quem é mais frágil, dói muito, mas para um Mandala isso é um motivo para escrever para ajudar as pessoas”, afirma.
Atualmente, os congoleses representam a maioria dos refugiados no Rio de Janeiro. Em Brás de Pina, na Zona Norte do Rio, eles formaram uma comunidade na Assembleia de Deus Betesda Internacional, igreja evangélica que atualmente reúne cerca de 250 africanos, a maioria do Congo e de Angola. Além de ministrar cultos em francês e lingala (segunda língua oficial do Congo), a comunidade é um grande centro de cultura africana e reforça a identidade dos refugiados.
Foi lá também que ele (re)conheceu Medie, uma moça bonita que ele tinha visto uma vez no campus da universidade em que estudava, em Kinshasa, e, surpreendentemente, era a jornalista da igreja carioca. “Ela me entrevistou e uma semana depois viramos amigos. Na segunda semana, começamos a namorar. E com uma semana de namoro, nós noivamos”, conta, rindo. No Congo, para o casamento acontecer, o noivo precisa pagar um dote à família da noiva. Após um ano de noivado e dinheiro do dote certinho, Medie e Audrey se casaram. Com um mês de casados, um teste de gravidez deu positivo! Chloé Mandala nasceu em 19 de fevereiro de 2017, exatamente no dia em que seu pai completou dois anos no Brasil.
Conversamos com o venezuelano Ender Molina, de 28 anos, no dia em que ele completou dois anos no Rio de Janeiro, semanas antes do Carnaval. Formado em Engenharia Civil, precisou deixar seu país por problemas que enfrentou na empresa onde trabalhava há dois anos - ele chegou até a receber ameaças, só porque seu pensamento era contrário ao atual governo. Aterrissou no Rio com a irmã e um amigo, com quem mora até hoje. Além deles, o Abraço Cultural é sua família no Brasil, segundo palavras do próprio. “É um grupo muito bom para o trabalho e também porque eu consegui me relacionar mais com pessoas brasileiras e aprender coisas novas. Mudou 100% a minha vida. A diferença de antes (do Abraço) é muita. Eu estava desorientado, não sabia o que fazer, tinha muitas dificuldades econômicas e emocionais”, conta.
As aulas o ajudaram a redescobrir o próprio idioma, estudá-lo mais a fundo, e aumentaram seu interesse pela literatura latinoamericana. “Eu não sabia que meu idioma era tão rico. Até eu aprendi espanhol”, brinca. Tímido, Ender ainda está se acostumando com a cultura, costumes e burocracia brasileiros, enquanto corre atrás para revalidar seu diploma e reconstruir a vida por aqui. “Eu quero fazer um curso e receber um certificado e não consigo, porque não tenho os documentos do Ensino Médio no Brasil. Fui à UERJ para dar entrada na revalida do diploma, porque é a única universidade que aceita os documentos em espanhol, mas logo depois ela entrou em greve. É um processo, sei que deveria ter feito, já se passaram dois anos, mas foi tudo muito rápido. E eu não tinha dinheiro, agora consegui e vou começar”, diz.
Seus pais, avós, tias e primos continuam na Venezuela, mas ele só pretende voltar ao país para visitá-los. Ender quer esquecer que foi refugiado, fazer mestrado, outra faculdade e viver como uma pessoa normal no Brasil - e, quem sabe, trazer seus pais para cá. “Estou tentando fazer a minha vida do zero aqui e andar nesse caminho. Não me vejo fazendo tudo de novo lá (na Venezuela). Seria como começar do zero novamente. Se eu já comecei, quero continuar. E se comecei aqui no Brasil, então é aqui que vou continuar.” E será um prazer acompanhá-lo, Ender.