A Festa do Novo Poder
O Dia que os Gigantes chegaram ao Circo Voador
Publicado em 01/2019
‘’Eu posso ouvir, os gigantes estão chegando…’’
Lendo assim pela primeira vez, lembra até aquelas frases que a gente vê pichada nos muros, na porta das igrejas, uma vibe meio 'Jesus está voltando’, sabe? Só que ao contrário de Jesus, risos, os gigantes realmente chegaram. E a profecia que começou lá no final de 2017, com a estreia dos EPs ''Antes dos Gigantes Chegarem Vol.1 e Vol.2", finalmente se cumpriu.
A expectativa sobre o álbum Gigantes lançado em outubro de 2018 era tão grande quanto o seu próprio nome. Após um lançamento aclamado em unanimidade pela crítica e reconhecido pela cena musical brasileira como um dos melhores discos do ano, a apresentação tão aguardada pelo público carioca já tinha data para sua estréia.
E é sobre essa noite histórica que nós vamos falar. 18 de Janeiro foi o dia escolhido para celebrar a criatividade inesgotável de um artista que usa a poesia como ferramenta de conscientização e empoderamento e que, durante essa trajetória, conquistou pra si uma legião bastante sólida de admiradores. Bk' ou Abebe Bikila, em seu novo disco, fala de assuntos que vão desde o despertar ancestral do jovem negro até a luta diária de cada um de nós na busca por um espaço no mundo.
Os ingressos já estavam esgotados e a casa oficialmente aberta.
O Circo Voador foi o lugar escolhido para essa estreia e não poderia ser outro né? Vamos ser sinceros.
Bk' é natural de Jacarepaguá, mas após se mudar pra região central do Rio de Janeiro, mesmo após tantas transformações na sua vida, ele continua sendo uma figura facilmente avistada pela Lapa ao lado dos outros membros do Bloco 7, músicas como KGL (sigla para Catete, Glória e Lapa) não deixam negar a conexão com esse território, e tendo em vista que uma das casas de shows mais conhecidas do Brasil fica exatamente na Lapa, onde mais o Deus do Furdunço poderia comemorar a sua própria festa?
A abertura da casa ficou por conta da festa Puff Puff Bass, com os DJs Totonete (Gabriel Barros) e Tamy (Tamyris Reis). Essa festa se tornou rapidamente conhecida no cenário urbano carioca por dialogar diretamente com o público da Zona Norte, Baixada e demais regiões periféricas do estado do Rio de Janeiro conseguindo trazer milhares de pessoas em todos os seus eventos. Perguntei pro Gabriel Barros, criador e residente do coletivo, qual eram as expectativas dele sobre essa noite já que além de DJ, ele também é um grande pesquisador da cultura Hip Hop em todo o Brasil.
‘’O Hip Hop tem atuado em cada vez mais frentes, precisamos de agentes pra aproximarem isso das pessoas... a Puff Puff é uma delas, o BK também é.
E eu sinto que a relevância desse “trabalho em conjunto” sempre vai ser fazer chegar em quem precisa de arte, cultura, conhecimento de verdade.’’
Minutos antes do início do show, ninguém parecia se importar com o calor, ou com o fato da casa estar estupidamente lotada, disseram que teve até gente pulando o muro pra conseguir entrar. Todos estavam num certo clima de expectativa, com os olhares fixos em qualquer movimentação suspeita.
O palco começa a ser preenchido por cada um dos músicos que fariam parte do show; nas pick-ups El Lif Beatz (Felipe Perdigão - DJ e Beatmaker) responsável pela direção musical do álbum, no backing vocal JXNV$ (Jonas Chagas - Beatmaker e MC), só que dessa vez a equipe ainda não estava completa.
Pra essa noite tão memorável, teve várias participações especiais, trazendo um formato inédito ao que estamos acostumamos a ver nos shows do Bk’. A inserção de uma banda na programação foi algo bem ousado porém definitivamente necessário em vista da diversidade sonora desse novo disco, com tantos elementos instrumentais e nostálgicos com referência direta ao Soul e Funky. Os integrantes foram ocupando os seus lugares; Magno Brito (Baixista), Pedro Malquer (Tecladista) e Theo Zagrae (Bateirista).
O Novo Poder, primeira música do álbum, deu início à noite, colocando o público em um êxtase contagiante com versos repletos de referências místicas que narram sobre a chegada de uma nova ordem em tempos de guerra. Seria mais uma profecia?
Conforme o show avançava, um clima de hipnose se instaurou, e esse foi o estado que seria presente durante quase todo o espetáculo. A energia explosiva deu lugar a uma espécie de contemplação, guiada pelo desempenho impecável da banda, que dava a platéia a experiência inédita de realmente desvendar cada sonoridade do álbum de uma forma bem mais detalhada.
O show foi bem completo e os músicos que compõem a equipe original acertaram na decisão de incluir músicas do álbum ‘’Castelos & Ruínas’’ na apresentação, todas as faixas escolhidas pareciam dialogar com as canções atuais. Não ficar preso apenas as faixas do seu novo projeto mostra a conduta de um artista que além de possuir um timing perfeito, compreende também a necessidade dos seus fãs, sem que eles precisem falar nada. Umas das caraterísticas mais notáveis no Bk`é a relação de proximidade com o público, e isso vale pra uma platéia com centenas ou milhares de pessoas, a troca continua sendo a mesma, de um modo quase telepático, ele consegue passar sua mensagem,encontrando maneiras cada vez mais criativas de expressar aquilo que cada um de nós sentimos.
A noite foi repleta de participações, mas uma presença feminina em especial dominou o palco mostrando a potência da sua voz: a cantora Juyé que integra a lista de convidados do álbum, na faixa ''Gigantes", trouxe um tom doce e aveludado como backing vocal fazendo um contraste perfeito, junto ao timbre grave e característico do JXNV$ Profeta.
Mais tarde, conversando com o El Lif, ele falou que o Leo Gandelman (saxofonista), literalmente pediu pra participar do show naquele mesmo dia (!)
’’Nada estava programado, e quando ele veio falar com a gente, foi uma surpresa. É claro que aceitamos.''
Leo comentou horas antes com o DJ, que iria dar o seu instrumento de presente ao Bk` quando eles estivessem juntos no palco.
O segredo foi guardado com sucesso, e acabou se tornando um dos momentos mais emocionantes do show.
A cada instante, a impressão era que a dinâmica do palco havia sido orquestrada com um objetivo certeiro de levar o espectador por uma progressão. Pontos altos como a entrada do Baco Exu do Blues, na música ''Vivos'', a presença do Marcelo D2 junto do seu filho e integrante da Pirâmide Perdida, Sain (Stephan Peixoto) na música ''Falam'' e a chegada da super talentosa e radiante Drik Barbosa cantando ao lado do rapper e também importante representante do selo da Pirâmide, Akira Presidente em uma das faixas mais esperadas, que foi o primeiro videoclipe lançado do álbum, Correria; fizeram parte do caminho pelo qual o público seria levado até chegar o grand finale.
Como eu havia dito no inicio do texto, durante boa parte da show a plateia parecia estar hipnotizada e me atrevo a dizer até um pouco comportada (?) demais, faltava alguma coisa…E como a gente bem sabe, a regra é clara, onde 2 ou mais membros do Bloco 7 estiverem presentes em algum momento o CAOS vai se instaurar.
Aos 45` do segundo tempo, o palco é invadido, com a permissão do Bk` obviamente, por vários integrantes da banca (Bril Chefe Gordo, CHS, Akira Presidente e M$E), e é essa a hora que os não-adeptos da roda punk precisam abrir espaço.
Faixas como ''KGL'' e ''Top Boys'' trouxeram a tona toda a intensidade dos fãs que acompanham a trajetória do artista tanto em sua carreira solo, como os trabalhos lançados pelo grupo Néctar Gang.
E o que Bk`, que dentre os seus vários codinomes também é conhecido como o Professor, pelos seus amigos próximos do Bloco 7, nos ensinou nessa noite?
Pra mim, o aprendizado mais importante desse espetáculo e também do disco, foi que a Resistência mesmo ainda que com a sua dor e o seu peso nessa realidade tão insensível para homens e mulheres negras em todo o Mundo, também pode (e deve ser) festejada.