Você não é quem você pensa que é
O som e a trajetória do cantor Castello Branco
Publicado em 12/2017
Castello Branco encheu um copo com chá mate e abriu a embalagem de isopor que continha um hamburguer vegetariano, olhou bem para o pão com carne de soja, queijo e alface e pediu para a produtora guardar para depois do show. "Ontem foi meu aniversário", ele me diz, "Passei o dia todo comemorando e hoje estou me recuperando da virada de ano." Castello fez 31 anos no dia 11 de dezembro, e hoje, no dia seguinte, em poucos minutos iria apresentar seu disco novo no palco do FM Hall, no programa Faro, da rádio Sulamérica Paradiso, no Rio de Janeiro.
No camarim, além de Castello e esse repórter que vos escreve, estavam também o fotógrafo Francisco Costa, que veio comigo cobrir o show, e o multi instrumentista Ico dos Anjos, co-produtor do disco. Os dois músicos aguardavam para apresentarem uma versão pocket do show, Castello na voz e violão e Ico nas bases, teclado e flauta. Eram seis e meia da noite e o show estava marcado para começar às sete. Do lado de fora, havia umas 50 pessoas esperando na frente do palco.
A produtora entrou no camarim trazendo cartazes e material de divulgação do show e pediu para Castello autografa-los. Ele estava calmo, talvez estivesse cansado da noite anterior, mas respondia à todos com gentileza.
Os cabelos cacheados e bem escuros e a barba fechada cobria um rosto delicado de nariz fino e olhos suaves. Em seu corpo esbelto, Castello vestia uma camisa com estampa floral, calça de linho branca dobrada na bainha e nada nos pés. "Todos os shows eu faço descalço. É como me sinto mais à vontade", ele disse. "Fui criado na roça e lá eu só andava descalço, acho que isso ficou em mim."
Fabiane Pereira entrou no camarim junto da assessora de imprensa e do fotógrafo do programa. Fabiane é a criadora e apresentadora do Faro, um programa voltado para a nova produção musical contemporânea que há dez anos entrevista artistas independentes que estão despontando no Brasil. Fabiane nos cumprimentou e em seguida passou os detalhes do roteiro para Castello e pediu à ele o setlist do show. Castello respondeu que ainda não tinha preparado. "Mas tá tudo na cabeça, posso dizer aqui agora," disse, sentando-se com a produtora e com Ico para anotarem as músicas no papel. Após o trabalho feito, foi tirar fotos e gravar vídeos para as redes sociais do programa. Francisco Costa aproveitou a oportunidade para fotografar o músico sozinho, depois ao lado de Ico e com a apresentadora.
Do lado de fora a platéia continuava a encher o espaço. Umas cem pessoas se aglomeravam sentadas no chão e em pé no fundo. Uma platéia formada por adolescentes e jovens adultos que conversavam e bebiam cerveja, ansiosos para o começo do show. Um grupo de quatro meninas me viram saindo da área reservada para o artista e perguntaram se Castello Branco estava ali dentro. Elas queriam saber se poderiam entrar para lhe entregar uns presentes.
Um outro grupo sentado no chão colado no palco era formado por jovens que discutiam quais eram suas músicas favoritas e quais ele iria tocar. "Se ele tocar ‘Crer-Sendo’ já valeu o show", disse uma garota de cabelos cacheados pintados de azul, e então um rapaz completou "Eu quero que ele toque as músicas novas. Não paro de escutar esse disco." Uma moça chegou com um bebê no colo, disputando um lugar na frente, explicando que estava sacrificando o horário do sono da filha só para assistir o show. "Eu coloco as músicas do Castello para ela dormir", disse sentando-se no espaço que a turma abriu para ela. "Ah, então ela vai acabar dormindo aqui. Vai ficar tudo bem", consolou a garota de cabelo azul.
Enquanto isso, no camarim, em nenhum momento Castello foi deixado sozinho. O tempo todo era requisitado para fotos, entrevistas e para combinar o que iria acontecer no show. O copo que ele tinha enchido com chá mate aguardava intacto em cima da mesa.
Há onze anos, Lucas Castello Branco arrumou sua mochila, colocou o violão nas costas e foi embora do monastério onde morava desde os dois anos de idade. Era madrugada e ainda estava escuro quando saiu pela porta e caminhou por 40 minutos até o ponto onde pegou o ônibus intermunicipal, às 5h da manhã, rumo à sua cidade natal, o Rio de Janeiro, para tentar a carreira de músico
Lucas nasceu em 1986 em Santa Tereza, bairro pacato do centro do Rio de Janeiro. Filho de um câmera e de uma jornalista, ambos da Globo, seus pais tiveram uma paixão fulminante, mas se separaram logo após o seu nascimento. Desiludida com a profissão e com a atribulada vida urbana no Rio, sua mãe vendeu tudo o que tinha, pegou seu filho e, junto de outras três amigas, foi morar em uma casa em Sambaetiba, interior do estado do Rio. Dessa moradia, elas foram criando uma comunidade onde recebiam pessoas interessadas em compartilhar a terra e o conhecimento. Com o intuito de aprofundarem as experiências vividas, elas entraram em contato com Trigueirinho, um dos maiores líderes espirituais do Brasil, que lhes passou ensinamentos monásticos que serviram como base para elas fundarem, em 1993, o Núcleo de Serviço Crer-Sendo, em Teresópolis
Ele considera essas quatro mulheres como suas quatro mães.
Eu nasci
Em casa
Na cambuquinha de missô
De céu
De matarel
Demais (mãe demais, que demais. mãe demais)
Mãe, oh mãe
Há tanta verdade em mim
Que mal posso me manter de pé
Se nunca lembrar de ti(“As minhas mães”, do disco “Serviço”)
Lucas foi alfabetizado e cresceu seguindo as leis monásticas impostas pelo coletivo. As ordens monásticas pretendem libertar o indivíduo através de uma árdua luta entre o "eu" que pertence ao mundo e o "eu" superior e ideal. Neste esforço, Lucas entregou a si mesmo, como também seus atos, a um rigoroso exame. Cresceu aprendendo a abandonar os bens mundanos e submetendo-se à prova do sofrimento para compreender as suas verdadeiras vontades. O primeiro contato com a música foi aos oito anos, quando fez parte de um coral junto de outras crianças e aprendeu a cantar as músicas que as monjas passavam para eles.
Aos dezessete anos, uma outra vontade irrompeu mais forte. Com frequência chegavam no monastério visitantes e colaboradores que levavam seus filhos, jovens que moravam nas cidades grandes, e isso acabou estimulando uma curiosidade na cabeça em formação do jovem Lucas. Revelar seus desejos de mudança para a mãe não foi fácil, ela foi resistente, os dois discutiram e brigaram, "Teve uma época de quebra pau, que minha mãe ficou triste, mas depois ela teve um entendimento de que isso fazia parte do meu amadurecimento. Elas não podiam privar alguém de viver o que tinha que ser vivido. O que tem é a estrada de cada um." Sua mãe acabou aceitando que ele fosse morar com o pai no Rio de Janeiro.
Se matriculou no Colégio Cidade e lá fez amizade com Tomás Tróia, que também compartilhava o mesmo desejo de ser músico. Tomás lhe apresentou a outros garotos da mesma idade e juntos formaram a banda R.Sigma. A banda tomou tanto o seu tempo e energia que Lucas acabou reprovado no terceiro ano do colégio. Após o insucesso na escola, seu pai o mandou de volta para morar com a mãe no monastério em Teresópolis, com a condição de só retornar para o Rio nos finais de semana. Os integrantes da banda colocaram um outro amigo, chamado Felipe Neto, para substituí-lo, pois este tinha mais disponibilidade para os ensaios. Preocupado em perder o lugar na banda, Lucas voltou para o Rio e, sem que seu pai soubesse, passou a dormir em um galpão cedido pelo pai do baterista da banda.
Se Lucas não tivesse voltado para o Rio, provavelmente deixaria de seguir como vocalista da R.Sigma e, quem sabe, não viriam os discos seguintes. Assim como também, Felipe Neto poderia continuar investindo na carreira de músico e provavelmente não se tornaria, anos depois, um dos youtubers de maior sucesso popular do país.
Quando seu pai soube que Lucas estava morando escondido no Rio, ao invés de lhe dar uma bronca, reconheceu o esforço que ele estava fazendo e entendeu que a potência do seu filho era a música. Concordou que Lucas poderia voltar a morar com ele.
Então, com vinte anos de idade, Lucas Castello Branco arrumou sua mochila, colocou o violão nas costas e foi embora do monastério. Era madrugada e ainda estava escuro quando saiu pela porta e caminhou por 40 minutos até o ponto onde pegou o ônibus intermunicipal, às 5h da manhã, rumo à sua cidade natal, o Rio de Janeiro, para tentar a carreira de músico.
No Rio, Lucas pôde se concentrar nos ensaios da banda. Além de Castello nos vocais, o grupo também era formado por Diogo Strausz (guitarra), Tomás Tróia (guitarra e voz), GB (bateria e voz) e Eric Kendi (baixo). Lançaram em 2009 o álbum "Reflita-se", que lhes rendeu notoriedade na cena indie carioca. Os shows enchiam, as pessoas sabiam cantar as músicas, a banda começou a ser reconhecida em outros estados e a se tornar referência para outros músicos. "O R.Sigma foi uma escola. Saí do monastério, vim para a cidade e então conheci os meninos", explica Castello.
"Tinha uma vibe de garotos querendo formar uma banda. Mas na época eu não sabia muito como colocar minha voz, pois era um estilo de rock e eu tinha que entrar dentro daquilo, que não era muito a minha onda. Eu não estava sendo eu naquilo. Era tudo muito agudo, muito rasgado, e eu era muito cobrado disso, estava sempre tentando correr atrás para ter aquilo." O "Reflita-se" acabou se tornando o primeiro e único disco do R.Sigma, pois a banda encerrou as atividades em 2011. Mesmo assim, há ainda quem espera que eles voltem e lancem novos trabalhos.
O fim do R.Sigma não foi o fim da carreira de Lucas. Ela estava apenas começando. O que ele não sabia era que para seguir em frente ele teria que voltar para trás. Um dos grandes responsáveis por esse entendimento foi o seu amigo Lôu Caldeira
Em 2013, ele lançou seu primeiro registro solo, "Serviço", abandonando a textura do rock da banda anterior para mergulhar na calmaria e na manifestação introspectiva. O nascimento de "Serviço" deve-se muito ao investimento que Lôu fez para que Lucas pudesse relembrar como abandonar o falso "eu" e se conectar com o seu verdadeiro "eu". Lucas saiu do monastério, mas o monastério não saiu de Lucas. E uma das marcas dessa mudança foi ter abandonado o seu primeiro nome, e passou a assinar apenas como Castello Branco.
Semanas antes do show no FM Hall, me encontrei com Castello no bar Comuna, em Botafogo. Marcamos numa sexta-feira, às 17h, o bar só abriria às 18h, então eu teria tempo suficiente para uma entrevista. Cheguei no horário marcado, toquei a campainha e o segurança me atendeu. Expliquei que tinha marcado uma entrevista, ele respondeu que ainda não havia chegado ninguém e pedi para esperar do lado de dentro. O segurança gentilmente abriu a pesada porta de metal, entrei e sentei em um banco próximo a entrada. Dez minutos depois ouvi uma batida forte na porta, logo em seguida mais outra e então mais outra. A porta se abriu como uma explosão. Lôu Caldeira usou a sua força para empurrar a porta com o ombro e atrás dele estava Castello.
Castello usava a mesma camisa floral que usaria no show, bermuda azul escura e tênis. Lôu, com o cabelo raspado e um cavanhaque, tinha a aparência de meio negro e meio índio, vestia a camisa da escola de samba Império Serrano, carregava um isqueiro amarrado no pescoço, os dedos cheios de anéis, bermuda jeans surrada e tênis. Ele carregava uma pochete preta no ombro e uma toalha que usava para enxugar o suor. Assim que nos vimos nos cumprimentamos e procuramos um lugar para conversar.
Sentamos numa mesa nos fundos do bar. Castello pediu para Lôu conseguir umas cervejas, o que ele fez prontamente, trazendo uma garrafa bem gelada e três copos.
Perguntei para Castello qual era a principal mudança entre o trabalho com a banda e o disco solo. "Para mim, o 'Serviço' foi uma descoberta de quem de fato eu era na música, o que era a minha voz, quais eram as minhas necessidades", ele disse. "As minhas composições para esse disco têm muito da minha experiência no Núcleo de Serviço Crer-Sendo. Essa coisa de compartilhar um sentimento, compartilhar uma ideia." Além da referência óbvia no título do disco, a música mais conhecida, digamos, o seu hit, chama-se "Crer-Sendo". A letra da música pode ser vista como uma ode ao aprendizado que teve no lugar onde cresceu.
Preciso amar de menos
De menos a mim e mais atento
Preciso amar atento
Atento pra não ceder por dentro
Por dentro que está
Por dentro que palpita aqui por dentro
Amar jamais será demais
E equilibrar
Não há porque viver
Se não pra crer e ser crescendo sendo
Não há porque amar
Se não pra semear conhecimento
"Essa reconexão comigo mesmo se deve muito à minha amizade com o Lôu", Castello disse tomando um gole da cerveja. "Eu tinha conhecido o Lôu no final da época do R.Sigma e ele já me botava pilha, me trazia questionamentos que eu não fazia na época, sobre quem eu era, o que eu queria, e ia me provocando. Assim, ele me fez começar o trabalho de resgatar o que eu vivi para criar o artista que eu deveria ser. Para ter uma base honesta e verdadeira."
Nessa busca pelo artista que queria ser, Castello voltou a passar um tempo no monastério, mas dessa vez levou junto Lôu e Tomás Tróia. Ficaram um tempo por lá, pensando, conversando e compondo. "O processo de parceria com o Lôu era... Eu mostrava tudo pra ele. Ele respeitava quem eu era e me direcionava por um caminho que era necessário para que eu tivesse confiança no que estava fazendo."
Lôu veio até nós e perguntou se estava tudo bem, se precisávamos de alguma coisa. "Esta cidade está pegando fogo, e não digo simbolicamente não. É literal!", disse Lôu enxugando o suor da testa com a tolha. "Está fazendo um calor descomunal! A maior parte do nosso corpo é formada por água, então é óbvio que daqui a uns dias vamos ver pessoas evaporando por aí." Castello olhou para Lôu e riu. Em questão de segundos Lôu "evaporou" entrando pela porta dos fundos da cozinha. Dava para ouvir ele lá dentro falando, inflamando o pessoal. Castello prosseguiu explicando o encontro entre os dois. "Para mim fez diferença de verdade ter alguém que me entendia tanto que podia fazer por mim o que eu não faria por mim. É aquela coisa, sozinho você não vê. Duas pessoas se olhando e se vendo é muito importante." A parceria foi tão importante para a concepção do disco que eles definiram que Lôu Caldeira assumiria a direção artística da sua carreira.
Era realmente um dia muito abafado no Rio de Janeiro, o verão havia chegado e logo começaria a época de praias cheias. Lôu reapareceu carregando um saco de gelo na mão. Ele encostou o saco na nuca e na cabeça de um dos funcionários que descansava ao nosso lado. Em seguida despejou a água na cabeça de um dos cozinheiros. Então veio até nós e perguntou: "Vocês querem um pouquinho?". E respondemos: "Não, tô bem".
Se Lôu foi um mentor para o disco e Tomás um parceiro nas composições, outro integrante do extinto R.Sigma também esteve presente. O guitarrista Diogo Strausz estava começando a produzir uns discos e topou trabalhar na investida solo do Castello. Diogo foi o cérebro eletrônico, quem arranjou as músicas, todas compostas no violão.
Castello me contou que sem a colaboração dos amigos esse disco não seria possível. A produção foi paga por duas amigas que, na época, estavam com grana. Os músicos trabalharam de graça. "Todo mundo dizia: 'Vamos dar isso pra Castello porque a gente acredita nele.'"
Depois de pronto, o disco foi lançado e disponibilizado de graça na internet. Castelo não fez show de lançamento, nem clipe, nem nada. "As pessoas pensaram que eu era maluco. Gravar um disco, fazer aquilo tudo, todo o apoio dos amigos e não fazer nenhuma divulgação", ele explica. "Mas uma coisa que não contei pra ninguém é que depois que o disco ficou pronto eu fui cuidar de um amigo que estava passando por um problema de saúde. Fui morar com ele. Ele tinha um problema grave de dependência química, a família toda virou as costas e ele estava precisando de alguém para cuidar dele. Eu tinha acabado de lançar o disco e na semana do lançamento ele me mandou uma mensagem: 'Amigo, eu tô precisando de ajuda. Eu sei que faz muito tempo que a gente não se vê, mas você é a única pessoa com quem eu posso contar'".
Castello passou o ano inteiro de 2013 cuidando do amigo. "As pessoas não entendiam o que eu estava fazendo, me perguntavam 'Como assim você lança um disco e some? E a sua vida e o seu projeto?', mas eu explicava para elas que era o que eu tinha que fazer. Afinal de contas eu tinha acabado de lançar um disco chamado ‘Serviço’."
Mesmo sem divulgação, o disco se espalhou pela internet e ganhou a atenção do público. Segundo a imprensa especializada, o álbum "constrói um retrato simples, mas completo, de um artista que começa a mostrar sua obra além dos véus escuros das guitarras e distorções", além de "deixar a certeza de que o artista ainda tem um céu imenso para ser explorado e que precisamos de voos cada vez mais longos para conhecer ainda mais seu belíssimo e particular ponto de vista", como disse Vinícius Bopprê, no Catraca Livre.
O serviço estava feito.
Antes de lançar o seu segundo disco, “Sintoma”, Castello viajou para Lisboa e lá publicou um livro de poemas chamado “Simpatia”. Foi na escrita do livro que surgiu a inspiração para compor novas canções.
Entre goles de cerveja nos fundos da Comuna, perguntei para ele qual a grande diferença entre os dois discos. "O ‘Serviço’ é a representação do que eu era, de toda a bagagem que está dentro de mim. O ‘Sintoma’ já sou eu na cidade. Para isso, eu precisei entender o que era eu na cidade. Por isso demorou, por isso tomou este tempo, para o entendimento."
“Sintoma” foi gestado em São Paulo, cidade para onde se mudou desde o início de 2017. Lá ele passou a ter uma maior relação com a música eletrônica e a experimentar arranjos programados nas suas canções.
Ico dos Anjos morava no Maranhão quando ouviu na internet as músicas do “Serviço”. Se identificou imediatamente com o som e mandou um e-mail para Castello elogiando o trabalho e apresentando suas próprias composições. A amizade prosseguiu com a troca de canções. Quando estava decidido a gravar um segundo disco, Castello mandou mensagem para Ico e perguntou se ele não topava se mudar para São Paulo e co-produzir o disco com ele. Assim fechou o trio de produtores, Ico, Lôu e o próprio Castello.
Ele também convidou outros cantores para gravar as faixas com ele. Entre os parceiros do disco estão Mãeana, Verônica Bonfim, Filipe Catto e Tô.
Assim como o primeiro, “Sintoma” recebeu ótimas críticas. "A obra, tão singela e direta, consegue trazer logo na primeira audição uma carga de mensagens e emoções que conversam com o âmago do ouvinte e mudam o humor e as cores das coisas, principalmente no momento estranho que vivemos hoje", escreveu Jacídio Júnior no site Omelete. "Existe uma leveza rara no som produzido por Castello Branco, (...) versos marcados pela forte religiosidade se encontram com conflitos existenciais e ainda discutem relacionamentos de maneira sempre esperançosa, criando a todo instante brechas para o amor", escreveu Cleber Facchi no MiojoIndie.
Lôu se aproximou da gente e encheu novamente os nossos copos com cerveja. Além de amigo, mentor e diretor, Lôu também criou as capas de ambos os discos. Na capa do “Serviço” tem a imagem do Castello Branco ao longe revelado por uma janela. Na capa de “Sintoma” é uma foto do cantor quando criança.
"Acho muito cafona capa de disco com o rosto do cantor, parece uma apelação", explica Lôu entre goles de cerveja. "Por isso coloquei o Lucas de longe na capa do ‘Serviço’. Aí se a pessoa quiser ver melhor, tem que se aproximar. Entendeu? Tem que entrar no disco." E quanto à capa do “Sintoma”? "O Castello para mim é um erê, ele tem uma alma de menino. Ele compõe com delicadeza, tanto na melodia como na escrita. O melhor do homem é o menino", respondeu, voltando para dentro do bar. "Ninguém me cura, só esse jovem", e antes de desaparecer, gritou: "E o hospital!"
O bar abriu as portas para os clientes entrarem e aumentou a música. Ficou impossível continuar a conversa com a mesma harmonia. Lôu apareceu dizendo que tinha conseguido liberação para continuarmos o papo numa sala no segundo andar. Peguei meu caderno e as cervejas e seguimos pela escada.
A sala estava vazia e o calor ali dentro fazia parecer que tínhamos entrado numa sauna. Não havia janelas, o espaço era um quadrado fechado e escuro que servia como pista de dança nas noites de balada. Lôu ligou o ar condicionado e nos sentamos em um sofá encostado no canto da parede. De dentro da escuridão saltou um gato preto por cima da nossa mesa e saiu fugido pela porta. Lôu gritou "Pega o Nelson!", e saiu correndo. O gato não percebeu que estava sendo seguido, Lôu pulou em cima dele e o agarrou antes que fugisse pela escada.
Assim que voltou, Lôu colocou o gato no colo do Castello e sentou-se na minha frente. "Sabe o que fez eu me interessar pelo Castello?". Respondi que adoraria saber. "Eu conheço um monte de artista e posso dizer que não é porque o cara é artista que ele é interessante. Tem um monte de artista aí que se acha interessante. Não, o artista não deve ser mimado, ele tem que se virar, tem que resolver ou melhorar algum problema, se não ele não serve", Lôu falava com firmeza seguindo um fluxo fluído de palavras que não paravam de sair da sua boca.
"Castello é a margem, é um cara do interior, ele nunca quis parecer interessante para mim e isso me deixou muito interessado nele. Eu quis provocá-lo como artista porque...", antes de concluir ele parou um instante e riu. "Deixa pra lá, eu não vou falar." Insisti para que ele falasse. Lôu olhou para mim analisando se deveria falar ou não, por fim, cedeu ao meu pedido. "Eu e Castello temos uma ligação... Ele é divino e eu sou maravilhoso." E soltou uma gargalhada gritando: "Pooorrra, viu o que eu disse? Isso é o fechamento!"
Na platéia no FM Hall, somavam-se umas trezentas pessoas. Fabiane subiu no palco para apresentar o convidado da noite e tinha todos os olhos dos fãs voltados para ela. No camarim, Castello assistia tudo por uma abertura na parede.
Assim que Fabi disse seu nome, ele entrou suavemente pela lateral do palco até subir sob os aplausos dos fãs e os gritos de "Lindo".
"Normalmente, a gente tem cadeiras aqui para fazer entrevistas", Fabiane disse para a platéia, "mas Castello disse que preferia conversar sentado no chão, então né… a gente senta no chão." A entrevista durou uns vinte minutos com perguntas sobre a sua origem no monastério, sobre o processo dos discos e a carreira. No fim das perguntas, Ico dos Anjos subiu ao palco para o início do show.
Castello anunciou que ia fazer uma versão acústica da primeira música do novo disco. Começou tocando as primeiras notas de "O Peso do Meu Coração" dedilhadas no violão e assim que ele começou a cantar, o público cantou junto como um coro. A música representa justamente a fase de transição entre os seus dois trabalhos solos. Entre os dois Castellos, o do Serviço e o do Sintoma. A letra é uma reflexão sobre ser quem se é.
Você não é
Quem você pensa que é
Você não tem
Quem você pensa que tem
As pessoas cantavam de olhos fechados como se aquelas palavras tivessem sido escritas para elas. O som da flauta tocada por Ico tornou o ambiente num lugar sagrado.
Em seguida ele tocou "Providência", parceria que gravou com Mãeana no segundo disco. Castello errou a entrada e parou de tocar. "Desculpe, não estou escutando a base", ele disse no microfone. "Pode aumentar um pouco, por favor?" E começou mais uma vez. Algumas músicas depois e ele parou novamente. "Gente, desculpa, eu não estou escutando direito. Vocês estão muito próximos e eu vou com vocês e me perco", ele disse com candura. "Então vamos fazer assim, vocês querem cantar comigo mesmo?˜, e todos responderam que sim. "Então vamos só nós", e voltou ao início da música, sem a base programada.
Enquanto Castello cantava, eu pensei que ele já devia ter cantado aquelas músicas uma centena de vezes, mesmo assim era óbvio para todas as pessoas presentes que algo especial estava acontecendo dentro dele. Sua presença de palco tinha força, ele estava se deixando levar pelo canto e pelo coro do público, tão próximo e tão caloroso. Sem arrogância, sem insegurança, era como se ele tivesse aberto algo do seu universo particular e estava oferecendo para todos em forma de canção.
Ao chegar no fim da música todos aplaudiram com a sensação de que estavam fazendo parte de algo especial. Ele olhou para Ico e disse para tentarem mais uma vez com a programação, como tinham ensaiado. Começaram os primeiros acordes de “Crer-Sendo”. O público reconheceu a música nos primeiros segundos e era possível ver a expressão de felicidade no rosto das pessoas. Essa era a música que muitos ali queriam ouvir. Dei uma volta pela platéia. Uma menina sentada na frente fechava os olhos cheios de lágrimas. A moça com sua filhinha estava em pé, dançando com ela colo. Um rapaz ao fundo mexia seu corpo na cadência do compasso.
E então o som deu problema novamente. Castello suspirou e sorriu. "Tá difícil. E olhe que ontem foi o meu aniversário." Alguém da platéia puxou um parabéns para você e todos cantaram juntos. Ele agradeceu e disse que estava decidido a continuar só com o violão, sem as bases. Recomeçou a música e as bases nem fizeram falta porque o público cantou tão forte que era como se nada faltasse. No final da canção, Castello percebeu que não era preciso nem o violão, e por isso parou de tocá-lo. Ele e os que estavam presentes cantaram juntos e a voz de todos se uniu fazendo ecoar o refrão.
Não há porque viver
Se não pra crer e ser crescendo sendo
Não há porque amar
Se não pra semear conhecimento
No final da conversa que tive com Castello Branco naquela tarde quente na Comuna, perguntei se ele enfim havia descoberto o que queria com a sua música. "Eu me vejo mais como um comunicador, um cara que quer comunicar o que pensa, o que sente, o que aprende, o que enxerga."
Falando sempre com calma, sua voz possui a melodia do seu canto. Falei para ele que tinha entendido o que ele queria dizer com “Serviço”. Para ele, a sua arte era um serviço como o de um trabalhador qualquer. Castello balançou a cabeça, mexeu os cabelos para trás e sorriu, finalizando "Serviço vem do verbo Servir, e não tem nada a ver com salário, com ser subjugado no trabalho... é só você querer ser importante no que você faz. "