I Hate People: Jesuton
Uma londrina apaixonada pela América Latina em uma procura por si mesma através da música
Publicado em 09/2017
Das janelas de casa, Rachel Jesuton Olaolu Amosu, ou só Jesuton, consegue ver do Catumbi à Lapa, com direito até à ponte Rio-Niterói, à Baia de Guanabara e ao Engenhão. É terapêutico observar, lá do alto de Santa Teresa, a diversidade e o ritmo de cantos tão diferentes da cidade. E de diversidade a inglesa de voz arrepiante entende bem.
Filha de mãe jamaicana e pai nigeriano, nascida e criada na pluralidade de Londres, Jesuton sempre foi apaixonada pela cultura latino-americana. Na sugestão de um professor, feita em tom de brincadeira, de fazer uma monografia sobre o uso de plantas psicodélicas na Amazônia, ela enxergou a oportunidade de conhecer de perto o caldeirão que é este pedaço do continente americano.
Aos 18 anos, morou no Equador para a pesquisa de conclusão da graduação em Ciências Humanas pela Universidade de Oxford, da Inglaterra. Alguns anos depois, voltou para passar um tempo no Peru e só então se sentiu confortável para enfrentar o medo que tinha de subir ao palco.
A música embala a vida de Jesuton, desde a época em ela que fazia maratona de clipes na MTV e colecionava fitas K7 e LPs, sempre cantando junto, tipo no karaokê mesmo. “A música sempre foi um refúgio muito importante para eu conseguir me expressar. Tem coisas que não consigo entender sobre o mundo, sobre mim, e a música é um jeito com que eu consigo jogar para fora ou vivenciar essas coisas que não têm nome ou forma”, se declara.
Mas trabalhar com música não era uma opção de carreira simplesmente por não conseguir enxergar o caminho que deveria percorrer para realiza-la. “Às vezes, quando não visualizamos o caminho, sentimos como se fosse algo fora do alcance e não colocamos na lista de coisas que podemos fazer. Eu não enxergava como uma pessoa como eu poderia ser cantora”, explica. Ainda bem que alguns amigos peruanos a convidaram para cantar em uma banda que fazia covers de rock e reggae.
A próxima parada foi, enfim, o Brasil. E quando aterrissou na comunidade do Chapéu-Mangueira, no Leme, no Rio de Janeiro, em 2012, o objetivo de dar uma chance à música já estava muito bem definido. “Às vezes é um pouco mais fácil seguir seu sonho fora de casa, porque, quando você está em casa, tem todas as expectativas, reais e imaginárias, que vai carregando por conhecer as pessoas. Para mim, isso pesou bastante. Então, eu sabia que, se quisesse mudar a minha vida, teria que mudar tudo. Eu escolhi Brasil para fazer isso”, conta.
O alto custo de vida no Rio pré-Copa do Mundo e Olimpíadas (e que tá aí até hoje) serviu de incentivo para manter o foco, e cantar na rua surgiu como um bom caminho para mostrar seu trabalho e conhecer pessoas, mesmo sem falar português. E lá foi Jesuton com microfone, um arquivo de boas bases gravadas e um amplificador conquistar seu espaço na calçada do Largo do Machado e do Largo da Carioca.
“Foi realmente uma das melhores épocas da minha vida porque era liberdade total. Eu estava brincando, como quando você não sabe de nada. Era como ser criança de novo porque não tinha erro, eu ia fazendo e vendo as coisas que me faziam sentir bem. Criei minhas próprias regras e aí fui desenvolvendo um pouco mais meu relacionamento com a música, com pessoas se abrindo para mim enquanto estava cantando. E eu não me sentia fazendo uma coisa para os outros, sentia que eu estava me divertindo. Então, isso tomou um tamanho bem mais complexo, bem mais inteiro”, pontua.
Uma dessas pessoas ficou tão impressionada que decidiu filmar a performance e colocar na internet. E, bem, o resto você já sabe: viralização, “Quem é essa moça?”, “Nossa, ela é muito boa!”, “Que voz incrível!”, palco do “Caldeirão do Huck”, contrato com uma gravadora e várias versões de hits mundiais emplacadas em trilhas de novela.
Em 2017, Jesuton quer cantar diretamente para nós, sem usar mensagens, estrofes e melodias criadas por terceiros. Um voo direto, sem escalas. Ao lado do amigo e produtor Bernardo Martins, produziu o disco “Home”, seu primeiro trabalho autoral, lançado em março. Das 12 faixas do álbum, ela assina 10 – e pensar que até pouco tempo atrás ela tinha um bloqueio com a composição só porque não “tocava bem um instrumento”.
“Quando eu comecei a fazer essas músicas, queria ter aquela coisa pronta e dizer: ‘estou falando sobre isso’. Mas, na verdade, eu simplesmente escrevi o que eu queria falar e, no final, parei para ver o que estava acontecendo e percebi que todas elas (as músicas) falavam sobre se procurar, uma procura dentro de mim mesma. Uma procura para entender o que eu sinto, quem sou eu, o que eu quero dessa vida e também entender as coisas que acontecem à minha volta, o lugar onde eu estou”, explica. Apesar do inglês ser o idioma predominante em “Home”, algumas frases em português aparecem aqui e ali, numa espécie de demonstração da diversidade que floresce em Jesuton.
“Eu sou uma pessoa que vê sempre milhões de possibilidades, porque cresci com muita cultura, muitos pontos de vista distintos. Nunca coloquei uma coisa como certa ou errada. Então, para mim, a vida é muito difícil porque eu vejo em cada momento que as coisas poderiam estar fluindo de uma forma totalmente diferente. Às vezes a vida toma alguns caminhos que não dá para entender, e aí o que eu faço com isso? Como a gente acorda escolhendo A ou B?”, questiona.
“Eu vivo todas os dias com muitas perguntas, e é fácil se sentir muito sozinha com isso. Eu queria expor isso de uma forma para que as pessoas que também se sentem muito sobrecarregadas com opções e confusões não se sintam sozinhas nisso - porque eu não me sinto sozinha, tenho ideia de que não sou a única. Eu queria um disco que dá uma mão para quem se sente dessa forma. Ele tinha que ser sobre isso porque é assim que eu sou neste momento. Quem sabe daqui a pouco vou entender tudo, vou ser toda organizada, ajeitadinha, e o próximo disco vai ser tipo “já entendi”?! Mas, neste momento, eu não sei mesmo”, confessa, dando um conforto no nosso coração também confuso.
Todo o processo de produção do álbum rolou com calma, na casa de Bernardo, sem a pressão de estar em um estúdio. “A gente só estava fazendo o que gostava. Eu ia para a casa dele e passava um tempo com ele e toda a família. Várias coisas que eu gravei realmente no quarto dele entraram no disco - e ninguém ia saber disso. Cantar é uma coisa muito delicada, você tem que estar muito à vontade para tirar o melhor, e lá eu estava muito à vontade. Acho que tirou o melhor de mim”, afirma.
E, para nossa sorte e alegria, esse melhor ainda vai ter um tempo para se desenvolver aqui no Brasil antes de Jesuton voltar para casa, curiosa para saber o que o pessoal de lá acha dessa transformação.
“Acho que estou em um ponto na minha carreira onde preciso devolver esse pedaço de mim que acabou de nascer e devolvê-lo para casa também, ver o que eles acham. Eu não saí de lá porque não gosto, eu saí porque senti que não podia crescer lá, tinha certeza absoluta que não podia me desenvolver como artista, - não pela ausência de oportunidades, mas minha estrutura mental não permitia. Precisava estar num lugar onde eu me sentia bem e mais livre, e, por acaso, isso aconteceu no Brasil. Agora que tenho alguma coisa em mãos, sinto uma responsabilidade muito grande para ver e, sei lá, mostrar para os meus pais: 'olha, eu sou assim, o que vocês acham disso?' É sempre bom voltar para casa”. Não é à toa que esse é o nome de seu disco.
I Hate People - Jesuton
com Jesuton e Bernardo Martins
Música: "Cuidar de Mim"
Direção, câmera, edição, som direto, mixagem: Alexandre Marcondes
Câmeras: David Argentino e Lucas Cellier
Fotos: Lucas Cellier
Texto: Beatriz Medeiros