Uma entrevista com Ramona Andra Xavier aka VEKTROID
A artista se apresentou no XXXbornival na sua primeira passagem pelo Brasil
Publicado em 06/2018
Fazer uma festa dar certo não é nada fácil, isso todo mundo sabe. Mas e aí, existe alguma fórmula? Então imagina um grupo de produtores com a missão de produzir uma edição especial de aniversário de toda a trajetória de uma festa de sucesso. Responsa né?
Esse foi o XXXBórnival, edição de 5 anos da festa XXXBórnia. Depois de fazer mais de 38 edições e ainda ganhar o respeitável título de melhor festa de 2016 pelo Guia da Folha de São Paulo, havia claros indícios de que essa comemoração seria algo bem grande. Tão grande que precisaria de 3 pistas, 27 atrações e mais de 12 horas de festival pra contar uma história que começou lá no ano de 2013.
A XXXBórnia surgiu como uma tentativa do selo musical Freak Studio em reunir novas bandas e projetos independentes de diferentes estilos, promovendo o intercâmbio cultural entre diversas tribos em única noite. A boate Trackers, velha conhecida de todos alternativos e clubbers da noite paulista, era o laboratório de toda dessa experimentação. E então, o que podíamos esperar desse festival?
“Pra essa noite, pensamos em trazer muita música de qualidade que não se prendesse a um gênero específico, em um ambiente que todos se sentissem respeitados e livres’’, disse Daniel Ferraz, um dos produtores do festival, que recebeu apoio de marcas como Red Bull, Vice e Bolovo.
“A gente sempre foi muito fã do Vaporwave, então queríamos ter uma cerejinha do bolo. E todo mundo ficou muito feliz em conseguir trazer a VEKTROID", completou Daniel.
E que cereja de bolo!
O XXXBórnival trouxe pela primeira vez ao Brasil, a VEKTROID, que você provavelmente conhece pelo nome de Macintosh Plus. Sim! É ela a criadora do hit que é praticamente o hino da cultura Vaporwave, e foi responsável pelo álbum que colocou esse gênero musical no mapa - o mítico Floral Shoppe.
Assim que fiquei sabendo do show, estava óbvio que eu não iria perder a oportunidade de conhecer essa figura tão misteriosa de perto. Com uma carreira artística tão prestigiada mundo afora, que incluem mais de 30 (!) álbuns lançados por 9 (!) projetos diferentes, Ramona Andra Xavier é mulher trans, produtora, DJ e Designer Gráfica. Com 26 anos, nascida em Washington (EUA), Ramona não faz questão alguma de aparecer na mídia, ou expor a sua vida íntima nas redes sociais.
Mas como um artista mundialmente conhecida consegue manter uma postura tão ‘’low profile’’? Essa foi uma das perguntas que rolaram no papo que eu bati com Ramona algumas horas depois de uma das performances mais enérgicas e extraordinárias que eu já vi na vida.
É a sua primeira vez no Brasil se apresentando para para milhares de pessoas como atração principal em um festival. Como você se sente? Está sendo tudo tão maravilhoso, estou muito feliz e me senti recebendo muito amor do público enquanto estava no palco. É incrível receber todo esse carinho. Só tive uma verdadeira dimensão do que estava por vir quando cheguei no local do evento e vi essa quantidade de gente. Eu fiquei surpresa de verdade.
Eu tenho certeza que muitas pessoas levaram um susto quando o seu nome foi anunciado para esse festival. Há alguns minutos atrás te vi tirando fotos e conversando com o público, mas acho que grande parte dos seus fãs sentem um certo distanciamento da sua parte. Sim, eu entendo. Eu sou desse jeito que você está vendo, eu falo muito e tenho a minha própria maneira de me comunicar. Com o passar dos anos, comecei a ver que muita gente não entendia o que eu falava e distorciam as informações. Isso é a mídia e entrevistas em geral. Eu prefiro não me pronunciar uma vez que isso fez muito mal a minha saúde mental nos últimos anos. O mais importante pra mim é ter paz e cuidar da minha saúde mental e eu tenho certeza que as pessoas que gostam de mim de verdade vão entender isso.
O festival ainda não havia acabado, então combinamos de continuar o papo virtualmente. Mas não sem antes contar o perrengue que eu passei para chegar em São Paulo por causa da greve dos caminhoneiros e fazer um convite para que ela conhecesse o Rio de Janeiro da próxima vez que retornasse ao nosso país.
Toda aquela imagem obscura e inacessível que eu (e a torcida do Flamengo) tínhamos da Vektroid tinha ido por água abaixo (para a nossa alegria) em menos de 15 minutos de conversa, só que ainda haviam algumas perguntas que eu gostaria de fazer.
Você é uma artista visual respeitada, com incríveis habilidades de mixagem e performance. Com que idade você começou a produzir e desenvolver seus talentos? Eu era bem nova quando comecei a fazer experimentos com arte digital. Só fui ter contato com a música por volta dos 12 anos, em 2004. Meus pais amavam música, mas não chegavam a ser conhecedores do assunto. Então posso dizer que entrei nesse mundo muito cedo e sem ter nenhuma ideia de fazer isso da maneira certa. Os primeiros projetos que eu fiz eram basicamente recortes das músicas que tocavam nos jogos de video game daquela época como ‘’Dance Dance Revolution’’, e eu ficava brincando no computador, produzindo qualquer tipo de som. Nunca foi a minha intenção construir uma carreira musical, mas em 2010 tudo mudou.
Qual a sensação que você busca evocar nas pessoas com a sua música? Tudo que fiz até hoje foi tentar expressar a maneira como eu percebo o mundo sendo uma pessoa queer (alguém que recusa o modelo de heterossexualidade ou do binarismo de gênero) e que nunca se sentiu muito confortável no meio social. Eu sempre tive um relação bastante tensa com as minhas habilidades comunicativas. Sendo assim, a música não só se tornou uma ferramenta para que eu pudesse alcançar as outras pessoas, mas também uma forma que encontrei para conseguir dialogar com o meu interior e assim poder descobrir o que realmente importa nessa vida. A minha música é o resultado de tudo o que eu mais escuto, é o diário que uso pra relembrar como eu observava o mundo à minha volta quando era apenas uma criança. Por isso tem muitas referências do Pop Video Game, Cyberpunk e comerciais dos anos 90.
Como é manter uma postura mais reservada sobre si mesma sendo uma artista na era da internet onde a invasão da privacidade acaba se tornando algo inevitável? No meu caso não é algo muito difícil. Eu nunca gostei muito da minha aparência, então não havia um interesse em ter a minha imagem sendo muito exposta. Além disso, sempre vi a música eletrônica como uma maneira de direcionar a atenção das pessoas para outros focos que não tivessem a ver com a minha aparência física. Essa é uma parte que me deixa bem incomodada por que a lógica da indústria funciona exatamente ao contrário. Ao final do dia eu sou um tipo de pessoa que só quer estar trabalhando dentro do estúdio, por trás das câmeras, e essa é cada vez mais a direção que eu quero tomar pra minha carreira.
O que Vaporwave significa para você agora? E como é assimilar a sua importância para este movimento musical e artístico? Honestamente, eu não me acho a maior autoridade nesse assunto, como todo mundo costuma pensar. No entanto, vejo o Vaporwave como a ideia que busca trazer uma análise sobre os objetos que representam a Nostalgia e isso, podemos dizer, é algo muito maior que enxergá-lo apenas como um gênero musical. O Vaporwave agora é um veículo que vem sendo utilizado de inúmeras maneiras por pessoas que entenderam o seu conceito e estão criando ideias realmente únicas e inovadoras através dessa inspiração. Isso para mim é um alívio. Quando tudo começou a atingir proporções mundiais através da internet, havia um certo estigma por causa da discussão sobre até quando poderíamos samplear uma música e chamá-la de produção original. Mas agora vejo que existem muitas pessoas se esforçando para romper qualquer ideia negativa sobre esse movimento.
Nesse show, você apresentou muitos sons novos. Talvez muitas pessoas esperassem sons antigos de álbums épicos lançados pelos seus inúmeros projetos como Macintosh Plus, New Dream Ltda, Laserdisc Vision. Você ainda sente prazer tocando sons antigos e bem conhecidos ou realmente está em um momento que pretende mostrar trabalhos mais recentes? Quase todos os meus projetos nasceram como uma tentativa de me purificar de todas as circunstâncias ruins que eu estava vivendo no momento da criação. Então, é bem improvável despertar em mim mesma essa vontade de tocar músicas antigas. Seria como se eu retornasse para esses lugares tão obscuros da minha vida. É claro que existem projetos como ClearSkies ou Laserdisc Visions, que representam algo positivo para mim. Então em algum momento eu posso até voltar a tocar/escutar esses trabalhos, mas pensando em algo como Floral Shoppe…. acho que eu não escuto esse álbum há uns 5 anos (ou mais). E isso é por que ele me traz muitas lembranças negativas. Acredito que agora, mais do que nunca, eu estou focada em tudo aquilo que existe na minha frente. No futuro e não no passado.
Quais são as sua inspirações no processo da criação musical e artístico-visual? Sem pensar muito eu posso dizer que a minha arte advém principalmente das lembranças em ser uma criança durante os primeiros 5 anos da chegada da internet e ao mesmo tempo ser uma representante das últimas gerações que conheceram o mundo anterior ao impacto cultural dessa chegada. Mas às vezes eu também acho que criei isso tudo apenas para ter um diário com todas essas memórias, sabe? Para que eu possa olhar daqui a 50 anos e encontrar um pouco paz. E essa paz que me imagino entregando aos meus ouvintes, como uma forma de cura. Por que a arte também possui esse poder.
Como você se sente em relação a Vektroid de 8 anos atrás, que chegou a escrever em seu Tumblr que não topava colaborações e nem fazer shows? Ela se sente diferente agora em relação ao mercado? Infelizmente acho que esses últimos anos me tornaram ainda mais cética sobre a indústria musical. No momento eu tenho planos de começar a fazer bem mais trabalhos em colaboração com outros artistas. Midnight Run 2 (segundo álbum do projeto de boom bap experimental com o Mc Siddiq) está quase finalizado, previsto para ser lançado no final do ano e já estamos pensando no terceiro. Definitivamente, espero fazer mais shows e no momento estou focada em terminar os álbuns nos quais eu estou trabalhando, assim como acrescentar mais instrumentos e elementos visuais nas minhas performances ao vivo.
Entre uma atração e outra era difícil escolher uma única pista sem sentir aquela vontade de dar uma espiada em tudo o que estava acontecendo. E essa com certeza foi um das sensações mais recorrentes da noite, que teve apresentações de grupos e Djs brasileiros considerados referências sonoras da nova geração, como Boogarins (GO), Akin/Non Exist (SP), Tessuto (SP) Carne Doce (GO), Tagore (PE), Letrux (RJ) e Teto Preto (SP). Aliás, Teto Preto parecia uma força da natureza em forma de música, performance e protesto político, e foi uma das últimas atrações do palco principal. Pode conferir a visão geral do festival nesse link aqui.
Ficou óbvio para mim que o objetivo da Freak Studio havia sido alcançado com muito sucesso. Do Dream Pop ao Techno, passando pelo Experimental ao Jazz, todo mundo se divertiu, todo mundo curtiu de verdade. Uma noite com muita música de qualidade, XXXBórnia, literalmente, tá de parabéns.