À Beira do Abismo
Os últimos dias dos vendedores do Parque da Água Branca, em São Paulo, antes de serem expulsos pela Justiça
Publicado em 04/2017
Parece que Laurentino tem uma lágrima eterna. Está ali, brotando sem parar de seu olho direito enquanto ele fala. Difícil dizer se o motivo é algum problema no canal lacrimal ou se ele simplesmente está triste. Quem conhece a situação do senhor de 75 anos, porém, fica tentado a crer na segunda opção. Depois de 23 anos vendendo caldo de cana no Parque da Água Branca, em São Paulo, Laurentino teme futuro igual ao de outros colegas que lá trabalham há décadas: receber uma notificação da Justiça para que deixe o parque, sem nenhuma possibilidade de negociação, até o próximo dia 15 de abril.
O vendedor de caldo de cana é uma figura típica da área de lazer criada em 1929. No parque da Zona Oeste, galinhas, pintinhos, patos e gatos dividem o espaço com os frequentadores. Vendedores, como Laurentino, atendem os clientes em barracas e carrinhos rústicos desprovidos de qualquer sinal de gourmetização. E isso nunca foi um problema: é justamente a simplicidade e autenticidade do parque que moldaram uma relação especial com as pessoas, em especial com os moradores da região.
Indignação, reclamações e abaixo-assinados até agora não foram suficientes para impedir uma ruptura nesta história. A Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo decidiu considerar os vendedores invasores de espaço público. Pouco importa se alguns estão lá há mais de meio século, têm parentes doentes e, aposentados, não têm como sobreviver caso deixem o parque.
“Preciso disso aqui para viver”, diz Laurentino. É uma tarde de quarta-feira com pouco movimento no parque. Sentado em um banquinho ao lado de seu carrinho metálico carregado de cana-de-açúcar, ele não tem a menor ideia de qual será seu futuro. A carta exigindo que ele deixe o parque ainda não chegou, mas Laurentino desconfia que é questão de tempo. Vendedores que estão lá há muito mais tempo já receberam as visitas de oficiais de justiça, enquanto outros já nem estão mais no parque.
“A gente pagava direitinho até 2010, quando a administração do parque mudou e simplesmente não soubemos mais como pagar”, diz Laurentino. Sua versão para o que está acontecendo é a mesma de outros vendedores. Depois que a responsabilidade pelo parque passou da Secretaria de Agricultura para a de Meio Ambiente, os boletos deixaram de chegar. Não houve mais interlocução com os vendedores, que agora são acusados de terem passado todos esses anos sem pagar nada. Todo o valor pago anteriormente não foi levado em conta pelo governo, mesmo com os recibos guardados até hoje. Além disso, nenhuma proposta concreta para que regularizassem a situação foi oferecida. A ordem é sair do parque e pronto.
Por solução concreta, entenda uma solução acessível e inclusiva para quem trabalha há tanto tempo no parque. Porque, é verdade, no final do ano passado o governo realizou um chamamento público para interessados em vender seus produtos no local. “Esse chamamento sequer foi divulgado direito, só publicaram no Diário Oficial e não avisaram ninguém”, diz Rosete Sales. Ela está no parque há 41 anos. “E, caso ganhássemos, teríamos que pagar uns R$ 1500 por mês para continuar”, explica a vendedora.
Em um mês de muito movimento, Rosete calcula que sobre cerca de 1200 reais para ela. Ou seja, o valor pedido pelo chamamento não cabe na realidade dos vendedores locais. “Tanto isso é verdade que só um vendedor que estava aqui conseguiu ficar pelo chamamento, e outros novos que chegaram já foram embora por não conseguirem arcar com as exigências.”
Clientes que matavam a sede com os cocos de Rosete quando ainda eram crianças hoje levam seus filhos, já crescidos, na barraca da simpática senhora de 72 anos. “O frequentador daqui não quer que o parque mude. Nossa relação com eles é de carinho e amizade”, diz a vendedora.
Quando conversou com o IHF, faltavam apenas treze dias para Rosete deixar o parque. Ela recebeu a intimação e, apesar dos esforços de advogados contratados pelos vendedores, é muito pouco provável que algo mude até 15 de abril. Aí restará para Rosete deixar para trás trabalho, amigos e o lugar que foi sua segunda casa durante a maior parte da vida para ficar em casa fazendo sabe-se lá o quê. “Encontrar uma maneira de deixar a gente aqui não faria nenhuma diferença para os planos do parque. É muita maldade. Sem esse trabalho, eu não vou viver.”
Rosete ainda tem a companhia dos filhos Silvio e Silvana. Sua vizinha de barraca, Dagmar Pereira, nem isso. Aos 84 anos, ela vende no parque há 53. Sua especialidade é o cachorro-quente. Ela aprendeu a prepará-lo com o primeiro marido, segundo ela um dos pioneiros em “hot-dog” em São Paulo.
Dagmar também recebeu a visita dos oficiais de justiça. Ela está na mesma situação de Rosete. Religiosa, ainda crê que, na última hora, a vida vai se esquivar de lhe aplicar tamanha rasteira. Isso mesmo depois de ouvir de um dos oficiais que “agora não resta mais nada a fazer”. Dagmar gasta praticamente toda sua aposentadoria em medicamentos para o marido de 86 anos. Ele sofre de Alzheimer e passa o dia estirado na cama usando uma fralda geriátrica. Só uma das pomadas usadas por ele custa 60 reais, de acordo com a vendedora.
“Ninguém nem chamou a gente para conversar. Eles (a administração do parque, o governo) não têm nenhum respeito por nós”, diz Dagmar. Depois de contar sua história, ela não resiste. Chora, e lembra de um sonho que teve há muitos anos. Então com dificuldades para achar um local para acomodar seus apetrechos e mantimentos de trabalho no parque, ela sonhou com “um lugar com rosas e pés de alecrim e cravo”. Dagmar acredita que visualizou exatamente o lugar onde acabou montando sua barraca agora ameaçada.
O pedaço do parque onde estão Rosete e Dagmar transformou-se numa espécie de corredor da aflição. Porque, além delas, ali estão também José Lopes e seus sorvetes. Ele usa aquelas máquinas antigas que transformam um composto açucarado e colorido em sorvete de massa. Um equipamento centenário, segundo José. Ele trabalha no parque há 45 anos, mas, se depender da decisão da Justiça, o vendedor e sua máquina precisarão encontrar outro meio de continuarem ativos.
“Todos somos idosos, o que vamos fazer da vida se formos embora? Hoje nem os jovens conseguem emprego”, pergunta José, de 67 anos. “Nem se reuniram com a gente. Simplesmente disseram ‘xô, saiam daqui’, como se fôssemos animais”, diz o vendedor. “Demorei 45 anos para ter isso aqui e agora vejo o secretário na TV nos chamando de invasores”.
José se refere a Ricardo Salles, secretário do meio ambiente do Governo do Estado. É consenso entre os vendedores entrevistados que ele nunca abriu uma brecha sequer para negociação. Em uma entrevista para um telejornal, ele teria voltado a afirmar que os vendedores estão sendo expulsos porque ocupam espaço público sem que nunca tivessem pago por isso. José diz que guarda até hoje recibos dos muitos anos em que pagou, sim, para ocupar seu pedacinho no parque. “Mas foram completamente ignorados pela Justiça”, ele lamenta.
José tem três filhas que ainda dependem dele economicamente e não alimenta muitas ilusões em relação ao futuro. Quando o próximo dia 15 chegar, ele não poderá simplesmente levar seu carrinho de sorvetes para o outro lado do muro e seguir a vida. Ele até pesquisou espaços em shoppings, mas as mensalidades em torno de R$ 2500 e luvas que chegam a R$ 25 mil deixaram claro que hoje São Paulo não lhe dá opções. “É como se estivéssemos na beira do abismo esperando alguém nos salvar.”
Rafael vende pipoca logo ao lado. Sua presença no parque é tão longeva quanto a de seus colegas. Dia desses, uma oficial de justiça apareceu para visitá-lo. Queria conversar sobre a notificação para deixar o parque. Não o encontrou porque Rafael estava internado por conta de uma cirurgia de hérnia. Ele deixara um amigo, José Avelino, em seu lugar. Quando o IHF esteve no parque, a previsão era de que Rafael receberia alta do hospital na quarta-feira seguinte (05). Ainda não se sabia se o vendedor voltaria a tempo de vender pipocas no parque pela última vez.
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O IHF entrou em contato com a Secretaria de Meio Ambiente e fez uma série de perguntas relacionadas à situação dos vendedores. Obtivemos apenas a resposta copiada abaixo:
Os comerciantes que atuam no Parque da Água Branca moveram uma ação de usucapião contra o Parque em 2011; o juiz deu ganho de causa para o Parque e determinou a saída dos comerciantes. Desde então, o Parque vem atuando no sentido de cumprir essa determinação judicial. Informamos ainda que foi realizado chamamento público recentemente, pelo qual todos tiveram a oportunidade de participar para atuarem ou, sendo o caso, permanecerem no Parque. O chamamento terá validade de 06 meses e, após, será aberta uma licitação, na qual todos também terão a oportunidade de participar. Não temos como comentar sobre fatos antigos ou do passado, mas apenas sobre os ocorridos após 2012, quando o Parque foi transferido para a SMA. O valor de aproximadamente R$ 1.500,00 por mês foi definido com base na Resolução SMA 117, de 04/12/13, considerando o uso da área a ser utilizada pelos equipamentos em um período de 06 meses.