TRAP DE CRIA WORLD WIDE
O Festival Cena 2k22 comprovou que o Trap de Cria é o presente e o futuro da Cultura Hip Hop
Publicado em 07/2022
"Que papo é esse de guardar energia pra gringo? Aqui é Brasil porra, não vamo guardar energia pra gringo não, é nós que manda nessa porra", com essa fala de Borges, o show do Orochi começava no último dia do festival. Em meio à grande expectativa do show de Trippie Redd (19/06), após a sexta de lua cheia com o espetáculo sombrio do Playboi Carti (17/06) e outros ótimos shows de artistas internacionais como Pi'erre Bourne e DaniLeigh (18/06), o destaque ficou mesmo para os artistas nacionais. Foi uma grande celebração que passava a mensagem: Tudo nosso, nada deles. E depois de nós, é nós de novo!
Entre o mar de gente que se encontrou nos três dias de festival, a reação eufórica aos shows nacionais foi inigualável. De Ebony a Yung Buda, de Kyan a Yunk Vino, de Slipmami a Tasha & Tracie, o público surtava com a entrada das intros dos hits dos seus artistas favoritos no mesmo nível ou mais que a catarse provocada na apresentação do Carti.
O sentimento remete ao meme famoso criado pela página @funkeiroscults: Criacionismo é a teoria de que os crias que fizeram o mundo. E ficou fácil entender o por quê depois da entrega que a nova geração fez no Cena. Ninguém queria perder nada, a multidão corria de uma ponta a outra do Anhembi várias vezes para acompanhar todos os shows possíveis e gritar a plenos pulmões.
No total, foram mais de 110 shows em 3 dias. Apesar de alguns cancelamentos que deixaram o público triste, os artistas que se apresentaram não deixaram nem um pouco a desejar. Djonga, como de costume, elevou o nível sobre o que é fazer um show - depois da proibição da frase "Fogo nos Racistas" pela justiça de SP, sua resposta foi literal para os bons entendedores: uma performance onde um racista foi queimado ao vivo.
Se o Cena ganha destaque nacional por ser o festival que mais traz artistas de fora, as pessoas responderam com suas reações que eles são apenas a cereja do bolo, mas o que faz a galera vibrar mesmo é o som brasileiro.
Duas cenas marcantes deixaram isso muito claro pra gente: com o início do show dos Racionais, era possível ver não só os pagantes, mas diversos trabalhadores do festival, em seus postos, cantando as músicas, fazendo vídeo-chamadas e gravando a apresentação dos quatro homens mais temidos da selva de pedra; além disso, os shows do Bruxo 021 e da N.I.N.A. do Porte no palco 3, previstos para o mesmo horário de Trippie Redd, tiveram uma massa surpreendente, levando a MC de Drill ao choro emocionado no final da sua apresentação: "Muito obrigado a todos vocês que ficaram aqui, eu amo vocês, vocês são foda, eu só estou aqui por causa de vocês! Não tenho palavras para essa noite, onde eu pude cantar no mesmo dia que os Racionais, os caras que formaram a minha visão de mundo, que me ensinaram que eu sou preta e eu sou linda", disse Nina - que tinha em sua platéia uma cantora, hoje consagrada, que viveu uma situação bem semelhante há alguns anos atrás no Circo Voador: Tássia Reis.
Um brinde à fartura e abundância
Entre os muitos momentos marcantes, uma mensagem coletiva foi passada e compartilhada dos artistas para o público, onde a noção do que significa ascender e conquistar ultrapassa uma visão individualista, é sobre fartura pra todos. Comportamento clássico de quem vive a cultura Hip Hop e o rolé das batalhas de rimas, muita coisa foi distribuída para o público, desde maquiagem, chocolates, camisetas, bonés, adesivos e até uísque - um salve pro MD Chefe!
O clima era convidativo, participações surpresa aconteceram inúmeras vezes, desde Igão do Podpah entrando no show do Kyan, até o próprio Kyan no show do Borges, Larinhx no show da Slipmami, G4 Boyz no show da Recayd, entre outros. As mães também tiveram espaço, participando dos shows de Tasha & Tracie; bem como Abbot levou sua mãe pra gastar uma onda no meio do show da Brocagang; fora uma linda homenagem que Kyan fez para sua falecida coroa ao cantar "Nós é ruim e o cabelo ajuda" e por aí vai.
E assim o Trap de Cria se consagra uma relíquia brasileira. Com esse movimento de proximidade, felicidade e abertura, fica a sensação de que a existência do primeiro expoente brasileiro do Trap mundial pode estar mais próxima do que imaginamos.
"Que tenham mais artistas de outros lugares, que cada vez mais a gente seja reconhecida. Eu não quero só eu nesse palco não, tem muita gente foda pra ser vista ainda", disse OG Capitu ao final do seu show.
Depois de quase três anos de espera, valeu a pena vivenciar cada momento do festival para ver em um curto período de tempo, o que significa o cenário do Trap nacional e como ele é muito mais potente do que as mídias tradicionais mostram. Não é à toa a quantidade de artistas que já participam de premiações internacionais como o BET Awards e canais gringos de react aos sons brasileiros como o Goony Googles, que diz em sua linha de sobre: "Eu não esperava. Este canal pertence ao Brasil agora."
Como canta Sant no refrão icônico que abriu seu show, "se eu parar pra ver, o tempo passou, passou, mas ainda há tempo pra ser o que eu quiser, o que eu fizer valer", e realmente, pegando a profecia de Marechal nesse som, a pista descartou quem tava só pra pagar de artista e os liricistas se destacaram passando a visão do papo reto.
Um resumo do festival em algumas palavras: euforia, emoção, potência, zoação, celebração. Nenhuma apresentação foi de baixa energia, o bagulho foi foda de verdade, foi sincero. Destaque para os shows na parte da manhã e início da tarde, como Putodiparis, Yung Buda, Major RD, Caio Luccas, Ebony, OG Capitu, Slipmami e Jovem Dex.
Por essas e outras que o público corria desesperado em alguns momentos, como no começo do show da Brocagang e os montes de pessoas que iam se formando e se jogando na grade pra cantarem juntos "Ritmo é brasileiro, mas meu porte é estrangeiro. Nego eu vou falar pa tu, essa pistola não é brinquedo. 380 na mochila, no teu grelo eu dei mordida. Ela quer fuder com o trem, ela gosta dos trafica".
Conversamos com dezenas de pessoas ao longo do evento e todas falavam a mesma coisa: "os brasileiros se destacaram muito mais". E aqui, também vale ressaltar o seguinte: foi a primeira vez de muitos artistas apresentarem seus trabalhos mais recentes ao vivo - com certeza, uma experiência inesquecível pra geral.
É o drip da tropa!
Estilo e conforto resumiu: no frio que rolou nos dias de festival, ninguém deu mole e fez valer o papo que as pessoas se vestem mais chiques. Entre as peças de maior destaque: balaclavas, puffers, juliets e ices.
Depois da música, a frente de maior força na cultura trapper é a moda, o que ficou mais do que indiscutível com a rapaziada que foi ao festival. Desde modelos nacionais a algumas internacionais - como Ágatha Lima, Nalu e Gabi Brótos - além de figurinistas e donos de marcas - como Yego e Salmazo. Ou seja, o futuro do streetwear brasileiro representou em peso no evento.
Yego, inclusive, foi um dos pontos de conexão do cenário internacional com o Brasil - amigo dos caras da G4 Boyz, é referência em vivência e no corre das notas pra quem chegou por aqui e não queria cair em rolé zoado.
De maneira geral, o estilo é um ponto forte de atração entre os envolvidos na cultura, era comum ouvir pessoas se cumprimentando e elogiando o estilo do outro. Frases como: "Seu grillz é daora", "Que ice foda!", "Esse cabelo tá bala demais", entre outras, demonstravam como admirar e elogiar o outro é a porta de entrada para se relacionar e construir oportunidades para si na cena.
Visão tropa! Nosso papo sobre o Cena 2k22 é um só: o mundo é dos crias e o Trap de Cria é a trilha sonora dessa conquista, o que tem de mais brasileiro na identidade da nova geração da música popular daqui. Quem não consegue enxergar isso só pode ser ruim da cabeça ou doente do pé. Como diria Gxlden, MC carioca e criador do termo: "Todos os meus cria, naquele pique de bandido."
Quer entender mais? Dá um check no documentário "Trap de Cria" e na Websérie que rolou pós-doc. Muita fé!