Top Hits 2022
A ascensão dos ritmos nordestinos nas paradas do YouTube no Brasil
Publicado em 12/2022
Eu ouvi a palavra "pisadinha" pela primeira vez em 2018, quando almoçava num bar no centro do Recife. Era uma sexta-feira e a tarde encaminhava-se para o fim. Sem mais clientes para atender, o garçom pegou o celular e botou uma música para ir dando o clima do final de semana enquanto organizava as últimas mesas e cadeiras. "Só no forró, né?!", comentei, puxando assunto. "É pisadinha", corrigiu-me. Fiquei curioso: "E qual a diferença?" Ele pensou por alguns segundos e, dando de ombros, respondeu sorrindo: Sei lá!"
Dois anos depois, aquela palavra caiu na boca do brasileiro, mas agora com uma identidade bem mais definida. A pisadinha — vertente do forró também chamada de piseiro e caracterizada pelo som dos teclados — foi o gênero musical mais ouvido no Spotify Brasil em 2020. No ano seguinte, a pisadinha ocupava 5 das 10 posições das músicas mais tocadas do YouTube.
No último dezembro, o YouTube divulgou a lista dos vídeos musicais mais tocados da plataforma no ano de 2022. Lá estão dois representantes do gênero: "Balanço da Rede", de Xand Avião e Matheus Fernandes, e a romântica "Comunicação Falhou", de Mari Fernandez e Nattan — duas novas estrelas da cena.
Claro, não é de hoje que o forró é um movimento de força e relevância — o próprio Xand Avião possui uma longa história de sucesso à frente da banda Aviões do Forró. Mas esse nível de sucesso e, sobretudo, consistência e continuidade parece inédito ao gênero. Além disso, a pisadinha acabou misturando-se com outros estilos musicais e puxando consigo uma miríade de outras sonoridades do Nordeste que vêm transformando o vocabulário do pop nacional — embora nem sempre tenha levantado a voz dos artistas nordestinos.
Além do forró, na lista 2022 do YouTube destaca-se a bregadeira, ritmo com origens nos paredões de som da Bahia. Mas esse som é a base de "Malvada", hit do goiano Zé Felipe que ficou no topo do ranking. A bregadeira ainda está presente em "Botadinha Saliente", do cearense Rogerinho e em "Depende", um feat de Wesley Safadão, DJ Guuga e Zé Felipe — ele de novo.
Funk em baixa?
Mais uma vez o sertanejo domina o ranking: quatro posições são ocupadas por artistas do gênero, incluindo aí Gusttavo Lima, Henrique e Juliano, Ana Castela, Simone & Simaria. A surpresa é a queda do funk, que desde 2016 é o maior concorrente do sertanejo. Em 2022, o batidão só aparece duas vezes na lista e nos dois casos é mais puxado para o pop: o funknejo "Pipoco" (de Ana Castela com Melody e DJ Chris no Beat) e "Sentadona" (de Luisa Sonza com Davi Kneip, Mc Frog e o Dj Gabriel do Borel). Cenário bem diferente do ano anterior, que contou quatro funks no top 10.
Então podemos falar que o funk está em baixa? Não é bem assim… Antes de tudo é preciso levar em conta que um top 10 é uma amostragem muito baixa para fundamentar uma afirmação desse tipo. Além disso há o funk esteve presente nas listas mensais — você deve ter ouvido "Ai Preto" e "Desenrola Bate de Ladin" tocando por aí durante meses.
Só que tem um ponto mais complexo aí: podemos ouvir uma presença forte do funk mesmo em músicas que não são de funk. Porque a lógica de construção, o pensamento a partir das frequências sonoras, o uso de certos tambores, de samples e loops atravessa praticamente todas as músicas. Mesmo que não apareça de modo explícito, o funk está profundamente entranhado no som de músicas como "Botadinha Saliente" (com suas cornetas sombrias e graves pesados) e nas gírias de faixas como "Malvada".
O funk tornou-se a base do pensamento pop brasileiro. É como o dub: ainda que um produtor musical não trabalhe diretamente com dub, ele bebe do seu legado porque toda a música pop moderna está assentada nos procedimentos técnicos que os jamaicanos do dub instauraram ao interpretar o estúdio como um organismo vivo, como um instrumento e recurso expressivo. O funk é uma presença transversal no coração do mainstream nacional.
Zé Felipe e o fenômeno dos feats e influencers
O chart do YouTube também teve um feito individual. Zé Felipe emplacou três posições do top 10. Até então, somente Anitta havia realizado tal feito, em 2017.
A diva de Honório Gurgel conseguiu o recorde participando três feats, todos com perfis bem diferentes — "Loka" com Simone e Simaria, "Você Partiu Meu Coração", com Nego do Borel e Wesley Safadão, e a internacional "Sua Cara", com Pablo Vittar e Major Lazer. Zé Felipe trilhou o mesmo caminho. "Malvada" é seu único hit solo. Os outros dois são acompanhados: "Vontade de Morder" ele divide com Simone & Simaria e "Depende (Se Quer Saber Se Eu Tô Solteiro)" foi gravada ao lado do cearense Wesley Safadão e do paulista DJ Guuga. A estratégia funciona bem porque, além de somar as audiências, reúne públicos distintos e a mesma pode tocar no baile funk e na festa sertaneja.
Já "Malvada" teve estourou com outra lógica de divulgação. A número um do ranking — com 268 milhões de views; 30 a frente da segunda colocada "Termina Comigo Antes", de Gusttavo Lima — foi impulsionada com a participação da influencer Virginia, esposa de Zé Felipe. Ela atraiu seus mais de 40 milhões de seguidores para o vídeoclipe criando coreografia (reproduzida infinitamente no Tiktok) e também postando a música incessantemente em seus vídeos no feed e stories, fazendo da música um viral. Tudo isso embalado por ritmos como bregadeira e pisadinha, o som dos paredões nordestinos, que fizeram Zé Felipe descolar-se de vez do estilo romântico do pai, o sertanejo Leonardo.