Rebobinando: Cabelinho
Trocando uma ideia com o funkeiro no dia da sua festa de aniversário
Publicado em 05/2020
Em fevereiro desse ano, Fernando me convidou pra ser assistente da nossa amiga Marcelle, que faria as fotos do Marcelo D2 em um dos dias de campanha da Adidas com Flamengo. Nos outros dias, o Fê seria o fotógrafo, ela seria a assistente e eu consegui ir de gaiata, feliz de acompanhar de perto os bastidores de uma campanha tão significativa. Em um desses ensaios, durante os cliques do MC Cabelinho, que aconteceram ao longo de uma caminhada pelo Pavão-Pavãozinho, ele nos convidou pro seu aniversário que aconteceria no dia seguinte na comunidade. O Fê sugeriu que a gente trocasse uma ideia sobre a festa, checou minha vontade e disponibilidade e foi assim que aconteceu. Ele topou, eu topei, entrevista marcada pro dia seguinte.
Sábado, 8 de fevereiro, subimos a comunidade à tarde. Assim que chegamos, nos encontramos no salão de beleza, onde alguns amigos do Cabelinho deixavam o cabelinho na régua para o evento. Menos o próprio aniversariante, que por estar na novela (gravada antes da pandemia) não podia mexer no visual. Subimos com ele e o Cadu, seu fotógrafo, para uma laje com uma vista incrível pra grande parte de Copacabana e da comunidade, onde fizemos alguns dos registros dessa zine. Demos pra o MC uma câmera descartável de presente pra ele fazer fotos do seu aniversário. Os cliques que se salvaram, apesar do filme vencido, também tão aqui na zine. Tã fácil descobrir quais foram.
Por todos lugares, sinais de que era dia de festa grande no morro. Shows de Filipe Ret, Menó Toddy, Grupo Tá na Mente, PK Freestyle, MC Bielzinho do CPX, DJs Davi, Luan, Juninho, 2XU, Aranha, Juliano e Mumu do Tuiti, com participações do Cabelinho. Aberto a todos. 0800. Na contramão de um governo elitista que tenta criminalizar os bailes dentro das favelas, a gente presenciou muito mais do que a festa de aniversário de um artista: foi também promoção de lazer gratuito, de cultura popular acessível e entretenimento democratizado. O que tá nas letras do Cabelinho é reflexo de uma vivência real, de ações concretas, de preocupações urgentes. Na época, lembro de pesquisar sobre ele pra fazer a entrevista e topar com uma música que ele participa, com o seguinte trecho:
"Tô de cabeça erguida (fé)
Apesar de estar à margem da sociedade
E eu fico feliz da vida
Quando eu vejo um preto se formando em faculdade
Um tiro de bala perdida (pra, pra)
Que saiu de uma arma de fogo de uma autoridade
Agatha era só uma menina (uma menina)
Que hoje deixou lembranças e muita saudade"
Essa música foi lançada em dezembro. Em fevereiro, Cabelinho conversou comigo - dentre outras coisas - sobre violência nas comundades. Essa semana, João Pedro, 14 anos, foi assassinado dentro de casa pela polícia. A violência segue atemporal e atual como sempre foi pra quem é oprimido pelo sistema. Mas esse é mais um assunto que ele vai saber falar muito melhor do que eu.
Eu queria que você me contasse como você começou com a música.
Então, foi no ano de 2011. Eu ouvi funk a minha vida toda, desde pequeno criado em morro, ouvia funk pelos bailes, no meu mp3 e na escola ficava tentando rimar. No ano de 2011, os moleque aqui do pistão mesmo, esses menó que eu ando que é criado comigo, falou “po tu num gosta de ficar rimando? faz uma rima com o nome de geral”. Aí eu vi que conseguia rimar com o nome de geral, soltei na internet essa música, tipo do bonde. Todos os bondes do morro começaram a pedir também, as músicas começaram a tocar nos bailes, pelos bondes… mas era só de bonde, tá ligado? No ano de 2012 eu falei assim: “ah, não quero mais cantar pra bonde não, agora eu quero virar um MC mesmo, independente, e fazer meu som solo... Vou começar a fazer show, ganhar dinheiro mesmo e fé". Devido ao meu nome ser Victor, todo mundo me chamava de Vitinho, então quando eu decidi ser MC mesmo, quis ser MC VItinho, mas cheguei no estúdio pra gravar minhas músicas e o DJ falou assim “Pô cara, tu não pode ser Mc Vitinho não, porque Mc Vitinho já tem". E realmente tem, podia dar conflito e tal. Ele viu meu cabelo arrepiado na época, loiro e pá e acabou ficando Cabelin.
E começou aqui no PPG?
Sim, sempre. Criado aqui, nascido e criado.
É importante pra você esse apoio do pessoal aqui, né? Dá pra ver que você anda por aqui e fala com todo mundo, todo mundo te conhece, respeita…
É, porque querendo ou não, o pessoal tá acostumado comigo, eles me viram crescer. Nos dois sentidos mesmo, virando homem e crescendo, artisticamente, profissionalmente, então acho que eles sentem orgulho de mim. Alguns… alguns…
Você acha que foi importante pra você primeiro fazer seu nome na sua comunidade?
Sim, eu acho que tem que vir da comunidade pro mundo, porque do meu morro, eu fui conhecido no Tabajara, do Tabajara fui conhecido no Santa Marta, esses morros da Zona Sul, e aí foi expandindo o trabalho, entendeu?
Tem muita gente que é boa também, mas acaba não sendo vista ou nao vai pra frente…
Do morro, você diz?
Acho que do mundo inteiro, mas no morro é mais mais difícil, né? Porque as pessoas tem que andar o dobro pra chegar...
É igual o Mano Brown fala, quando você é preto você tem que ser duas vezes melhor. Então é isso, eu acho que aqui no morro tem muito talento. Muito talento mesmo. inclusive posso mostrar depois pra vocês alguns cria daqui que também fazem sons maneiros. Falei com um deles hoje: o Gabriel Brutus. Vou começar a levar ele lá no meu estúdio pra ele começar a gravar os sons dele. O que eu puder fazer pra ajudar eu vou ajudar.
Qual você acha que foi a diferença entre o Cabelinho que podia não ter dado certo por conta de todas essas dificuldades e o que deu certo? O que você acha que foi o divisor de águas pra você estar onde você tá hoje?
Acho que a sede de vencer, de mostrar que favelado pode vencer. Esse lance de vagabundo ficar criticando nós, falando que na favela só tem bandido. Meu sofrimento também me alimentou muito, o sofrimento da minha mãe me alimentou muito. Muitos MCs me inspiraram, principalmente o MC Orelha, um cara que eu sou muito fã e tenho como referência. Olhava o Orelha cantando, fazendo vários shows, falei: cara, quero ser igual ele. Ganhando dinheiro, ajudando família, favelado também. Isso me inspirou e me ajudou muito.
Às vezes de estar em casa querer comer um bagulho maneiro e não ter pra comprar. Eu falo “ah, um dia eu vou ter, tu vai ver". Então isso me alimentou muito, mas também é muito difícil, cara. Acho que aqui no morro, em todos os morros, em todas as comunidades, é muito fácil do jovem se perder pro crime. Acho que pai e a mãe tem que estar sempre presentes na vida do filho, por mais que muitos - a maioria da comunidade - não tem o pai e a mãe presentes. Porque uns infelizmente são presos, umas mães são viciadas, e vice-versa. Aí cresce à mercê do que a vida propõe ali na hora. Aí tu vê um jovem de quinze, dezesseis anos estudando, talvez tentando arrumar um jovem aprendiz na rua, um trabalho, e não consegue. Ele ve um cara no morro, armado, cheio de ouro, andando de moto pra lá e pra cá… eu acho que fica muito mais fácil, né? Ele entrar pro crime ali, que é um dinheiro mais rápido. Tu entende o que eu to falando?
O que eu acho é que tipo assim: o governo podia entrar com mais projetos sociais na favela. Aqui tem ainda, tem a academia Nobre Arte, tem o jiu jitsu, aqui tem bastante... Mas tem muita favela da zona oeste que não tem porra nenhuma e às vezes isso me dá uma revolta do caralho. Aí nego fica se perguntando porque muitos jovens às vezes viram bandidos, acha que é porque quer… Porra nenhuma.
O que você acha da sobre funk, rap e cultura na comunidade?
Funk e rap são dois gêneros que só muda a batida mesmo, porque os dois vieram de periferia e passam a mesma mensagem. O funk tem ostentação, o rap também tem ostentação, o funk tem putaria, o rap também tem putaria. E tem o consciente, que os dois tem.
Por que você acha que isso incomoda o conservador?
Eles não gostam de ouvir a verdade. Acho que eles ficam mais putos ainda de ver nós aqui vencendo. Tem muito preconceito ainda nessa porra, mas se depender de mim vai mudar isso. Acho que já tá mudando, acho que já entenderam que a favela ta vencendo.
Seu aniversário é uma forma de celebrar isso também de certa forma?
Sim, todo ano eu faço, mano. Todo ano eu quero fazer o bagulho e é pela comunidade. Os artistas que tão vindo: Filipe Ret, Meno T, Tá Na Mente, Maskan PK, Mumu, os moleques da Espanha que são cria comigo. Eles tão vindo no amor. Igual o Ret, falei "coé Ret me dá uma moral", ele falou "claro, ainda mais pela comunidade, tô contigo". E a entrada é 0800, pra todo mundo curtir, isso é uma forma de lazer. Favelado só quer curtir o baile tranquilo, curtir um forrozinho tranquilo, beber a cerveja dele no final de semana, sem polícia entrar atirando. Nem todo mundo tem condição pra curtir um bagulho na Barra não, nois só tem o nosso bailinho que é 0800 e as tradições que tem, a gente vai curtir mesmo.
Ainda tem quem venha atrapalhar, né?
É, isso aí que é foda, os cara vem atrapalhar. Ainda volta as operações em época de escola, nas férias ninguém veio, é um assunto complicado.
Mas tem que ser falado, né? A gente precisa falar disso, ainda mais pra tanta gente que vive numa bolha, que não tem a oportunidade de viver isso aqui, de estar aqui e ver como é a vida de quem mora na favela.
Eu só saí daqui mesmo pra morar em outro lugar devido à violência, se não eu não sairia. Porque eu amo isso aqui. Amo minha rapaziada, algumas pessoas da minha família ainda moram aqui. Eu saí mesmo por causa de acesso, minha correia dobrou, então vai que eu tenho shows pra fazer em outro estado e a bala ta comendo, eu não consigo sair e deixo contratante e fã na mão... Então, acredito que a maioria sai da favela por causa disso. Senão, taria aqui até hoje, é bom pra caralho, olha a vista que nóis tem, se aqui não tivesse violência... infelizmente tem sim.
Aqui todo mundo é família, se tiver uma casa pegando fogo todo mundo ali vai correr com balde d'água pra apagar. Se tiver alguém precisando, todo mundo vai ajudar. Ano passado meu aniversário foi aqui, isso aqui tava lotado. Tava rolando evento e o poste pegou fogo no meio do evento. A luz tava piscando já, querendo parar. Os moradores subiram na laje e começaram a jogar terra.
Que mensagem você acha que leva pro mundo? As pessoas verem você saindo daqui pra atuar em novela, indo pro mundo...
Se o Cabelin conseguiu, eu vou conseguir também. Acho que eu to motivando algumas pessoas, sonhadores. Acho que ninguém deve desistir do seu sonho mesmo não. Tem que botar a cara mesmo, bater de frente com esse governo filha da puta que nóis tem. Falar mesmo, expressar nossos sentimentos, nossa realidade. Acho que muita gente ainda não conhece a realidade daqui. É isso, a mensagem é essa… Foi? Esculachamos.