Profissão: Cozinha
Esqueça o Masterchef, Lucio Vieira, do Lilia, conta como é a rotina de um cozinheiro fora da TV
Publicado em 03/2018
Existe uma coisa meio mágica na cozinha, em pegar ingredientes brutos e transformá-los em um alimento delicioso e lindo. Duvida? Separadas, água e farinha de trigo são só água e farinha de trigo. Juntas e depois de ir ao forno, viram pão. Uma cozinha com decoração impecável, aventais sempre brancos e facas sempre afiadas, no foco de trocentos equipamentos de iluminação e no horário nobre da nossa TV, então… É a receita perfeita pro encantamento.
Só não pense que a cozinha e a rotina de um restaurante são parecidas com o Masterchef - até porque nem toda cozinha tem a Paola Carosella. Mas, ainda assim, trabalhar entre panelas pode ser bem maneiro e não tem idade certa para começar - inclusive, o número de pessoas que têm apenas uma profissão por toda a vida está diminuindo consideravelmente.
Por isso, fomos conversar com Lucio Vieira, chef do Lilia, para saber mais sobre a realidade de um cozinheiro - realidade mesmo, sem maquiagem pras câmeras HD e com boné no lugar do famigerado chapéu de chef. Tudo bem, ele começou a se encantar pelo ofício assistindo aos programas do Jamie Oliver e lendo um livro do Anthony Bourdain, dois popstars das panelas, mas logo descobriu que a cozinha não é feita de glamour e holofotes.
"Esses reality shows não mostram nada da realidade porque trabalhar em cozinha é rotina, é dia-a-dia. É todo dia ter que descascar os legumes, fazer a sua praça, é chato pra caralho. O chef perturbando, pedindo pra fazer o prato de novo. Lembro da sensação de quando comecei a trabalhar e senti as costas queimando, porque até então eu não tinha o costume de ficar tantas horas em pé. Mas passa, a gente se adapta", conta Lucio, que antes do Jamie Oliver e do Anthony Bourdain, só cozinhava farofa, molhos com muito queijo e "umas tosqueiras" porque gostava de comer mesmo.
Até que não passou no vestibular para Arquitetura e decidiu fazer o curso técnico de Gastronomia do Senac. "Já saí de lá com um emprego e fui trabalhar num pub em Niterói, mas não fiquei nem um mês, porque só saía batata frita e filé aperitivo", conta, rindo. Do pub foi para a sala da faculdade de Gastronomia e logo começou a estagiar no Miam Miam, da chef Roberta Ciasca.
"A faculdade não é essencial, mas foi bom ter feito, ela te dá uma base. A prática te ensina de maneira muito mais rica que a graduação. Vida de cozinha é tempo de voo. O repertório de sabores vem de trabalhar com vários chefs em várias cozinhas diferentes, você vai assimilando umas coisas que gosta aqui e ali", explica.
"Até hoje me pego fazendo coisas que são do Checho [Gonzalez, chef boliviano que atualmente mora em São Paulo e é um dos mestres do Lucio]. Não a receita, mas a forma de enxergar o produto e ver as possibilidades que ele tem. Trabalhando com ele, também conheci um nível de exigência com o comprometimento das pessoas da equipe que até então eu não tinha visto, esse padrão de comportamento, de cobrança. É foda, é um choque de 'pedala, moleque!'. Mas foi muito bom, muito importante", conta Lucio.
Nem todo cozinheiro precisa abrir um restaurante, assim como nem todo profissional de moda precisa abrir uma marca, mas Lucio acabou virando cozinheiro e empresário no ano passado, quando abriu o Lilia, com o primo Mateus Siqueira. É possível abrir um negócio sem padrinho aos 30 anos, é só encontrar um caminho viável para todo mundo. No caso do Lucio, é escolher um prédio charmoso no centro do Rio, na Rua do Senado, cujo aluguel é mais barato que o de um ponto na Zona Sul, abrir apenas para almoço (por enquanto) e ter um menu enxuto com três opções de entrada, prato principal e sobremesa (incluindo pratos vegetarianos, que podem receber o upgrade para serem veganos) - tudo isso pelo preço fechado de R$ 50. O cardápio muda constantemente, de acordo com os produtos que os fornecedores têm de mais fresco, abundante e, consequentemente, barato, mas sempre tendo como base os legumes orgânicos, PANCs (plantas alimentícias não-convencionais), frutos do mar e carnes.
"Não pensava em abrir um restaurante, na verdade, queria fugir disso, mas a única forma de fazer o trabalho da forma que eu faço aqui era abrindo o meu restaurante mesmo. Até porque não tenho - não tinha, sei lá, não sei se algum dia vou ter - nome pra ter alguém investindo e abrir um espaço pra eu fazer o que eu quisesse. Eu tinha que correr atrás de abrir o restaurante pra fazer isso. Então, por isso eu tive que abrir o Lilia, pra fazer as coisas da forma eu eu queria, que eu acreditava. E o desafio era entregar um produto simples, sem muita firula, mas com qualidade, com integridade de procedência", explica.
Um dos pilares desse formato é o relacionamento com os produtores, principalmente o casal Thayná e Matheus, que produz as PANCs e legumes orgânicos em um sítio em Teresópolis e praticamente define o cardápio da semana a cada entrega.
"A minha relação com eles é primordial pro Lilia. Essa variedade de verduras, as PANCs, não fui eu que descobri, eles que me apresentaram. É foda porque não temos um pedido fechado, eu faço o cardápio de acordo com o que eles trazem. E quando eu me disponho a trabalhar com o que recebo, me obrigo a ser criativo. Na semana passada, eles trouxeram três sacas de milho! Não sabia o que fazer com tanto milho! Mas quando eles têm muito de um produto, ele vai estar mais barato, e se tiver muito, eu vou ter que me virar pra fazê-lo de três, quatro, cinco maneiras. Picles, cebola, gazpacho e mais sei lá o que. A ideia de aproveitar o alimento ao máximo, sem desperdício, está nos pilares dessa maneira de trabalhar que eu acredito", diz.
Mas não é só entrega na porta, três vezes por semana o chef parte para o mercado de peixe de Niterói às duas horas da manhã para comprar frutos do mar fresquinhos - e baratos, é claro. "Pra fazer um menu de R$ 50, o custo tem que estar bem amarradinho. Tinha medo de não conseguir fechar esse ciclo, mas estamos conseguindo. Eu achava que ir direto na fonte era uma parada meio romântica, mas vi que isso é a parada mesmo, é a verdade. Pelo menos é a verdade do que eu faço, onde eu me encontrei", conta.
No fim das contas, vale a premissa millenial: sua forma de trabalhar não precisa ser igual ao Jamie Oliver ou à Nigella, ela só precisa ser verdadeira, pé no chão e sem preguiça - nem mesmo se for pra acordar de madrugada pra comprar peixe longe de casa.