Profissão: Carnaval
Entre muita pesquisa e paetês, como é o trabalho de Clark Magabeira, um profissional da Sapucaí
Publicado em 02/2018
Me corrijam se eu estiver errada, mas no Guia do Estudante e nos processos de teste vocacional, não existe a opção: "Vai lá ser carnavalesco". Mas a cada Verão dezenas de escolas de samba atravessam a(s) avenida(s) cantando, sambando, espalhando alegria e celebrando os minutos mais felizes do ano de seus componentes.
Não importa se chove ou se o céu tá estrelado, se tem crise ou abundância econômica e nem se o prefeito quer ou não - se ele não quiser, quem se importa? Crivella nem sabe como funciona o processo para eleger a escola de samba vencedora da disputa e prefere encarar a maior manifestação cultural e social da cidade, a festa que mais atrai turistas pro Rio e movimenta bilhões na economia, como "uma folguinha", algo sem importância. Mas a gente não.
E quem trabalha pra colocar tudo isso em ordem? Pra contar uma história com pedrarias, batuque e paetês? Milhares de pessoas, inclusive Clark Mangabeira. Professor da Universidade Federal de Mato Grosso e morador de Cuiabá, Clark é um carioca tão apaixonado por carnaval que trabalha como voluntário pra festa acontecer.
Neste ano, ele atuou como pesquisador da União da Ilha do Governador, sua escola do coração, que está no Grupo Especial carioca, e no desenvolvimento do enredo do carnaval da Unidos do Viradouro, que desfilou no Grupo de Acesso A e ganhou a disputa sem perder um décimo no quesito Enredo. Clark arrasou tanto que ajudou a escola a subir pro Grupo Especial - e só com 10, nota dez!
E nós conversamos com ele para entender melhor como funciona o trabalho numa escola de samba antes da sirene tocar no Setor 1 da Sapucaí e, quem sabe, te inspirar a seguir carreira num barracão.
Quando você pensava o que fazer da vida, na adolescência, cogitava trabalhar com carnaval? Meu trabalho com o carnaval é puramente baseado em afeição, carinho, admiração e reverência. Trabalho com a equipe de criação dos carnavalescos porque gosto de participar dos bastidores da festa, e não por questões financeiras (até porque sou voluntário). Nunca me imaginei em alguma equipe de criação carnavalesca! Mas, quando entrei no carnaval, quando descobri as articulações da cultura popular com tantos níveis de criação, fiquei encantado. Aí você percebe o quanto o carnaval é fundamental para a vida de quem o vive na Sapucaí; para o Rio, enquanto realidade anual fundamental para a cidade, central para a educação e cultura dos cariocas e brasileiros; e para o Brasil, como patrimônio cultural e educacional do mais alto valor.
Quando e como você começou a trabalhar com carnaval? Minha história com o trabalho no carnaval foi inusitada. Até 2013, era apenas um "folião distante", acompanhava pela TV e não tinha nenhuma relação com Escolas de Samba. Em 2014, as coisas mudaram quando um amigo me convidou para assistir ao desfile na Sapucaí e também para desfilar na Beija-Flor e no abre-alas da Acadêmicos de Santa Cruz. Em 2015 e 2016, fui me aproximando, sempre desfilando, indo aos ensaios técnicos e às quadras, e, em 2017, Victor Marques, co-autor da sinopse e do desenvolvimento do enredo da Viradouro de 2018, me apresentou ao carnavalesco Edson Pereira, na época na Unidos de Padre Miguel: aí comecei a me envolver profissionalmente. Ficamos responsáveis por um carro alegórico na concentração da Unidos de Padre Miguel, antes do desfile. Daí, não parei mais, até que, para o carnaval deste ano, Edson, agora na Viradouro, me convidou para escrever o enredo e todos os textos relativos ao desfile, e, na União da Ilha do Governador, o carnavalesco Severo Luzardo, a quem eu abordara via Facebook e na quadra por ser a Ilha minha escola do coração, me convidou para ser o pesquisador.
O que alguém que quer trabalhar com a mesma coisa que você precisa aprender/ estudar? O carnaval é democrático: há espaço para quem quiser ajudar e trabalhar. Eu trabalho com escrita e pesquisa, daí, claro, meus títulos acadêmicos me ajudam - sou bacharel em Direito (UFRJ), Ciências Sociais (UERJ), Letras (UERJ), mestre em Ciências Sociais (UERJ) e doutor em Antropologia Social (UFRJ). Contudo, títulos não são condições para o trabalho. Nem de longe são importantes para pesquisar ou escrever no carnaval! Acho que o mais importante para quem queira se envolver é se dedicar a fazer bem feito aquilo a que se propõe.
No meu caso, minha trajetória acadêmica me ajudou, mas é apenas minha história. Para pesquisar e escrever, basta isso: dedicar-se a pesquisar e escrever e se empenhar. E há espaço para quem trabalha com administração (afinal, coordenar um barracão é trabalhoso, por exemplo), logística (como colocar todo mundo na Sapucaí?), aderecistas, pintores, marceneiros, costureiros, chapeleiros, sapateiros, ritmistas, compositores, coreógrafos, assistentes, foliões, diretores de ala, integrantes da escola que organizam o desfile na Sapucaí e nos ensaios, enfim, gente com as mais variadas habilidades! Isso é maravilhoso: conviver com tantas histórias de vida o ano todo, todos focados no objetivo final de por a escola na avenida.
Para o Carnaval 2018, você trabalhou em duas escolas com funções diferentes. Qual foi o trabalho desenvolvido para cada uma delas? E é tranquilo ficar em duas escolas ou existem questões de exclusividade? Na Unidos do Viradouro, o carnavalesco Edson Pereira, o professor de português e literatura Victor Marques e eu somos os autores da narrativa do enredo. Ou seja, fomos nós que montamos e escrevemos a "história" que foi apresentada na avenida, através da plástica do carnavalesco, da samba e de todos os elementos do desfile em si. Além disso, Victor e eu, com avaliação do carnavalesco, defendemos todas as fantasias e alegorias no caderno que é destinado aos jurados para que eles possam analisar e julgar o desfile. Assim, para cada fantasia vista na avenida, para cada elemento (mestre-sala, porta-bandeira, destaques, musas etc.) há um texto que o justifica dentro do enredo da Viradouro ("Vira a cabela, pira o coração: loucos gênios da criação"). Tudo deve estar encaixado com a proposta do enredo e até com o samba, todos os detalhes dentro da composição que criamos na sinopse do enredo.
No caso da União da Ilha do Governador, eu não sou o autor do enredo. Lá, meu trabalho com o carnavalesco Severo Luzardo foi de pesquisa: todo o material que serviu de base para que ele escrevesse o enredo, pensasse na plástica das fantasias e nos elementos que compõem o desfile, foi pesquisado por mim, em textos acadêmicos, livros, teses, dissertações etc. No caso da Ilha, o enredo "Brasil Bom de Boca", eu considero, é mais "fechado" em relação a dados históricos e antropológicos, os quais eu busquei para dar sustento ao texto e à plástica do Severo. Paralelamente, na Ilha, também escrevi defesas e justificativas das fantasias, da mesma forma que na Viradouro, das alas e dos carros alegóricos, para encaixar no enredo de autoria do Severo. Portanto, escrevi e pesquisei em conjunto com o carnavalesco, mas não sou o autor do enredo.
Embora nas duas escolas eu possua funções similares, não há questão de exclusividade, pois são "competições" diferentes: a Viradouro estava no Grupo de Acesso A, desfilando na Sapucaí no sábado de carnaval. Já a Ilha disputou o Grupo Especial, terceira a entrar na Sapucaí na segunda-feira.
Mais ou menos quantas pessoas trabalham para uma escola do Grupo Especial entrar na avenida (sem contar desfilantes, só a galera dos bastidores)? Durante o ano todo, é importantíssimo frisar, o carnaval gera empregos. Um número exato de pessoas trabalhando é difícil estimar, pois tal número depende de uma série de fatores: do momento no ano e da evolução do preparo do carnaval da escola, se a escola está no Grupo de Acesso A ou no Especial, de quando ela começou a elaborar seu carnaval, etc. Normalmente, há, mais ou menos, 200 pessoas trabalhando para uma escola do Acesso A ao longo do ano, volume que aumenta ou diminui conforme a evolução dos trabalhos e aqueles fatores que citei. No Grupo Especial, é mais difícil estimar, mas chega-se a dobrar o número de trabalhadores nos bastidores de uma escola do Acesso, talvez ainda mais.
Atualmente, você se dedica inteiramente ao carnaval ou também tem outra profissão? Embora carioca, sou professor adjunto do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Mato Grosso e, atualmente, moro em Cuiabá. O carnaval é paixão: trabalho nele porque gosto! Desde março de 2017 estávamos pensando no enredo deste carnaval de 2018. E já começamos a pensar o enredo de 2019. Não para! Mesmo distante, fui ao Rio de Janeiro, em 2017, umas seis ou sete vezes só para tratar de questões do enredo. E recebi o carnavalesco da Viradouro em Cuiabá.
Qual é a parte mais maneira de trabalhar com carnaval? Além da pesquisa, honestamente, é conviver com a comunidade. Embora eu more em Cuiabá por conta do meu trabalho, toda vez que vou aos barracões, à quadra e aos ensaios, eu me emociono, especialmente quando vou à União da Ilha, minha escola do coração. As pessoas ali, dando sangue e suor para montar um espetáculo, é o mais maneiro. A comunidade unida, gente de todas as classes sociais e idades, vivendo juntas o ano todo em prol do carnaval não tem preço. Isso é o mais maneiro e o mais emocionante, sem dúvida.
E qual é a parte mais maneira do seu trabalho no Carnaval? Como acadêmico, a parte mais maneira do meu trabalho específico é, literalmente, pesquisar e escrever. Achar detalhes e os fazer encaixar no enredo, a partir de conversas com o carnavalesco. Por exemplo, no caso da Viradouro, ver como loucura e genialidade podem dar plástica para o carnavalesco; pesquisar quais "gênios" podem se encaixar no enredo pela afinidade com o tema; achar elementos que o carnavalesco optou por colocar no seu trabalho plástico e encaixá-los nos textos... É fantástico fundamentar algo que, a princípio, parece distante do enredo, mas que, graças à pesquisa, encontra-se em um fio condutor ideal. Outro exemplo, como seres míticos, tais quais os Trasgos portugueses, podem ser conectados com o "Brasil Bom de Boca" da Ilha do Governador... É o trabalho de poética e pesquisa que acho mais maneiro, definir os detalhes que poderão garantir décimos preciosos para a escola. Um perfeito livro com justificativas bem feitas, com todos os detalhes do desfile para as mãos dos jurados, é a meta.
O que acontece quando a sirene toca e a escola sai do Setor 1? Isso eu deixo como mistério, convidando todxs para descobrir. Só digo que é uma experiência inacreditável e incrível! Vale a pena.