Na passagem de som de Mahmundi e Tássia Reis
Conversamos com as cantoras durante a preparação para uma noite de poder feminino no Circo Voador
Publicado em 01/2017
Na última quinta-feira de janeiro, o Circo Voador quis refrescar o nosso verão com picolé, piscina de plástico, chuveirões e o poder feminino de Mahmundi, Tássia Reis e Anelis Assumpção, no Festival Picolé. O calor na cidade estava de matar desde cedo, e nós colamos na passagem de som de Mahmundi e Tássia para bater um papo com as meninas, sentadinhos na beira da piscina, em confortáveis cadeiras de praia - só faltou o maiô, que, infelizmente, ninguém levou.
Depois de um ano morando em São Paulo, Marcela (nome de Mahmundi na certidão de nascimento) está voltando para o Rio. “Vou dar uma de Adriano Imperador, que foi para o estrangeiro e voltou para a favela”, brinca a moça de sorriso largo, que canta as maravilhas do Arpoador com o calor de um amor nascido em Marechal Hermes.
“Vou voltar porque São Paulo é exatamente para conhecer pessoas, novos desafios e trabalhar. Eu trabalhei durante um ano, o disco foi super elogiado, consegui entender que o mundo virtual era importante, mas o mundo real é super necessário. Assinei com uma gravadora, a Universal Music, estou feliz. A minha vontade de morar no Rio de novo é porque eu entendi que precisava de um tempo para me preparar como artista. São Paulo me deu uma vontade de trabalhar mais, mas eu acho que o Rio me traz um frescor de trabalhar com uma certa liberdade, que é necessária para a criação”, explica.
Mas é bom ressaltar que o foco no trabalho vai continuar igual, não pense que a mudança é só para “comer hambúrguer e ficar no Instagram”, como ela mesma diz. Se no início da carreira Marcela acreditava que o reconhecimento profissional e as oportunidades chegariam até onde ela estivesse, através do poder de reverberação da internet, hoje ela tem certeza da importância e necessidade do “mundo real” e da fuga da zona de conforto para seu processo de amadurecimento pessoal e profissional.
“A nossa geração sabe que é possível ser independente, até em escolhas pessoais, e isso acaba nos deixando arrogantes - falo por mim mesma, porque eu viva numa bolha e isso foi muito prejudicial para mim. Mas eu sou suburbana, gosto de gente, desse calor, e aí decidi que era importante sair dessa zona de hype, uma zona que eu criei, para me comunicar com outras frentes”, conta. Entre essas novas frentes, vieram amizades com outros jovens talentos da música, como Liniker, Emicida, Céu, Jaloo e a própria Tássia Reis, e a lição de que “não é sobre chegar lá, é sobre continuar uma trajetória que é enorme”.
“Os meus amigos em São Paulo sustentam seus filhos, fazem lançamento de coleção e no outro dia acordam cedo porque a coleção vai chegar em um caminhão e alguém tem que descarregar tudo. Isso foi um puta aprendizado. Você vai se tornando diferente, você escolhe olhar para as coisas e ser diferente”, diz.
Quem vê Marcela zoando nas redes sociais, no palco ou quando encontra um fã pode não imaginar, mas revelamos que, alguns anos atrás, nasceu o apelido Marramundi, por conta de sua marra um tanto elevada. “Eu sou muito marrenta (risos), mas foi isso que me ajudou. Porque eu tinha um sonho e tinha uma marra. A única pessoa que era cão de guarda do meu sonho era eu. Meus pais nunca acreditaram nisso, por uma infância difícil que eles tiveram, e ter um filho artista, para uma família de subúrbio, é tipo fora de cogitação. Meus pais sempre me falavam: ‘não adianta você tocar na Zona Sul se volta de ônibus com sua guitarra nas costas e eu não durmo enquanto você não chega’”, recorda a moça que conheceu a música na igreja, trabalhou por anos como técnica de som do Circo Voador e sabe muito bem o quão complicado é viver em uma cidade dividida como o Rio de Janeiro, onde poucas oportunidades atravessam túneis e chegam nos arredores da linha do trem.
A percepção de Marcela e a quantidade de gente cantando sua música mudaram, mas a vontade de inspirar e conectar pessoas continua intacta. “Quero mostrar para as pessoas que é possível, que qualquer pessoa pode fazer música, sendo quem quer que você seja. E acho que a nossa geração tem o poder de agregar, porque os influenciadores não são aqueles que a televisão mostrou e tinha um comando. Como cada um tem uma televisão diferente, podemos expandir o que temos. São 27 estados num país gigante, temos a oportunidade de fazer com que jovens do Brasil inteiro se tornem comuns. E que tenha um I Hate Flash, ou uma Mahmundi, no Acre, em São Paulo e em Fortaleza”, pontua, antes de seguir para a próxima entrevista marcada e se despedir da gente fazendo um hang loose.
Começamos a conversar com Tássia Reis logo depois que ela acabou sua passagem de som e cedeu o palco para Mahmundi e equipe. A cantora de 27 anos, nascida em Jacareí, no Vale do Paraíba, estava conferindo o comprovante de pagamento da nova geladeira, toooooda de inox (e “bem linda”), que comprou por uma pechincha na internet. O eletrodoméstico vai morar no novo apartamento que ela está alugando, agora para morar sozinha em São Paulo, cidade que a recebeu pela primeira vez em 2010, quando Tássia estava começando a estudar moda.
Não por acaso, foi na mesma época que várias músicas começaram a surgir naturalmente na cabeça da menina que vivia a cultura hip hop desde os 14 anos, quando entrou em um grupo de danças urbanas e começou a fazer rimas de improviso com as amigas. “Todas as vivências, perrengues e descobertas me deram muito material e vontade para escrever”, conta.
Na volta pra Jacareí, decidiu de vez investir na carreira musical. O primeiro single foi “Agora que eu quero ver”, lançado em 2013, que não nasceu como rap, mas um funk soul, inspirado nas referências musicais que Tássia herdou dos pais, apaixonados por bailes black e “toda a música preta mais pop” que rolava nos anos 2000.
Um ensaio fotográfico, uma página no Facebook, uma conta no Youtube e um perfil no Soundcloud depois, o burburinho da Tássia cantora começou a circular no meio do hip hop. “Daí para frente eu fui entendendo a minha sonoridade, que realmente é muito ampla, misturamos muita coisa. É uma característica minha, acho que eu descobri um jeito meu de fazer música e ele tem tudo. O hip hop é o meu lifestyle, é a minha essência, é uma das minhas escolhas políticas. Foi onde eu me formei intelectualmente. Posso fazer qualquer coisa que o hip hop vai estar lá”, afirma.
No mais recente álbum, lançado em setembro de 2016, batizado “Outra esfera”, o hip hop embala as descobertas do longo e diário processo de autoconhecimento pelo qual a cantora passa, de mãos dadas com os estudos e debates sobre feminismo.
“Descobri que vivo uma eterna busca pelo autoconhecimento, que passa por vários estágios. Um deles é a autoestima, não só de me olhar no espelho e me achar bonita, mas emocionalmente também e em todos os âmbitos. Precisamos entender sobre essas relações abusivas que acabamos entrando e a sociedade apoia, é algo normatizado. Precisamos entender como as estruturas influenciam isso, como o racismo e o machismo institucionalizados influenciam isso, e como conseguimos driblar tudo isso, para escapar de alguma maneira e ter experiências melhores”, diz. “É um trabalho longo. Acho que me amar, em primeiro lugar, é importante para eu conseguir fazer outras coisas. É uma autoanálise”, constata.
As constatações desse processo estão em várias músicas do álbum, seja em forma de um grito para o mundo, como em “Ouça-me”, ou em uma conversa íntima, de Tássia com ela mesma, na faixa “Se avexe não”. No dia-a-dia e no palco, as estruturas machistas que nos fazem pensar que trabalhar com mulheres não é legal foram substituídas por mais mulheres por perto, tanto na banda quanto na capa do CD, assinada pela multiartista mineira Domitila de Paulo.
“Hoje em dia a gente percebe como a mulher é excluída e não tem autonomia. Colocá-las para trabalhar com a gente é o mínimo que podemos fazer. Sempre achei que era importante trabalhar com gente que tivesse a minha linguagem e com quem eu tivesse afinidade de alguma maneira. Minha banda é bem dividida, temos o mesmo número de homens e mulheres, e eu sou realmente muito fã de todos”, conta. Que sorte a desse time.