Mulheres que potencializam mulheres
Um papo com Dani Cavalier sobre o biquíni como arte e instrumento de empoderamento feminino
Publicado em 10/2023
Desde que a Dani Cavalier criou o projeto biquíni.pdf a gente já sabia que a ideia ia longe. A Dani é nossa parceira de longa data de tantas festas e shootings pra Aro Swimwear e recentemente participou, junto com outras mulheres incríveis, do painel sobre "Mulheres Que Potencializam Mulheres" no Meca Inhotim. Nossa Bléia Campos fotografou o rolê e a gente não ia perder a oportunidade de falar sobre essa experiência e todas as piras que o projeto envolve. Vem descobrir como a Dani pensa o biquíni como arte compartilhada, pensada pra potencializar mulheres e expandir as possibilidades do ciclo da moda.
IHF: Primeiro a gente queria que fizesse um breve resumo pra quem não te conhece contando sobre você e sobre os projetos que está envolvida atualmente.
Dani: Eu sou a Dani Cavalier, sou artista plástica, arquiteta urbanista e estilista. Acabo de concluir este ano de 2023 um ciclo de 07 anos na moda praia. Pra quem não conhece, eu cofundei a Aro Swimwear lá em 2015, a comandei sozinha até 2021 e fundi na pandemia com a Vênus Atômica. E neste março, saí da empresa vendendo minha parte, e comecei a transformação de carreira que planejava já há 5 anos.
Escolho a palavra transformação intencionalmente pois meu trabalho sempre foi minha pesquisa artística. Mas antes não entendia isso muito bem. Por muito tempo atuando na moda praia, eu achava os planetas moda e arte muito distantes. Pensava “nossa, por que eu estou fazendo moda praia?” e “nossa, porque não consigo ser artista?”. Não via sentido, questionava essas contradições. Me questionava. Tinha sonho de ter meu ateliê, mas todo dia acordava e o que eu fazia? Moda praia.
Acredito que ao longo do tempo a gente vai adquirindo com o nosso trabalho as palavras que narram ele, e eu comecei a adquirir as minhas. Entendi que o meu motivo de entrada na moda foi, ao meu ver, porque a moda é um dos nossos vetores criativos de mais rápido impacto e transformação.
A moda como nossa primeira camada de construção de identidade, gera comportamentos individuais, que geram comportamentos coletivos, que geram subculturas, que geram culturas. Eu acho que esse sempre foi meu ponto de tesão e vontade de fazer moda, de desenhar uma roupa que muda a nossa relação com nós mesmos e com os outros. E eu acho que foi por esse sentido que me vi todo dia querendo acordar pra fazer moda, e especificamente a praia, porque também a praia é um ponto quente de ser carioca e mulher. Se a gente for parar pra pensar, a roupa de praia é uma das únicas categorias de vestimenta que a gente usa pro nosso bel prazer, pro nosso ócio, pro nosso movimento. Quando a gente escolhe acordar e botar um biquíni, a gente tá escolhendo passar um tempo com a gente. Me apaixonei por isso. Porém, estar na praia sendo mulher, é viver sob a maior arena de opressão corporal, de pressão social e também de machismo e misoginia que a gente tem, né? E junto disso temos um histórico do mercado de moda praia desconfortável, racista, gordofóbico, sem uma mínima diversidade. Essa areia quente também me moveu.
Permaneci com essas forças motoras e entendi através do Biquíni.pdf que meu trabalho conseguia se manter com essas razões sem depender de ter uma marca. Com ele pude sublimar o mercado de moda, retirando a necessidade da marca, de calendário do mercado, do produto.
O Biquíni.pdf é um arquivo digital que as pessoas podem imprimir e fazer em casa, cortando cadeia de produção, cortando concessão intelectual. Enquanto um produto que você compra em uma loja, você não pode replicar, não pode repetir... Enquanto um obra de arte não podemos nem ter quanto mais tocar… Com o Biquíni.pdf você pode fazer quantas vezes quiser. A gente está falando de uma propriedade intelectual compartilhada, de arte que fortalece pessoas, de uma autonomia do desejo, que você pode inclusive alterar o desenho. A única coisa que eu peço, que eu não abro mão, é o Biquíni PDF não perder o nome e nem a autoria da minha intenção, porque o trabalho de arte é a minha intenção.
Como foi o convite para participar do painel #CaminheComElas – Mulheres que potencializam mulheres por Johnnie Walker no Meca Inhotim?
Dani: O convite para participar do painel foi tipo aquele meme clichê que a gente vê rodando pelas redes: “ande com mulheres (não só mulheres, mas sempre mulheres) que coloquem seu nome nas mesas de reunião”. Foi bem assim. indicaçnao de uma das mulheres mais admiráveis que eu conheço: Mari Monteiro. O painel da Johnnie Walker queria artistas que trabalhassem com o coletivo, que levantassem outras mulheres e meu nome foi indicado junto com o da Marta Supernova que tem a Sauna Lésbica que foi pra Bienal de São Paulo deste ano e a Bárbara Paz. Aí eles conheceram meu projeto e amaram, tanto pela moda praia que eu já agi, quanto por essa transição de artista com um projeto falando sobre coletivo. O painel foi mediado pela Giovanna Nader e eu, Bárbara Paz e Marta falamos um pouco do nosso processo de caminhada em relação ao nosso crescimento, evolução profissional, nossas transformações de carreira. A Bárbara é atriz, diretora, produtora, artista plástica... Martinha é DJ, artista sonora, ela é articuladora de coletivos, já fez muitas coisas relacionadas a isso, artista plástica também. Então a gente contou um pouco da nossa história pessoal e também dos nossos projetos atuais e ferramentas para lidar, sendo mulher e artista principalmente, com o patriarcado e todos esses movimentos que nos aplicam resistência na caminhada.
Você tem o projeto chamado biquíni.pdf e falou um pouco sobre ele durante o talk. Pode contar sobre como surgiu e o que é o projeto?
Dani: Sim. O Biquíni.pdf é o meu projeto atual. Como falei no início, é a minha transformação de carreira em forma de trabalho. E vou contar aqui sua história.
No início da Aro, lá em 2017, a gente flipou uma imagem de um grupo de mulheres diversas em frente ao morro Dois Irmãos. Até então pra época era diversa e ia do P ao GG. Mas na verdade nem era tão diversa hoje em dia ao meu ver... Com isso a marca viralizou, foi a minha primeira experiência de viral, naquela época a internet não tinha algoritmos tão potentes, não tinha esse boom do viral, até porque a gente só recebia o que a gente seguia. A foto explodiu, teve na época mais de 600 mil impressões, 13 mil likes, sendo que a gente tinha 8 mil seguidores. Achamos até que o instagram estava quebrado.
Nesse momento a marca vendeu todo o estoque do modelo que estava nessa foto. A gente fazia bem pouquinho e estávamos com sold out. Ficamos desesperadas comprando lycra para fazer mais peças, só que em novembro, mesmo você tendo lycra na sua frente comprada, era impossível fazer biquíni porque as costureiras estão todas lotadas, você não consegue fazer reposição assim rápido. E eu fiquei com aquilo na cabeça, no calor que fazia na minha sala, olhando para aqueles rolos de lycra e me questionando: porque aquela lycra não virava biquíni rápido? Porque precisava dessa cadeia que tem que cortar, passar por costura, voltar, vender, postar no Instagram, liquidar... Tipo, que relação é essa que a gente tem com biquíni? Eu, mulher, estava na minha mesa cheia de calor, e a lycra ali na minha frente, mas sem biquíni pra vender, sabe? E eu pensei "Pô, existe lingerie e biquíni cortados a fio, isso não deve ser tão impossível. Mas sempre que eu via esses biquínis a fio, ou calcinha a fio, tinha aquela colinha que junta as partes. Aí eu pensei que tinha que juntar as partes, realmente, não dá para dar contar com um pano só para todas as nossas voltas e volumes. Mas logo me veio a ideia de que a gente tem o nosso clássico lacinho, que é um biquíni inteiro que dá sim a volta. Ele consegue se prender não por cola ou por costura, mas por amarração. Então pensei que tinha um caminho nessa e comecei a cortar, comecei a fazer a parte de baixo.
Parti do lacinho, depois se tornou a hot pant e em seguida veio o maior desafio, o top. Como lidar com uma lycra só, com alças, volume de peito, estrutura de torso, regulagem, cobertura sem costura? Eu passei 4 anos e meio refinando, estudando, testando esse desenho e tenho muito orgulho do top que virou parte do conjunto inicial do Biquíni.pdf . Eu levei quase 5 anos para fechar a modelagem, 6 anos para entender o que aquele biquíni representava, o que ele era enquanto projeto para vir ao mundo. Nesses 6 anos bati bastante cabeça, porque eu o via na minha mão e não conseguia colocar ele dentro da Aro. Parecia que o projeto era uma antimarca. Fui maturando, até que ano passado me deu um clique: esse projeto era arte. Eu também já estava fazendo essa transformação, me entendendo, fazendo terapia, percebendo que eu era artista e que eu iria fazer essa mudança. Eu tive um momento “eureca” de entender que o Biquíni.PDF era meu trabalho de arte, e que eu não conseguia entender antes porque ele não correspondia às definições “clássicas” de arte. Com isso também saquei porque tinha tanta dificuldade em me ver enquanto artista. Porque esse “clássico” também não me definia.
O Biquíni.PDF é um trabalho de arte que é para ser vestido, estar colado na pele invés de uma parede de museu. É para ser horizontalizado, é para as pessoas aprenderem a fazer. O trabalho não seria só uma lycra cortada fisicamente, o trabalho era um desenho, era uma intenção, um conhecimento adquirido e internalizado, que, uma vez aprendido, passaria a ser das pessoas também. Entendi que o Biquíni.pdf era um conjunto de pensamentos, que ele não era para ser simplesmente vendido como desenho. E sim como ensino. E aí o projeto hoje em dia é um manual de instruções com a modelagem, em três espectros de tamanho que vai até o número 58 em proposta. Ele pode ser impresso em qualquer impressora A4 e será lançado em novembro. Esse projeto fala também de acessibilidade econômica, tanto no mercado da arte quanto no mercado da moda, em que você tem um biquíni que aprende a fazer e não está mais presa ter só a opção de gastar entre 100 a 300 reais, ou até mais em um biquíni. Você, por 8 reais, aprende e consegue replicar. Abrindo a precificação de um produto de moda, a gente está falando aí de pagar marketing, diesel, estoque, Ads... Tanta coisa. O trabalho propõe uma mudança de relação entre criação e platéia. Saímos da passividade de ser consumidores, e nos transformamos em coautores ativos do projeto.
Como que a temática “Mulheres que potencializam mulheres” se relaciona com o projeto biquíni.pdf e com a sua vida?
Dani: Eu recebi o convite da temática “Mulheres que potencializam mulheres” e pensei de cara no Biquíni.pdf. Por ele ser uma ferramenta de autonomia para nós mulheres, e quando digo isso não é um lugar de anarquismo "acabou a moda, o mercado de moda..." Mas sim como uma opção posta na mesa. Neste mundo que a gente está tão fadada a ficar dependente a serviços, a concessões de todos os jeitos, por que não uma ferramenta de autonomia? Criar uma alternativa? Por que a gente não pode ter um biquíni que é uma propriedade intelectual aberta, que é nossa? Cada mulher que aprende o Biquíni.pdf vira uma dona dele também. Acho isso tão bonito de existir no mundo... Já me preenchia e fiquei muito feliz de estar nesse painel porque é muito importante para mim, dentro do meu trabalho, esse lugar de promover ferramentas e articulações que nos potencializam. No dia da palestra me bateu em flashback e fiquei feliz em lembrar que com a Aro Swimwear também era assim, era um exercício da moda, mas era a favor de uma expressão coletiva, de também através do biquíni promover uma ferramenta de autoexpressão, confiança, de resgate da nossa sensualidade para nós mesmas. Antes de vestir Aro as pessoas vestiam a si próprias.
Na minha pesquisa de ateliê eu estou estudando muito o artesanato têxtil, que são os bordados, que são as tramas, todas as técnicas de tecelagem, de empalhamento brasileiro. Minha pesquisa é fundada em potencializar o valor tanto desse trabalho feminino quanto costurar uma conexão entre o artesanato e história da arte contemporânea. Se você pensar no tempo de uma avó costurando uma toalha no nome da sua neta, uma toalha de uma mãe borda para um filho, uma parente que costura um enxoval para um bebê que irá nascer... E se calculássemos o valor dessas coisas? Eu garanto que ele vai ser muito mais valioso para essas pessoas do que um quadro que está em museu.
Como você acha que mais mulheres podem se conectar com o desejo e com a atitude prática de potencializar mulheres?
Dani: Se conhecendo, se entendendo. Acho que quando a gente se entende e também busca de onde a gente veio - e quando eu digo isso, não são só as alegrias, são as dores, é a raiva… - a gente começa a ver que a gente está muito conectada do que sabíamos e que essa conexão é tão forte quanto a nossa conexão com o nosso eu. Penso que a busca interna encontra a articulação feminina coletiva. As redes femininas já estão aí há muito tempo, mas na maioria das vezes dedicadas ao quarto e a cozinha na história da nossa sociedade, mas a gente está seguindo com as construções que se dão para fora de casa, para a rua, para os espaços públicos, dentro de instituições... Isso é um caminho sem volta. É um caminho sem volta, mas que a gente tem que cuidar, porque é um caminho frágil. Porque a gente pode ser sedada, ser negada de novo. E não tem como uma mulher se entender, buscar o conhecimento e não cruzar com outras mulheres. O caminho não é só.
Tem algo mais que gostaria de falar pra finalizar?
Dani: Tem sim. Quero falar sobre a Bléia. Nessa viagem do Meca eu fui acompanhada por ela, que é uma mulher que eu já era fã do trabalho, acompanhava desde sempre toda a produção dela e conheci através do I Hate Flash. Foi incrível ver essa mulher-cometa trabalhar, ao mesmo tempo que tem uma força absoluta consegue melhorar qualquer ambiente com seu humor e uma leveza. Pessoa bonita de ver existindo. Aprendi um tanto com ela. Além claro de ser absurda na fotografia e no vídeo. Isso eu queria mencionar com certeza. E também aproveito para falar sobre os próximos passos do Biquíni.PDF. Aproveito para contar que eu ainda estou realizando as facções então pode ficar de olho nas turmas (a próxima já vai ser agora em novembro!) e em breve vou ter uma exposição do trabalho em meu ateliê, lançamento digital do manual, que leva o nome PDF e outras novidades. Tudo isso para este verão.
Um dos meus maiores sonhos e que eu confio é tornar o Biquíni.pdf um patrimônio imaterial carioca assim como as nossas praias. Se a gente precisa de roupa para estar lá, nada melhor do que um patrimônio público em forma de biquíni.
fotos: Bléia Campos, Aline Reis e Vivi Giaquinta