Metá Metá e Rakta 'jogam feitiço' no público do Circo Voador
Após viajar o mundo, bandas lideradas por mulheres poderosas se unem para noite transcendental
Publicado em 08/2017
Na última sexta-feira (18), o palco do Circo Voador recebeu a fúria paulistana de Metá Metá e Rakta. Nem o tempo chuvoso e frio, raro no Rio de Janeiro, fez os shows serem menos poderosos e quentes. Duas bandas vindas da Selva de Pedras que, a princípio, parecem bem diferentes, mas têm muitas coisas em comum. As duas bandas transpassam rótulos e compõem suas próprias identidades somando inúmeras influências.
Foi a primeira vez da Rakta no palco do Circo Voador. Formada por três bruxas, ops, garotas, Paula, Carla e Natha (que não pôde tocar e foi substituída por Douglas, do Deaf Kids), a banda tem um poder brutal de hipnotizar a plateia com sua performance no palco. Sobre o que o Rakta transmite, Paula Rebelato diz: “é como se eu estivesse mesmo jogando um feitiço no público.”. E com certeza o feitiço foi jogado.
A plateia, tímida no começo, foi sendo envolvida pela atmosfera densa que o Rakta cria assim que começa a tocar. Os fãs da banda se aglomeraram na primeira fileira celebrando essa cerimônia, ou meramente show como alguns chamam. Os que ainda não conheciam a banda, foram se aproximando aos enfeitiçados até se unirem ao ritual. Bem, apenas quem esteve presente no show conseguiu entender a aura criada a partir da presença de palco, visual e sonoridade que Rakta proporcionou.
Metá Metá fez uma apresentação extremamente poderosa. Já não são novatos no Circo Voador e um grande público foi prestigiá-los. A banda, que vai do punk paulista ao afrobeat, passando pelo jazz, agitou o público já na primeiras músicas. Como os portugueses afirmaram na recente passagem do grupo por lá, “Metá Metá é um segredo muito bem escondido”, mas que, graças à Exú, nós estamos descobrindo e temos o privilégio de assistir aos shows.
O EP MM3 foi lançado há menos de um mês, e o público já cantava as músicas com intimidade em uníssono. Em “Raínha das Cabeças”, até uma roda de bate-cabeça foi formada, tamanha a energia que a banda transmite. E ao tocar algumas canções mais calmas, compostas para o espetáculo “Gira”, do Grupo Corpo, o público dançou com muita intensidade também. Juçara Marçal é uma das vozes mais poderosas da música brasileira e esse poder todo é conduzido de maneira muito elegante do começo até o final do espetáculo
Antes das bandas subirem ao palco, batemos um papo com cada uma sobre suas respectivas trajetórias, viagens, influências e o atual panorama nacional e internacional. Aproveite.
Lembro quando, há mais ou menos seis anos, vocês começaram a ensaiar a ideia de ter uma banda. Desde então, já foram para a Europa e Estados Unidos algumas vezes, América Latina e até Japão. O que mudou desde o começo até agora?
Carla Boregas: Para mim, mudou a experiência que fomos adquirindo, mas o que não mudou foi a vontade de fazer. Eu tenho a mesma vontade desde o começo da banda e foi o que me impulsionou a fazer as coisas desde o começo até hoje.
Paula Rebellato: Eu relutei muito no começo. Em vários momentos eu queria sair da banda, mas uma hora ficou orgânico e foi. Houve muitas dúvidas, alinhamentos e desalinhamentos, mas a Carla sempre me puxou e uma hora foi.
O som do Rakta é totalmente transcendental. Às vezes muito agressivo, às vezes mais calmo, às vezes até meditativo, mas muito transcendental, que remete a uma atmosfera muito diferente. Seja tocando em um lugar muito pequeno ou num show na rua, é um transe total. Quais as suas influências? O que ouvem, assistem, leem?
Paula Rebellato: Acho que isso também sempre foi orgânico. Foi algo que nasceu de dentro da gente. É algo que vai acontecendo e, com o tempo, descobrimos mais e mais. Até de forma artística também. Mas acho que esse ponto de ser visceral e transcendental, cada uma com sua própria essência trouxe isso. Mais do que algo externo, é algo que vem de dentro. Porque pensando em estilo de som, nunca pensamos em fazer um estilo de som específico, a gente só foi fazendo e saía o que tinha que sair. Nós nos colocamos como um canal.
Carla Boregas: Para mim, a arte tem muito a ver com a criação de uma ilha temporária, algum outro lugar que você pode migrar durante um tempo. Então, acho que isso talvez seja algo transcendental na nossa música. Acho que o mundo que nos envolve é tão cheio de tantas coisas que às vezes nós queremos criar uma zona autônoma temporária onde possamos imaginar o mundo de outra forma, outras situações, outras vivências, transcender o que vivemos, o que não gostamos, e exaltar o que gostamos. Eu gosto bastante dessa relação da arte como criação imaginária.
Depois de todos esses rolês que vocês fizeram pelo planeta afora, conhecendo bastante gente, qual foi o lugar mais doido em que estiveram e nunca imaginaram estar?
Paula Rakta: Tocar em uma cozinha cheia de punks, pizza, com cem pessoas, nos EUA. Ou Polônia, um frio do caralho, menos nove graus. Ou o Japão. Todo dia eu acordava no Japão e pensava: “Onde estou? O que estou fazendo aqui?”. Foi insano. Dá vontade de rir de tão absurdo que foi. Ver os rolês de lá, ver as pessoas de lá, ver como as pessoas reagem. É como se fôssemos alienígenas. E sempre tem uma troca - e a gente busca isso. É uma experiência que te força a romper barreiras.
Há poucos anos, vocês tinham artistas como referências que as impulsionaram para serem o que são hoje. E agora vocês são referência para uma outra galera. Como veem isso? Rola uma responsabilidade?
Carla Boregas: Acho que tem muito. Não só como banda ou como artista, mas como pessoa mesmo. Vejo a influência que tenho nas pessoas à minha volta e como elas me influenciam também. Isso para mim é um microcosmo que afeta quem está do meu lado. Tem muita gente que sempre me diz que inspirei, ajudei e compartilhei algo, assim como sinto que muita gente faz isso comigo, como um ciclo que vai girando. Eu sou muito grata pelas pessoas que tenho à minha volta, nos dois aspectos, tanto sobre o quanto eu posso receber e também sobre o que eu posso dar.
Paula Rebellato: Acho que esse é um dos poderes da música. Falando especificamente sobre o lance de tocar, é como se você jogasse um feitiço em um monte de gente ao mesmo tempo. Então, nesse ponto, difere de uma relação pessoal para estar jorrando muitas coisas na hora que você está tocando. É como um raio. Isso é um tipo de bruxaria. E há quem vai se conectar. Eu dou sempre tudo de mim quando estou tocando.
Vocês já deram muitos rolês, viajaram muito, sempre lançam materiais bem feitos, com artes fodas, carregando na mala e tal. É muito trampo fazer isso de maneira independente? Essa é a maneira que dá certo?
Paula Rebellato: É muito trampo! Mas também dá certo.
Carla Boregas: Se você se dedica, põe carinho e atenção, cuida de tudo, dá certo, como a vida.
Paula Rebellato: Tudo o que você quiser que flua, tem que colocar a mão na massa.
Carla Boregas: Tem que ter prazer de fazer. Eu tenho muito prazer de fazer as artes, de pensar como vai ficar cada cor, cortar papel. Eu gosto de pensar em todas as partes, tenho prazer em fazer isso. Pensar como é que vai abrir, como vai fechar. Acho que quanto mais você está presente nos processos que vive, mais as coisas funcionam. Em geral, na vida.
Paula Rebellato: É o movimento. É até uma das características do nome Rakta.
Carla Boregas: Uma vez um amigo me falou: “There is a will and there is a way” (“Há um desejo e há um caminho”, em tradução livre). Foi bem no começo do Rakta e isso me impulsionou muito. Se você tem uma vontade e se coloca ali, as coisas fluem. Se bem que, às vezes, não - e estou aprendendo isso também.
Paula Rebellato: O que tem que ser vai ser. Não é sobre destino premeditado, mas a vida sabe.
A Rakta é uma das bandas mais singulares do undergound, tem uma baita relevância, toca muita gente e entra em espaços difíceis de difícil acesso. Sentem que existem lugares em que é difícil chegar porque vocês são mulheres?
Carla Boregas: Acho que não. No momento atual é o contrário, porque todo mundo está querendo explorar essa ideia da mulher que produz e tal. Às vezes temos até que tomar cuidado, porque as pessoas estão querendo se aproveitar do fato de sermos mulheres. Tenho sentido isso.
Paula Rebellato: Tem todo um mercado. E depende da cena que você circula, mas há uma discussão grande dentro da cena eletrônica de festivais grandes, que ainda não têm mulheres no line-up. Acho que isso varia de uma cena para a outra, mas sempre buscamos e conseguimos nos encaixar nos meios. Hoje mesmo, tocando com o Metá Metá, alguém de fora pode achar que uma coisa nada tem a ver com a outra, mas tem muito. E até chegar nesse ponto de estar nos lugares que você quiser, acho que isso é demais.
Para terminar, quais os lugares que vocês ainda não exploraram e querem explorar?
Carla Boregas: África!
Paula Rebellato: Grécia, Turquia, Marrocos, África, Austrália. Porra, o mundo inteiro! Estivemos no Nordeste pela primeira vez ano passado, mas queremos ir para o Norte também. E eu queria fazer mais América Latina: Chile, Bolívia, Paraguai.
Carla Boregas: Quando acabamos de fazer o mapa dos países, partimos para as cidades até fazer todas. Aí tocamos até morrer.
Há algumas semanas, vocês fizeram o quinto tour pela Europa, fora as vezes que vocês foram para lá em países específicos. Como está sendo a recepção do som de vocês lá fora?
Juçara Marçal: Cada vez que a gente vai, (a recepção) vai crescendo, vão surgindo festivais mais legais. Este ano, tivemos a sensação de que os festivais que fomos eram bem interessantes e já tinha uma galera ligada. O nosso som tem disso: às vezes os festivais são cada um de um jeito, world music, jazz, e nós não temos muito a noção de quem está curtindo. Tivemos a sensação, dessa vez, que tem um público que está curtindo a gente, fora o brasileiro que já conhece e reconhece o som. E fomos pela segunda vez para Portugal, que tem uma percepção diferente porque também inclui a letra, as pessoas reconhecem.
Kiko Dinucci: Sentimos que engatou mais em Portugal agora. Fomos ano passado em um show que foi muito mal divulgado, nem os fãs de Metá Metá ficaram sabendo dele. Um amigo nosso que tem uma loja de discos, o Edgar, disse que ficou sabendo do show depois que aconteceu. E não lembro se foi ele ou algum jornalista que falou que o Metá Metá é um segredo bem guardado em Portugal, mas que agora foi descoberto. Tocamos na rua e foi muito incrível. E lá em Portugal rola uma identificação. É uma Europa que não é tão estranha para nós, talvez por termos herdado muitos costumes, arquitetura, comidas, língua. Então, para nós é gostoso desfrutar de Portugal.
O Metá Metá está completando dez anos de estrada e já foram três álbuns lançados, EPs, muitos shows, participações com gente que vocês admiravam, como Mercenárias e Os Mulheres Negras,por exemplo. Dez anos atrás, quando decidiram gravar o som que faziam, imaginavam chegar onde estão e passar por tudo isso que passaram?
Kiko Dinucci: Nunca passa nada pela nossa cabeça (risos). Tipo: “um dia vou conhecer o Paul McCartney”. É capaz de um dia conhecermos. Quem sabe, né? A gente já tocou com o Tony Allen, Jards Macalé, e são pessoas que a gente sempre curtiu e achava o trampo foda. De repente, você está do lado de uns caras que você sempre admirou e vê que o cara é gente igual a você: vai ao banheiro, arrota. Então é muito louco. A música te leva para lugares que você não imagina. É bizarro. Mas nada é traçado como se nossa meta fosse dividir com o Roberto Carlos o especial de fim de ano.
Thiago França: A gente tocando “Obá Iná” com Roberto Carlos: “Abram caminhos para o Rei” (risos)
Juçara Marçal: Desculpa, Xangô.
Na semana passada, fui ao espetáculo “Gira”, do Grupo Corpo, e fiquei muito emocionado. Como foi participar desse processo de criação, desde terem sido convidados, composto e assistido a peça alí, na frente do palco?
Juçara Marçal: Logo que fomos convidados, não acreditamos. Eu imaginei que o processo seria mais de acompanhar os ensaios, mas com o pé atrás, achando que não ia dar certo. Mas o processo deles era super factível, porque você entrega a trilha pronta. Claro que houve todo um processo para essa trilha finalmente ficar pronta, várias etapas, mas não tinha essa questão de ter que ir para Belo Horizonte. Você entrega a trilha e, a partir daí, eles constroem.
E quando vocês viram o espetáculo pronto, qual foi a sensação?
Kiko Dinucci: Não conseguíamos nem respirar, nem falar direito com as pessoas. Ficamos meio chocados. Conhecíamos as músicas de trás para frente, mas quando você vê os outros elementos juntos, a luz, a dança, os desenhos, é muito chocante. Achamos até que acabou muito rápido. Começávamos a ficar tristes no fim, mas é porque a coisa estava rodando com dinâmica, os elementos estavam muito integrados. Ficamos de cara. Até hoje assistimos e vamos descobrindo coisas novas, assistindo de outros cantos do teatro, e, então, vira outra coisa. Acho que é uma peça que vai mudando. Se virmos daqui um ano, vamos ter outra percepção, talvez eles tenham mudado bastante também.
Vocês sempre estão em movimento. Muitos shows, sempre gravando , produzindo e tocando com outros artistas, se apresentando em saraus, em debates, organizando o Carnaval. É muita coisa! Como funciona vocês serem artistas independentes fazendo tudo isso? Funciona?
Juçara Marçal: É o maior perrengue!
Thiago França: Funciona sim, cara. Na verdade, é por isso que funciona. Com o tanto de coisas que ouvimos, o tanto de coisas que gostamos, o tanto de coisas que somos a fim de fazer, se levássemos o Metá Metá como uma banda tipo o Skank, o Barão Vermelho, iríamos cansar, porque ficaríamos bebendo só de nós mesmos, nos retro-alimentando, e a busca que nós três temos como artistas é estar fazendo coisas.
Ontem eu estava aqui no Rio ontem fazendo um show instrumental e a Juçara veio fazer o show do Sambas do Absurdo. Então tudo isso serve tanto como um respiro quanto para renovar energias também e trazer coisas novas, dar movimento. Se não ia ficar um negócio estático. A gente toca junto, temos um entendimento, eu e o Kiko nos olhamos durante o show e já sabemos qual música vamos tocar. Na época em que eu tinha o Marginals, que era um trio de improvisação, comecei a usar pedal de distorção e isso veio para o Metá Metá, esse lance todo da improvisação, dos ruídos. Em um outro projeto, o Kiko voltou a usar guitarra e, então, a guitarra apareceu no Metá Metá, e a Juçara começou a usar distorção na voz também. Então tudo serve de laboratório.
O Metá Metá não é nosso carro chefe. Claro que tem muito mais shows que com os outros projetos, mas nada é tão projetado. Eu agora participei do show do Siba, o Kiko e Juçara fazem muitas participações e estamos muito ligados no que está acontecendo, e isso vai virando um caldeirão de informações, de influências. Nós somos meio nerds também, sabe? Não sei se eu que sou virginiano demais para pontuar isso, mas eu gosto de ter a Charanga onde eu trabalho aquilo daquele jeito, sem pedal, tocando acústico, na rua, fazendo tudo muito tradicional, com sopro e percussão, e é um espaço onde eu posso experimentar. A Charanga nasceu no meio de um turbilhão de experimentações e foi quando eu achei que eu precisava tocar samba, um samba velho, um samba para a galera cantar junto, eu preciso disso também.
O que chama a minha atenção, e de muita gente, é essa junção de muitos elementos na sonoridade do Metá Metá. Desde samba, música ancestral africana, som de terreiro, muita coisa punk. Tenho muitos amigos punks e metaleiros que amam Metá Metá e amigos do samba que também os amam. E essas influências somadas criam uma atmosfera de ritual durante o show. Quando vocês estão tocando, vocês sentem que estão em um ritual?
Kiko Dinucci: É o nosso ritual. Não é nada em relação a orixás, reprodução do Candomblé, nada disso. É um culto à música mesmo.
Juçara Marçal: É o jeito que a gente se coloca para cantar, para tocar. Nos colocamos com uma tal concentração que isso vira um ritual.
Kiko Dinucci: É engraçado que isso nem é algo do rock. Tem muito mais a ver com John Coltrane, música indiana, aquela coisa de ficar de olho fechado dançando, em transe. Acho que soma muita coisa.
Thiago França: É louco ver como os estilos se conectam. Se você quiser, pode enxergar o Ornette Coleman sob uma ótica punk também, tocando de um jeito rasgado e desafinado mesmo, largado. Você tem essa coisa rasgada no Coltrane.
Juçara Marçal: Se você vai em uma casa de terreiro, é punk pra caralho! É porrada!
Thiago França: Eu já vi, nas festas no terreiro do meu avô-de-santo, que até deu entrevista para o Kiko em seu documentário sobre Exu, o Pai Walmir se esgoelando, gritando enquanto se batia tambores e ele saindo de lá sem voz.
Kiko Dinucci: Você vê os caras tocando maracatu rural a noite toda, aquilo é punk
Thiago França: Quando acaba a Charanga, as palhetas estão ensanguentadas. Há uma força, essa intenção vem de muitos lugares.
Inegavelmente, estamos vivendo uma crise política e econômica que é mundial, mas acima de tudo, estamos vivendo uma crise moral, especialmente no Brasil, onde terreiros são incendiados, policiais são soltos após chacinas de jovens, mulheres sendo sistematicamente assassinadas, etc. Diante deste cenário catastrófico, há uma tomada do discurso em favor às minorias por grandes empresas, talvez como uma política de mercado. Como vocês veem isso
Kiko Dinucci: Acho que a coisa é extrapolar o discurso. Se as corporações estão se apropriando do discurso, nosso discurso é nossa ação. Não adianta eu falar de feminismo, tem que trabalhar com mulheres. Se questionar: por que eu chamei um cara e não uma mulher para fazer certa coisa? Se eu falar de racismo no Facebook, todo mundo é contra o racismo, mesmo hoje os fascistas saindo do armário, mas mesmo assim conhecemos muita gente que diz que não é racista, mas quantos pretos estão no rolê? Na maioria das vezes só estão na cozinha trabalhando. É questão da gente refletir mesmo: só tenho amigos brancos e só meu porteiro é negro. Alguma coisa está errada. Isso também é racismo.
Thiago França: Isso é uma preocupação minha. O lance da Charanga do França ser um bloco aberto e qualquer pessoa poder tocar tem a ver com isso, pois, se eu for tomar o meio que eu transito para montar um bloco, 80% do bloco vai ser de homens brancos héteros, mas se eu falar que qualquer pessoa pode vir, talvez uma mina que esteja em casa sinta interesse em colar, ou um cara ou mina que são negros, que moram longe possam ir também. As pessoas falam que a gente tem que fazer um isolamento com seguranças. Eu penso: vamos contratar seguranças e como vamos lidar com esse dado estético? Um monte de gente branca brincando o carnaval e um monte de rapazes negros segurando uma corda? Agora a Charanga vai abrir uma outra turma. Conseguimos um PROAC (Programa de Ação Cultural, uma política do Governo do Estado de São Paulo) e temos essa preocupação, há uma cota para negros pois, irremediavelmente, vai ser levada em conta a questão da renda, há uma quantidade grande de pessoas negras que não tem condições de pagar. Também tem uma cota para mulheres, porque elas crescem ouvindo que não podem tocar instrumentos de sopro porque marcam a boca, fica feio. É muito louco isso. Eu não posso falar que o machismo não me afeta se todo dia minha esposa chega puta em casa porque ela foi destratada no trampo dela. Mas acho que temos que confabular e agir, partir para cima. Como o Kiko disse, quantas vezes vamos fazer um show, já existe uma cartilha de músicos e não se questiona: por que não uma mulher? Por que não uma pessoa negra? É algo que temos que estar ligados o tempo todo
Thiago França: Acho que esse é o lado ruim das redes sociais: a gente fica muito atônito, tipo Laranja Mecânica. E às vezes você fica ali olhando a timeline o dia todo e ao final do dia você não fez nada para mudar.
Quais os lugares que vocês ainda não exploraram e gostariam de tocar?
Kiko Dinucci: Acho que falta tocar em muitos lugares do Brasil, principalmente. América do Sul, Nordeste, Norte, periferia de São Paulo. Estamos tentando fazer mais coisas pela periferia, algo que tenha a ver com essa afirmação de mudar as coisas. Acho que os artistas da nossa fauna vão ter que ir para a periferia, não vai ter jeito. Essa eleição para prefeito desastrosa foi resultado disso, de uma classe artística que não vai para a periferia, não dialoga. As pessoas com boas ideias estão indo para a periferia para informar e assimilar o que está acontecendo lá. A periferia é um universo amplo, complexo, não é tudo igual. Não faz sentido conhecermos a Dinamarca e não conhecermos o Cachoeirinha. Morremos de vontade de ir para a África. Fomos para o Marrocos, foi foda, mas seria foda ir para o Ver-o-Peso, em Belém. Ao invés de ver o mercado do Marrocos, estar no Ver-o-Peso, o Brasilzão. Para mim, não valeria ter uma carreira só internacional, temos que rodar São Paulo, o Norte e Nordeste, mas é difícil de chegar, é caro. Estamos tentando fazer. Estamos dando jeito de tocar na roubada, em shows que ao menos se paguem, fazer alguma parceria. Imagina fazer um show no interior do Maranhão? Não deve ser fácil, quase uma guerra, como pegar o seu instrumento ir para a guerra.