Matilda, fat suit e bolo de chocolate
Você realmente acha que é coincidência?
Publicado em 08/2022
Antes de tudo, tenho três recados. O primeiro é que o texto que você está lendo contém spoilers sobre o filme Matilda (1996). O segundo é que se em 2022 você ainda considera spoiler algo sobre Matilda, pare o que você está fazendo, assista o filme e depois volte aqui. Você vai me agradecer depois. E o terceiro, você já sabe que em dezembro vai estrear o remake, né?!
É impossível falar sobre esse filme e não passar pela minha cabeça a empolgação que eu sentia ao ver o anúncio de que ele passaria pela milésima vez na Sessão da Tarde, ou até mesmo lembrar das minhas infinitas tentativas de tentar mexer uma latinha de refrigerante usando apenas o poder da mente. O que mais me encanta na Matilda é como ela consegue ser tão positiva mesmo vivendo em um caos e com uma relação extremamente tóxica e abusiva com a sua família. Além disso, a capacidade que ela tinha de transformar qualquer lugar que estivesse em um porto seguro com o poder da sua imaginação. Quem não queria ter isso na sua infância, né?
Nem sei como explicar o que eu senti quando soube que estavam produzindo um remake do meu filme favorito de infância. Foi um misto de "eu preciso assistir isso" com um pedido muito forte de "por favor, não estraguem essa história".
Há algumas semanas atrás saiu o trailer do remake e junto dele, uma polêmica. A atriz Emma Thompson, que irá interpretar a diretora Trunchbull, estava fazendo o uso de fat suit, que nada mais é do que uma ~ fantasia ~ combinação de técnicas, máscaras e enchimentos para que os personagens pareçam maiores do que são. Afinal, por que não contratar intérpretes gordes, né? *contém ironia*
Uma das cenas icônicas do filme original é quando Bruce, colega de classe de Matilda, foi castigado pela diretora por ter comido seu pedaço de bolo. Ele teve que comer um bolo enorme de chocolate em um auditório em frente a todos os alunos do colégio. Como uma criança gorda, só o fato de ver o Bruce comendo em público já me apavorava, afinal tudo o que uma pessoa gorda come acaba sendo questionável. Se estamos comendo uma salada, estamos de dieta. Se estamos comendo um hambúrguer, estamos despreocupados com a saúde, e por aí vai. Mas voltando ao filme, algo que me incomodava ainda mais e que só fui entender poucos anos atrás, é: Por que o aluno que foi castigado por comer o bolo é o único personagem gordo da série? E não, não é uma coincidência. Essa é apenas mais uma das cenas na indústria do cinema onde os personagens gordos estão relacionados ao exagero, à comilança, baixo auto estima, entre outros. E se ver repetidamente "representado" dessa forma faz com que você comece a se enxergar desse jeito, afinal, se toda vez que eu via meu corpo na televisão ele carregava essas características, deveria ter algo dessa "essência" em mim também, não? Pelo menos era o que eu e todas as pessoas que estavam ao meu redor pensávamos. (Se você quiser ler mais sobre o corpo gordo e as mídias audiovisuais, clica aqui para ler meu texto anterior.
Estamos falando dos anos 90. Época de Friends, banheira do Gugu e tudo passava batido. Mas em 2022… é aceitável? Tenho certeza que você já assistiu o filme "O Professor Aloprado" onde o Eddie Murphy usa máscaras de látex e roupas com enchimento para interpretar um professor desajeitado e ridicularizado pelos alunos, "Friends" onde a Courteney Cox usa enchimentos para interpretar a época onde a Mônica era gorda e é cercada de estereótipos como gulosa, desleixada e desastrada, "Click" onde o Adam Sandler previa seu futuro fracassado e se via como uma pessoa gorda, ou até mesmo a Vera Holtz interpretando a Dona Redonda em "Saramandaia", que no final acabou "explodindo por ser tão gorda" após ter comido exageradamente.
Além dessa prática excluir a contratação de intérpretes gordes, você já reparou que todas as vezes que ela foi utilizada, foi com o objetivo de ridicularizar e, mais uma vez, colocar o corpo gordo nas caixinhas de estereótipos que são reforçadas diariamente pela mídia? Isso quando não fazem o uso do fat suit para que no desenrolar da história a personagem emagreça e esse seja seu final feliz.
Não é novidade que pessoas dentro do padrão são privilegiadas e têm maiores oportunidades além de serem mais aceitas e melhor remuneradas, mas quando se trata de intérpretes, estamos tratando de pessoas. E tratando de pessoas, estamos falando sobre diversidade. Até quando o corpo padrão vai substituir corpos reais? Até quando vamos ter pessoas brancas interpretando personagens pretos, asiáticos ou indígenas? Até quando vamos ter pessoas magras interpretando pessoas gordas e fora do padrão, excluindo esses nichos do mercado? As oportunidades já são poucas. Quando existem, novamente o corpo padrão que vai ocupar esse espaço?
Como no caso da Emma Thompson, alguns internautas responderam a matéria dizendo que a diretora não é gorda, mas sim "grande" no sentido de um porte atlético, por ser uma esportista especializada em arremesso de peso e lançamento de martelo e dardo. O mercado é tão escasso assim que não existem atrizes desse porte? Ou é mais fácil optar por uma padrão e "fazer uns enchimentos"? Sendo esse caso fat suit ou não, a polêmica abriu espaço para debatermos sobre esse assunto que é tão importante e tão pouco divulgado e problematizado, e que causa uma falsa impressão de representatividade, sendo que não passa de um ato que por trás fala sobre preconceito, gordofobia e exclusão.
Por atores diversos interpretando personagens diversos e, antes disso, por atores diversos interpretando.
Btw, fora Bolsonaro mais uma vez porque nunca é demais.