A nave do afeto
Circo Voador volta em noite mágica com Marcelo D2
Publicado em 10/2021
“O Circo está de volta para vibrar alegria para a cidade”, assim anunciou Maria Juçá, produtora, jornalista e diretora da casa de shows mais querida do Rio de Janeiro. Depois de longo hiato, em função da tragédia (ainda não acabada) da Covid-19, as lonas do Circo Voador voltaram a se erguer na última quinta-feira (21/10) e fomos conferir o que rolou nesta noite tão aguardada, que agitou as redes sociais tão logo foi anunciada. Respeitável público, o Circo voltou!
Os portões da casa foram abertos às 19h30 e entre as expressões de emoção, alegria, alívio, surpresa e tantas outras impossíveis de serem descritas, uma palavra muito nossa era repetida entre o público: saudade. No dia anterior, conversamos com alguns dos grandes responsáveis por manter a lona do Circo erguida há décadas e eles falaram um pouco sobre esse sentimento.
“O que mais senti falta foi do calor das pessoas. O Circo é movido pelo afeto, então senti muita saudade desse convívio social, do abraço, do brilho nos olhos do nosso público. Estava carente dessa zona. Estou doida para ver os olhos esbugalhados, saindo de órbita, e as pessoas gritando: Foda!! O Circo Voador abriu: fodaaaa!”, comentou Juçá às gargalhadas, renovada com o “espírito de 17 aninhos” que lhe tomou nas semanas anteriores à reabertura.
Ao todo, foram longos dezenove meses sem atividades presenciais, embora o Circo tenha permanecido ativo, com o lançamento de projetos especiais para as redes sociais, como a disponibilização de shows históricos realizados no palco da Lapa – que, aliás, ainda estão no ar e são uma dica imperdível. “Manter esse elo com nosso universo e nosso público foi um cordão umbilical que nos alimentou durante esse tempo. Foi fundamental para todos nós”, explicou Juçá.
No retorno, a proposta da casa foi estabelecer uma espécie de “pacto” com seu público: os novos protocolos exigem a apresentação do certificado de vacinação e é proibida a permanência no espaço sob a lona sem máscara. Quem quiser beber, comer, fumar, beijar ou o que quer que seja, deve fazer no espaço aberto. “Todo mundo tem que se cuidar, precisamos nos preservar ao máximo para que esse novo tempo que se anuncia seja uma realidade. Esse é o pacto que queremos estabelecer com nosso público, um pacto de cuidado”, explicou Lencinho, DJ e mestre de cerimônias da casa.
Os tambores de D2
A noite tão esperada foi aberta justamente com a celebração desse pacto, com a equipe do Circo reunida em cima do palco e um discurso inflamado de Juçá, que fez referência às mais de 600 mil pessoas que morreram por Covid-19 no Brasil, protestou pela inércia do governo na compra de vacinas e puxou o coro que se repetiu outras vezes ao longo da noite: Fora, Bolsonaro! “Somos todos sobreviventes. Hoje vamos celebrar a vida. Estamos vivos e vamos continuar fazendo bagunça”, conclamou.
E então tocaram os tambores de Marcelo D2. Talvez não houvesse melhor forma de o Circo reabrir as portas do que com o show do rapper, dono de uma série de apresentações memoráveis e de longa história com o espaço, como ele mesmo lembrou.
“Hoje eu vou chorar pra caralho. Me sinto o cara mais honrado do mundo por estar nesse palco hoje, desde moleque eu batia ali na porta e gritava: ‘Juçá, deixa eu entrar’”, brincou. “Tem uma porrada de amigos e irmãos aqui, queria dar um abraço em cada um de vocês. A nave tá de volta, porra!”
Não bastasse a expectativa pela reabertura do palco icônico e pelo primeiro show presencial desde o início da pandemia, D2 também apresentou pela primeira vez ao público as músicas de seu mais recente e aclamado disco “Assim Tocam os Meus Tambores”, indicado ao Grammy Latino e sucesso de crítica e público, com mais de 12 milhões de streams nas plataformas digitais.
Ao lado da produtora executiva do álbum e sua companheira, Luiza Machado, e do seu filho, Stephan Peixoto, o Sain, ele mesclou as novas músicas com antigos marcos de sua carreira, incluindo, é claro, alguns sucessos do Planet Hemp, e entregou tudo o que o público esperava nesse reencontro: calor, emoção, fúria, abraço, afeto. Um showzão da porra, em resumo.
O produtor Alexandre Rossi, o Rolinha, responsável pela programação, já havia nos falado sobre essa saudade específica, que enfim conseguiu realizar: ouvir um disco e vê-lo se concretizar ao vivo, no palco. Ele contou que, desde a retomada do Circo, no início dos anos 2000, se lembrava de apenas dois shows cancelados, sem nenhum final de semana com as portas fechadas. “Imagine agora, foram 19 meses! Todo mundo começou a se virar, buscar fazer outras coisas, teve até quem pensou em se mudar, mas a gente meio que não tem essa opção, pois o Circo não pode fechar. Ele é patrimônio da cidade, as pessoas não deixariam”.
A escolha pelo show do D2 na reabertura levou em conta, além da história do artista com a casa, a força do novo disco. “Foi uma das coisas mais legais que foram lançadas na pandemia. Desde que saiu ficamos namorando.”
Em um rápido bate-papo após o show, Sain nos falou sobre como foi viver aquela noite: “É difícil achar palavras, é uma emoção transbordando. Depois de todo esse momento difícil que a gente passou, poder voltar nesse palco que é histórico, não só para o Rio, mas para todo o Brasil e para a nossa cultura, é importante pra caralho. Estou muito feliz”, comentou, celebrando ter cantado ao lado do pai e ter visto sua filha acompanhá-lo durante a passagem de som.
No palco, Marcelo D2 lembrou do momento difícil que o país atravessa e lembrou de amigos que perdeu. Ao lado de sua afiada banda, prestou homenagem aos trabalhadores do Circo e, de forma mais ampla, aos trabalhadores da cultura, na figura de Juçá, que mais uma vez subiu no tablado, já no encerramento da apresentação, para a reverência de um D2 ajoelhado e de uma plateia entregue.
A reabertura do Circo de fato representa um alívio para um número incontável de pessoas, além das 70 que trabalham diretamente na instituição. “Eu tenho dito a todos que minha alegria por esse retorno não está só no D2 ou na plateia. Nosso retorno impulsiona o tio da pipoca, o cara do aplicativo, ajuda todo mundo que sobrevive dessa movimentação. Quando nossa roda gira, ela alimenta outras rodas, sustenta muitas pessoas”, comentou Lencinho.
Uma vontadezinha de sonhar de novo
E ao retornar em grande estilo, numa típica noite de festa do Circo Voador, a nave serviu de farol e esperança de que a tragédia que ainda nos sufoca pode estar perto do fim. O cantor Tico Santa Cruz, presente na abertura, utilizou uma metáfora para descrever sua sensação: “Imagine que o Rio de Janeiro é um corpo e o Circo é o coração. Hoje a gente veio aqui para apertar o coração, fazer aquela massagem que é necessária para poder reviver e reavivar aquele corpo que não pode morrer nunca. Este é o primeiro momento, a reabertura; o corpo ainda vai levantar, correr, pular, vai se divertir, mas hoje a gente viu ele abrindo os olhos”.
O diretor de cinema Henrique Sauer lembrou que, para três gerações ou mais, o Circo é a grande referência de palco no Rio. “Voltar aqui é o primeiro sintoma real para mim de que as coisas podem dar uma aliviada. Poder estar num show é minha âncora necessária para acreditar que as coisas vão melhorar”.
Também presente na primeira noite, a cantora e atriz Lellê comentou que voltar ao Circo depois de tanto tempo e viver uma noite tão especial é motivo para acreditar que dias melhores podem vir. “Eu já tive oportunidade de estar nesse palco, e hoje, como público, em vários momentos fiquei muito emocionada, e essa é uma sensação que só o Circo pode dar, ele tem uma energia nossa. A magia acontece nesse lugar”, descreveu.
Na mesma roda, a cantora e compositora Késia Estácio contava que o Circo é um local que todo artista pensa em se apresentar quando está fazendo um projeto. “Saio animada hoje. Parece que não é real, todo mundo teve um momento que parou e olhou: ‘isso está acontecendo?’. É muito especial, aqui estamos sempre cercados de afeto, o Circo é uma casa de afeto, é o nosso local. Dá até uma vontadezinha de sonhar de novo. Po, fazer um showzinho no Circo de novinho né? A galera cantando, geral com a mão pro alto...”
Muitas casas de show já haviam retornado às atividades presenciais nos últimos meses, com limitação de público. Segundo Maria Juçá, o Circo optou por aguardar até o momento em que se reuniram três condições: uma cobertura de vacinação substantiva (ela calcula que, no universo do público da casa, cerca de 80% das pessoas estão com esquema vacinal completo); o aniversário do Circo, comemorado nesse domingo; e a situação econômica que a instituição enfrenta.
“Estávamos no nosso limite, com uma necessidade econômica extrema, e também num limite emocional. Nós optamos por aguardar até esse momento que nos dá mais tranquilidade. Eu estava oprimida pela responsabilidade com dezenas de pessoas que dependem financeiramente de nós e, ao mesmo tempo, consciente de que, agora, era seguro reabrir”.
Então nossa dica é: primeiro, vacina no braço, máscara no rosto, cuidado consigo e com os outros. Depois: quem puder e se sentir à vontade, vale muito o reencontro. O Circo continua lá como aquele bom e velho amigo: mesmo sem ver há muito tempo, parece que foi ontem. O afeto segue intacto.