Kuduro, esse beat nos kuia
Filmado em Luanda, documentário aborda história e representantes do ritmo marginalizado que se transformou em ‘hino’ de Angola
Publicado em 10/2017
Passamos 17 dias em Luanda, Angola, em janeiro de 2017.
Consumimos a música angolana há um bom tempo. De consumidores, passamos a pesquisar mais sobre como acontecia a cena de kuduro lá e até a baixar e tocar essas músicas em algumas festas, aqui no Rio. Mergulhamos nessa estética, descobrimos vídeos de umas festas doidas em Luanda, uns vídeos em qualidade bem baixa, mas vimos muito valor naquilo, muita sinceridade. O kuduro é uma manifestação cultural muito foda, muito forte, um tipo de movimento e comportamento que tem bastante em comum com coisas aqui do Brasil, principalmente o funk.
As pessoas começaram a fazer uma forte associação nossa com o kuduro, e aí bateu o sentimento de distância com relação àquilo, de uma apropriação cultural mesmo. Não tínhamos nenhum contato com a cena e nem dávamos retorno para aquela comunidade, só observávamos e reproduzíamos as músicas. Então percebemos que precisávamos conversar com aquelas pessoas, trocar experiências, mostrar o que estávamos fazendo aqui com a música deles e, de preferência, poder colaborar e construir alguma coisa juntos. Queríamos conhecer beats e também entender um pouco mais sobre a nossa ancestralidade - não só de música, mas também social.
A ideia de ir para Angola já rolava há alguns anos, mas as passagens eram sempre muito caras e as informações, muito poucas. A falta de informação, aliás, também colaborou para aumentar o nosso ímpeto de ir até lá, porque todo o material que encontrávamos sobre o país e a cena de kuduro era muito limitado - se estivéssemos pesquisando um gênero musical dos Estados Unidos, por exemplo, chegaríamos até as informações, DJs e produtores com muita facilidade, mas com Angola é diferente.
Até que surgiu uma promoção com passagens muito baratas. A ideia era entrar em contato e conhecer uma galera da cena de kuduro de Luanda e criar algum tipo de conteúdo, qualquer que fosse, para registrar isso e ter uma troca. Voltamos com um documentário, uma música e um clipe.
Conhecíamos alguns nomes, por conta das nossas pesquisas, mas não tínhamos a menor ideia de como chegar nessas pessoas. Quando começamos a planejar a viagem, nosso primeiro e único contato era o DJ Ketchup, um cara que já conhecíamos e era uma grande referência para nós. Ele estava conversando com os nossos amigos do Heavy Baile porque queria gravar com eles, e aí nos falamos para marcar algo quando chegássemos em Luanda. Pensamos que ele poderia nos ajudar passando o contato de outras pessoas, porque, deduzindo pelo cenário que a gente conhece aqui, essa galera da música toda se conhece, se encontra nos eventos em que um vai tocar, vai na festa do outro. Mas não.
Chegamos em Luanda só com o contato do DJ Ketchup - e ele não nos respondia direito. A comunicação com os angolanos foi difícil porque o acesso à internet é precário. Por mais que eles tenham Whatsapp, as respostas são um pouco demoradas. Até mesmo falando português, a interpretação das coisas, esclarecimento, clareza e objetivos são diferentes.
Aí houve uma reviravolta: a amiga de uma amiga da mãe do Suryan morava em Luanda e queria conhecer a gente. Nos encontramos num bar e, quando explicamos o que queríamos fazer lá, descobrimos que, das cinco pessoas na mesa, uma conhecia o Tony Amado, o criador do kuduro, e a outra, a Titica, uma cantora importantíssima para cena e que, por acaso, é trans (e cantou com o Baiana System no último Rock in Rio). Cada uma das duas mulheres conhecia uma pessoa, e elas duas estavam sentadas na mesma mesa. Com a gente. E aí? Qual é a probabilidade disso acontecer? Como tu vai dizer que não tem deus nessa parada agora?
Tony Amado, o criador do kuduro
O Tony Amado é o criador do kuduro e carrega muito isso com ele. Nos encontramos no estúdio dele, no Kilamba, um condomínio para pessoas de poder aquisitivo um pouco maior, em uma região afastada do centro de Luanda, onde existem poucas favelas. É nesse bairro que ele mora e onde montou seu estúdio. Além dele, conhecemos um de seus pupilos e os moleques do Martian Boyz, um grupo de rap/ kuduro, que estava sendo lançado pelo selo independente do Tony. Todos se dirigiam a ele com reverência e respeito, o chamavam de “Mestre Tony”.
Passamos o dia inteiro com ele, no estúdio e depois atravessamos a cidade até alguns dos negócios que ele tem como empresário. Chegamos de manhã e só fomos embora à noite. Achamos que ele queria primeiro mostrar quem ele era para depois nos dar a entrevista. Mostrar que ele é o Tony Amado, criador do kuduro, que está presente na favela apesar de morar no Kilamba.
Ele nos levou de carona de táxi até uns bairros onde tem negócios e isso foi muito irado. Fomos ouvindo as rádios de kuduro, que é como a galera consome a música mesmo, escutamos os kuduros da rua, que têm batida e letras diferentes - é todo um formato diferente do kuduro comercial, que é o que a gente mais consome.
Conversamos com o taxista, que falava sobre a realidade dele, e passamos por vários bairros onde pudemos ver como é realmente a vida de um angolano de Luanda. Bairros com barracos feitos de telha de amianto, com as paredes feitas de telha, são coisas muito sinistras. Vimos até como a polícia aborda as pessoas dentro desses bairros.
Em algum momento do dia conseguimos conversar com o Tony com mais franqueza. Foi um papo muito bom, ele deu um panorama sobre a cena, as transformações - e foi isso que queríamos buscar com ele, a trajetória do kuduro, que está junto da trajetória dele. Conseguimos um panorama interessante para embasar a continuação da discussão.
No estúdio, demos a sorte de encontrar esse grupo, que, inclusive, tinha algumas músicas de funk. Eles tinham uma visão totalmente diferente de todas as outras que a gente ia encontrar depois - e nós não sabíamos disso. Era um grupo de adolescentes, que tinham saído da cidade deles pra tentar a vida de músico em Luanda.
Os malucos eram bons, estavam muito focados, investindo a vida deles nisso, e tinham questionamentos políticos, sabiam o que queriam. Eles já eram um pouco maduros sobre o mercado musical - e era muito diferente das outras pessoas. Os moleques eram adolescentes, talentosos pra caralho, saíram da cidade deles em um grupo onde todo mundo fazia tudo, da parte musical aos cartazes para os shows, dividiam as responsabilidades.
Eles tinham esse sentimento do que a cultura representava para eles. Talvez pelo tamanho da saga em que estavam se metendo, estava na ponta da língua tudo o que aquele movimento significava para eles. Diziam: “kuduro é identidade, é minha raiz, minha bandeira”.
Titica, cantora
Pegamos o contato da Titica lá naquela mesa de bar, com as amigas da amiga da mãe do Suryan. Encontramos ela em casa, num apartamento num bairro relativamente novo, o Nova Vida. Ela disse que nunca tinha recebido ninguém na casa dela para dar entrevista. Titica tinha feito uma cirurgia na perna há pouco tempo, não conseguia caminhar muito, então ela precisou ficar deitada durante todo o tempo - pediu mil desculpas por isso, mas foi super solícita, mesmo sentindo dor.
Ela é uma pessoa com muita visibilidade e, já naquela época, queria chegar ao mercado brasileiro. Ela é fã da Ludmilla e quer gravar com ela. Talvez por isso ela nos visse como jornalistas do Brasil e tentava medir as palavras. Nossa conversa foi um pouco menos profunda e intensa, mas foi muito foda. Queríamos ter nos aprofundado em questões políticas acerca do kuduro, principalmente por ela ser trans, mas ela não direcionava o assunto pra isso. Tudo bem.
E ela ainda queria apresentar uma amiga pro Suryan! Ela postou um vídeo com a gente no Snapchat e a amiga mandou mensagem perguntando quem nós éramos. E o mais doido: essa amiga encontrou a gente no meio da rua! E parou o carro no meio da rua pra falar que era a amiga da Titica!
Gaia Beat, produtor
Chegamos até o Gaia Beat através do Pitxú, o cara que produziu a música com a gente - e de quem vamos falar mais no próximo Zine. O Gaia Beat é um produtor musical que faz beats de vários gêneros e tem uma projeção internacional grande, vende beats no exterior. Ele faz músicas de vários gêneros relacionados a Angola: semba, afrohouse, kizomba, se envolve com hip hop, trap, funk e não só com kuduro.
Nos encontramos na casa que ele divide com o irmão e onde está construindo um estúdio maneiro, no terraço, com os amigos. Ele disse que, desde pequeno, mesmo sendo pobre, sempre teve acesso à internet e ao computador, então conseguia consumir muita música e produzir, por influência do irmão.
O Gaia tá nesse corre de criar um selo para produzir os amigos que cantam kuduro, o Alvalade Records, que tem o nome do bairro que ele mora. Como ele tem uma projeção internacional muito grande, está criando uma estrutura melhor para todo mundo dali - e pra ele também. Passamos uma tarde trocando ideia com ele e mais quatro amigos, incluindo o agente dele, Mario Kelson, um cara gente boa toda vida - eles são amigos de infância.
Lá sentimos um clima mais colaborativo. Chegamos para falar do Gaia Beat, mas vimos um cara que não tinha problema nenhum de apresentar os amigos, problema nenhum com os amigos passarem contatos pra gente, tinha realmente uma situação de grupo do selo, todos os artistas ali juntos.
Claro que percebemos uma liderança natural porque o Gaia Beat tem uma projeção internacional e tudo ali existe por causa dele. Ele se projetou, ele começou a vender, mas todo mundo está junto. Sentimos que era uma coisa mais natural. Eles, em off, falavam de governo, de política, de mercado, uma conversa de boa.
Foi surpreendente a quantidade de coisa boa que o Gaia Beat faz. Enquanto conversávamos, ele foi tocando várias coisas que fez, todas diferentes entre si - nosso papo foi muito sobre isso. Tinha de tudo um pouco, ele estava fazendo todo tipo de som e muito bem. Tinha funk, funk melódico com batida de kizomba, umas misturas bem feitas. Sinistro!
Ketchup, DJ e produtor
Foi um pouco difícil encontrar o Ketchup, porque ele demorava a responder - achamos que o acesso à internet era difícil. No dia que marcamos tinha chovido, e o saneamento básico é quase zero em Luanda inteira, então rolam aquelas dificuldades de chover e a pessoa não saber o que fazer. O Ketchup ligou querendo desmarcar porque não estava conseguindo sair de casa por causa da chuva, mas acabamos conseguindo nos encontrar mais tarde no mesmo dia e marcamos a entrevista na sede da gravadora dele, que é do filho do presidente.
O Ketchup é gente finíssima, e desde o primeiro momento, quando estávamos trocando mensagens. Foi um encontro muito foda, falamos coisas mais relacionadas a mercado, projeção internacional e os materiais que está fazendo.
Ele tem uma projeção internacional parecida com o Gaia Beat, de quem produz o tempo inteiro, mas o Gaia Beat não sai de Angola pra tocar com frequência porque só produz, trabalho de estúdio, já o Ketchup é DJ e produtor, então consegue sair pra algumas gigs no exterior.
Em 2010, o Ketchup estourou um hit, “Obabo”, e conseguiu trabalhar bem isso e segurar o nome dele no alto. Ele é um DJ com bagagem internacional, é referência de Angola pelo mundo, tem entrada em festivais, mas está no corre, não tem agenda cheia garantida. Aqui no Brasil, mesmo pouca gente se ligando em kuduro e afro house, quem se liga um pouquinho já sabe quem são o Ketchup e o Gaia Beat. Então, nossa conversa já foi com uma perspectiva do cara que sai (do país), volta e quer sair cada vez mais pra tocar. Além disso, ele está dentro de uma gravadora, então já é outra estrutura, enquanto as outras pessoas com quem conversamos são de selos independentes.
Foi interessante ver o leque de recursos criativos que o Ketchup tem, quanta coisa ele faz e como ele é versátil e preocupado com isso, com essa versatilidade. O cara não produz muitos tipos de música, é basicamente afro house, kuduro e um house meio EDM, sempre mais ou menos no mesmo escopo, mas ele é bem criativo e antenado dentro desse nicho. Ele pilha de produzir funk, sabe quem é a MC Carol - e foi por isso que ele entrou em contato com o Heavy Baile. Ele pesquisa, não queria parceria com a Anitta, por exemplo, que é uma brasileira do funk mais óbvia pra quem vê de fora, ele queria a Carol.
Sentimos que ele quer ser DJ festival, tem essa projeção de querer ser tipo um David Guetta, então produz coisas que sabe que vendem. Ele é bastante criativo nos beats, sabia mexer em pequenas coisas aqui e ali e mudar toda a cara da música. Foi muito legal ver o quanto ele é criativo, mesmo com uma certa limitação tecnológica, e como, mesmo assim, eles estão avançados nas pesquisas e experimentações musicais.
Qual imagem temos da música de Angola depois dessa experiência?
Voltamos levemente decepcionados, mas muito por conta da expectativa que criamos sobre o que encontraríamos lá. Pensamos que haveria um melhor desenvolvimento musical dentro de alguns segmentos, como beats de tambor, influências de alguns tipos de batidas de tambores africanos e ritmos religiosos. O kuduro e o funk vêm dessas matrizes africanas e batidas de giras, mas não sentimos esse desenvolvimento lá, não tivemos contato com isso. Imaginamos que seria uma Bahia avançada, esperávamos grupos tipo o Olodum, por exemplo, alguém que estudasse mais percussão, mas não. É tudo muito cru, a galera sabe, mas é naïf.
Pensávamos que encontraríamos mais gente como o grupo Martian Boyz, que conhecemos no estúdio do Tony Amado. Uma galera muito envolvida, até o osso, quase que espiritualmente.
Achamos que fosse fácil encontrar festas de kuduro, mas não encontramos. Fomos a uma boate e tocou pouco kuduro, mas aí pensamos: “ok, é uma boate”. Mas fomos na favela e foi igualzinho. Não vimos bailes de kuduro como existem bailes funk aqui, onde toca funk do início ao fim. Vimos festas de bairro onde as pessoas festejam e o kuduro está sempre envolvido porque é uma música popular, principalmente nas regiões menos privilegiadas.
Não encontramos realmente um foco dessa cultura. Percebemos que a relação das pessoas com o kuduro é bem parecida com o funk mesmo. O taxista só ouvia kuduro, a galera da favela só ouvia kuduro, toda festa de bairro tem uma apresentação de um cantor ou grupo de kuduro ao vivo, mas algumas pessoas ainda têm preconceito, é uma música criminalizada.
Ficamos meio perdidos sobre como as coisas se desenvolvem. Como existem vários focos, cada um seguindo o seu caminho e pesquisando de forma independente, é tudo meio solto. A galera depende muito de festival, depende de investimento de outras pessoas. Como a internet é precária, a coisa acontece no rádio, eles dependem de lançamento de músicas no rádio, como era aqui antigamente.
A galera de lá não tem internet pra assistir vídeos com frequência, mas todo mundo faz clipe de tudo e coloca no Youtube - talvez boa parte do consumo do exterior venha disso. Além disso, gravam CDs com coletâneas e vendem na rua. O cenário é bem parecido com o que rolava no Brasil nos anos 2000, no início da internet.
No dia 7 de novembro, falaremos sobre "Tá fixe", a música e o clipe que fizemos em Luanda, em parceria com Elpitxú e participação de Sávio Show e Os Makambo.
Ficha técnica
Produção e direção: Alexandre Marcondes e Suryan Cury
Edição de vídeo: Alexandre Marcondes, Calí dos Anjos e Clarissa Ribeiro
Design: André Duarte
Edição de texto: Beatriz Medeiros