Burning Man Report
Um relato da segunda experiência dos nossos fotógrafos em Black Rock City
Publicado em 09/2014
Esses dias li uma matéria, de um desses sites que criam matérias falsas, sobre um garoto que havia finalmente perdido a voz (para satisfação de seus amigos) de tanto que falou sobre a sua experiência no Burning Man. E é isso, é exatamente isso, o desejo de contar essas histórias, de falar sobre esse lugar impossível, é incontrolável. Fotografei festivais pelo mundo inteiro, na Ásia, Europa e por toda a América, mas nada chega aos pés, nenhum deles havia me dado base para ter expectativas que um evento como esse era plausível de existir.
Não é um festival de música, a assessoria do evento me deixou bem claro quando pedi minha credencial da primeira vez que fui. Não é uma “rave a fantasia muito doida”, como já ouvi uma galera leiga simplificando. Não é um retiro espiritual onde o dinheiro é proibido, nem um conclave de artistas circenses e yoguis, nem uma galeria de arte contemporânea. É tudo isso, ao mesmo tempo, sem os rigores de nenhum deles. O Burning Man é uma cidade fantasma que só existe por uma semana do ano, a Black Rock City.
A melhor forma de contar essa história é de forma cronológica, a partir da experiência de um visitante. Já havía ido ao festival no ano anterior e já estava esperto sobre alguns macetes para enfrentar o deserto. O Burning Man não é uma colônia de férias, descobri isso do jeito ruim na primeira vez.
A cidade mais próxima, Reno, fica a mais ou menos 4 horas de carro. De lá até Black Rock City, somente alguns pequenos vilarejos, hotéis de estrada e lanchonetes duvidosas. O caminho é deserto adentro. São 68 mil pessoas convivendo juntas, todas com suas próprias reservas de comida e água, cada uma cuidando da sua própria sobrevivência e bem estar. A única coisa que o dinheiro pode comprar lá é gelo. Tempestades de areia constantes. Faz calor pra caralho e frio a noite. Perrengue. Pelo menos não tem mosquitos no deserto.
Esse é o primeiro ponto do festival, isolamento, tanto físico quanto mental, liberdade total da automatização e dependência dos serviços à sua volta.
Tudo isso parece assustador, mas no momento em que eu saí pela primeira vez do carro em Black Rock City, com os gogles vestidos, rumo a uma cabana de madeira improvisada no meio do nada para retirar o ingresso antecipado e senti pela primeira vez a força da areia, fina, quase invisível, tampando por absoluto todo horizonte, foi inesquecível. Pareceu que a realidade havia virado do avesso e tinha me jogado direto para um cenário pós apocalíptico, mad max feelings.
O primeiro impacto é incrível. “Da onde vem essa gente? Como pode isso? Olha aquilo! Olha aquele cara! Caralho, que porra é essa?”, por um dia inteiro. O mapa da cidade ainda não faz sentido, as pessoas não fazem sentido, as instalações e carros são tantos, aquele lugar não parece ter fim. É nauseante.
É um processo lento, mas aos poucos você começa a se acostumar, a se localizar. A sinalização é boa, a organização é impecável, as pessoas são extremamente prestativas. Com um pouco de esforço dá pra fazer um cronograma e visitar todas as instalações de arte fixas em um dia dedicado. Ah, tudo isso de bicicleta. O tempo todo de bicicleta. É o maior trânsito delas que já vi na vida.
Mais lento que o processo de se localizar fisicamente é o de se adaptar àquela cultura. No começo é intragável ver todas as fantasias steampunk hiper complexas naquele calor insuportável, dividindo espaço com a maior quantidade de gente pelada que já tinha visto, passeando de forma assustadoramente natural. Mas com o tempo você passa a entender uma das principais marcas do festival: Radical Self Expression. Aquela mitologia toda e as fantasias servem de identidade mais expressiva para boa parte das pessoas que as roupas que elas usam na 'vida real'. Elas parecem se sentir verdadeiramente livres, seja com peças dignas de aristocracia medieval ou completamente nuas.
Mas o mais incrível é que por todo lado esse impossível povo está sempre engajado em alguma coisa. Trabalhando em levantar algum acampamento, obra de arte ou carro; sendo voluntário na preservação da limpeza do deserto; prestando serviços médicos ou ajuda aos perdidos; transmitindo uma rádio própria ou escrevendo para um dos diversos jornais locais; fazendo alguma acrobacia mirabolante de circo ou fazendo uma performance musical para uma platéia minúscula; distribuindo bebida, comida ou quitutes; arrumando bicicletas; etc. A quantidade de coisas paralelas acontecendo é incontável. Em todas as vezes que circulei encontrei algo inesperado acontecendo.
E finalmente quando você acha que está começando a entender aquele lugar vem a noite e tudo muda. O festival não tem luz própria, o deserto é puro breu. Todo mundo se transforma na sua própria fonte de luz, todos os carros e obras acendem. Todos os transeuntes tem suas próprias lanternas, todas as bicicletas vem carregadas de leds próprios, o horizonte vira um mar de cores. E fogo. Muito fogo sendo lançado pro céu de toda parte.
Nessa hora é muito fácil se perder. Em uma das noites da minha primeira vez, passei mais de 3 horas andando de bicicleta até finalmente encontrar algum ponto de referência conhecido. Tudo está em constante mudança, andando de um lado pro outro e você não está, nem de perto, nas suas condições mais sóbrias. Em todas as vezes que me perdi, porém, encontrei alguma outra coisa incrível acontecendo, o que tardava ainda mais a minha vontade de ‘me encontrar’.
Na segunda vez que fui ao festival tive muito menos problemas com isto. É incrível como aquilo entra em você tão rápido, e você passa a entender o mapa da cidade. É como se mudar para um bairro novo, cujas proporções diminuem conforme o tempo que se vive nele.
Foi apenas no meu terceiro dia lá, quando já estava quase me sentindo integrado, que fui visitar o Templo. Lá percebi que ainda havia muito pra entender sobre aquele lugar e que só uma visita ao festival seria pouco tempo para realmente fazer parte daquilo. O Templo é uma homenagem aos mortos, um lugar sem religião, universalista e brutalmente emocionante. Nele são depositados pertences, fotos, textos e memórias de pessoas queridas falecidas. Amigos, parentes, pessoas de grande admiração, animais de estimação.
Cada uma destas histórias é emocionante. Agora, centenas delas literalmente empilhadas, todas em um extraordinário templo de madeira, levantado por voluntários, para em 7 dias ser queimado para sempre, isso é de uma poesia sem limites. Em um canto uma menina tocava de forma discreta uma harpa, no centro do templo dezenas de pessoas meditavam com os olhos cheios d’água, em outro uma menina escrevia uma carta gigante, temperando essa com lágrimas esporádicas. Parece um romance brega cheio de palavras, mas é tudo acontecendo de verdade, ao mesmo tempo.
Quando estava para sair do Templo, completamente perplexo, ainda mais uma surpresa. Um casal reuniu mais ou menos 10 amigos e foi para o centro do Templo. Lá, uma cerimonialista discursou discreta um texto sobre felicidade, universalidade e amor, e rodeados de bolinhas de sabão eles declararam seus votos de casamento. Em um lugar feito para celebrar os mortos, um casal prestava seus votos de dedicação mútua, para construir uma vida juntos. Puta que o pariu, chorei mesmo, foda-se, assumo.
Não só essa porra desse Templo, mas todas essas centenas de obras, levantadas por engenheiros, arquitetos e artistas primorosos, dignas dos melhores museus do mundo, que chamariam a atenção de milhões de turistas em quaisquer capital, essa porra toda queima ao longo do evento. Queima!!! Pra promover o desapego, pra mostrar que tudo isso é uma experiência transcendental e o caralho.
Como toda cidade em expansão, nem tudo é perfeito em Black Rock City. Percebi isso muito melhor na segunda visita ao festival. A popularização deste como sendo o festival mais cobiçado dessa geração, a quantidade de pessoas genuinamente lindas envolvidas, a liberdade de expressão extrema, tudo isso atraiu pessoas que não estavam em nada na vibe (essa foi a melhor maneira que encontrei de explicar).
Não me entenda mal, as festas são sim incríveis, possivelmente esse é o melhor lugar do mundo para se drogar (a experiência de ter seus sentidos exaltados lá é extraordinária), as pessoas são sim brutalmente maravilhosas, não conheço um lugar onde a interação entre as pessoas seja mais espontânea e onde as pessoas estejam mais excitadas por se encontrar. Mas todo tipo de babaca fica de pau duro ouvindo exatamente isso que falei, distorcendo o sentido das palavras para sua própria razão de existir, sua eterna caça por sexo e auto promoção.
Essa bad vibe é levada ao extremo no mais famoso dos palcos, o Robot Heart. Mulheres lindas (demais até!) e limpas, fantasias com cara de grife, carão por toda parte, acesso restrito a gostosonas, deep house. É um portal para, sei lá, a Ibiza, balada playson hardcore do mundo real no meio do Burning Man, e cara, isso no meio do deserto, é algo que dá arrepios.
Muitos dos verdadeiros frequentadores do festival pararam de vir até ele pois não curtem o que ele anda se tornando. Outro fator é a venda estupidamente rápida de ingressos e a comercialização em off dos ingressos, que chegam até mil dólares. Muita gente não curtiu mais fazer parte de algo tão elitista e comercial e, bem, sou obrigado a concordar com eles que isso é sim um problema. Tomara que mais deles não abandonem o barco e que a organização consiga de algum jeito proteger o festival dessa onda ruim.
Contar todas essas histórias em uma só matéria é impossível. São muitas, o tempo todo, uma mais incrível que a outra. É brutalmente divertido, emocionante e bonito. É doido, é engraçado, é construtivo. Mais do que tudo isso, dá uma sensação de que tudo é possível, de que o dinheiro não é a única soluçao, de que não temos limites quando a humanidade se junta pra fazer uma parada foda pra caralho, e que deveríamos fazer mais disso.
Todas as fotos aqui são desse ano, 2014. A galeria completa sai em alguns dias!
As fotos do ano passado: http://ihateflash.net/set/burning-man-the-day