Uma Geodésica para Araponga
Como apoiar a cultura do povo guarani
Publicado em 11/2022
Meu nome em português é Marley, em Guarani, Verá Tupã. Estou como liderança de apoio há quase 20 anos na Aldeia Guyraitapu, Araponga, onde recebi meu nome na cerimônia do Nhemongara'I, dado pelo meu xeramoi (avô), Augustinho da Silva Kara'I Tataendy Oca, hoje com 103 anos e pela minha xejary (avó), Marciana Benites Pará Mirim, com 96.
Verá Tupã
Antes de pisar em Araponga pela primeira vez eu tive vários sonhos em minha vida durante anos, em que eu chegava até uma montanha, e que quando estava lá encontrava uma casa grande de barro e a porta estava sempre fechada, eu olhava pela greta da porta e via meu avô, minha avó e o Nino (seu filho), um jovem na época, conversando. Eles sabiam que eu estava na porta, ma não abriam para mim. Esse sonho se repetiu várias vezes até que um dia sonhei que a porta se abriu, o jovem mandou eu entrar e lá dentro meu avô disse que eu sentaria ali e ficaria em silêncio, apenas ouviria. Me contou que se eu aprendesse a ouvir eu continuaria ali, mas me disse que tinha uma mulher que me levaria para outros caminhos, não ruins, mas que me tirariam da Casa de Rezo e de ficar ao lado deles.
Continuei sonhando e quando tinha 28 anos conheci uma mulher que tinha certeza que me casaria. Me casei e durante 3 anos e meio de casamento os sonhos cessaram. Me divorciei, não tive filhos e após o término do casamento decidi voltar para a floresta. Quando voltei para a floresta me reconectei com a mata, com meus espíritos, minhas raízes e voltei a sonhar, e dessa vez sonhava que entrava na Casa de Rezo, ficava ouvindo meus avós e que estava na hora de subir essa montanha.
Quando cheguei a Paraty, há praticamente 20 anos atrás, subi a aldeia e vi justamente aquela cena: meu avô deitado na rede, minha avó sentada e o Nino ali me esperando. Então sabia que meu sonho estava sendo realizado e estava sendo cumprida minha meta. A partir dali eu nunca mais saí da aldeia e a minha avó disse ao meu avô que eu tinha chegado e que eu seria um grande líder para dar continuidade a espiritualidade dentro da aldeia.
Assim eu fui seguindo o caminho do meu avô como sigo até hoje, os aprendizados dele, os rezos e nunca mais deixei de apoiar o Nhemongara'I de todas as formas. Um dia ele me deu um cocar e disse "agora você pode usar esse cocar" e ganhei também o petyngua, o cachimbo, para que pudesse fazer os rezos junto com eles. Sempre que eles precisaram rezar em outras aldeias, outras Casas de Rezo, Opy, eles me chamaram para acompanhá-los e rezar junto, a partir daí o meu espírito foi fortalecendo e eu mantive isso. Vivi dois anos trabalhando na cidade e subindo a aldeia a pé, 10 km, sempre que subia Araponga eu sentia que subia uma montanha que me levaria a minha espiritualidade. Brinco que não precisa ir a Compostela, basta subir a Aldeia Araponga. Hoje sou casado com uma guarani da Argentina, que com os filhos dela temos 6 filhos ao todo, mantenho essa caminhada junto a eles e conto para vocês essa história sobre porque doar toda minha vida para cuidar dos meus avós e dessa tradição.
Araponga
Araponga é a aldeia Guarani Mbya mais antiga de Paraty-RJ, e quando meus avós chegaram na aldeia, há 50 anos atrás, moravam muitas famílias mas o acesso era ainda mais difícil do que é hoje, pelo fato de não existir na época nenhuma parte do trecho pavimentado para carros, somente trilha, o que mantinha os moradores isolados da cidade. Naquela época existia muito problema com alcoolismo na aldeia e o antigo cacique, que atravessava problemas de relacionamento com a sua comunidade, acabou se afastando, criando a necessidade da FUNAI de eleger uma nova pessoa para cumprir essa função. Meu avô então aceitou, graças a insistência da minha avó, que queria muito ter a sua Casa de Rezo, Opy. Meu avô estabeleceu uma condição para aceitar ser cacique: que suas regras deveriam ser respeitadas, isto é, que as pessoas que vivessem na aldeia não se envolvessem com álcool ou qualquer outro tipo de droga e que se mantivesse a tradição do Nhemongara'I e o plantio do milho. Nessas condições cada vez mais famílias acabaram indo embora. Hoje a aldeia possui algumas famílias que são todas parentes por parte de pai ou de mãe.
Como cacique, meu avô colocou Nino, seu filho mais jovem, como vice-cacique e Lírio, seu filho mais velho, como maestro do coral dos jovens, para que se mantivesse a tradição dos rezos e cantos dentro da Casa de Rezo, para fortalecer os pajés. E assim a aldeia foi seguindo com ele e a minha avó, mantendo a tradição de plantar o milho Guarani para realizar o Nhemongara'I e o batismo das crianças. Eles moram dentro da Casa de Rezo e rezam todos os dias para que mantenha a força e a espiritualidade dentro da aldeia. Essa é uma das grandes importâncias da aldeia Araponga, a força desses dois.
Hoje, eu e Nino, que também se tornou coordenador do coral, estamos juntos no apoio dos meus avós mantendo o Nhemongara'I, esse rezo que é sustentado por mais de século por eles, que já nasceram com essa missão. Essa é uma das melhores formas de dar continuidade a essa tradição, cuidando deles.
Nhemongara'I
“Através da música nós somos muito fortes (...) A música é sagrada dentro da aldeia, porque a gente fortalece o pajé através da música. Sem a música dentro da aldeia, dentro da Casa de Rezo, a gente não tem alegria, não tem força. Principalmente nosso espírito, a gente acredita muito no nosso espírito, que ele é muito forte, por isso que a gente tem nome indigena também. Então, onde o Nhanderu passa pro pajé, o pajé passa para nós que é o nome indigena. Então nós temos que ter música, porque se não tiver música, nós não somos nada.” - Nino, coordenador do coral da aldeia Araponga e filho do avô Augustinho Kara'í Tataendy.
Esse rezo sagrado de batismo é o maior tesouro vivo da Aldeia Araponga, pois graças a ele é que as crianças guaranis recebem o seu nome e dão continuidade a o que entendemos como ser Guarani, povo Guarani. No mês de julho, nós fazemos o batismo do milho, rezando durante uma cerimônia que dura dias as sementes de milho crioulo herdadas dos avós dos meus avós, e em janeiro a realizamos a colheita do milho, para que as crianças possam receber o nome em Guarani. Durante seis meses os meus avós rezam todos os dias na Casa de Reza Opy, especificamente para em janeiro no Nhemongara'I se conectar com o espírito de cada criança que será batizada. Através da espiritualidade desta criança, é que ela vai receber um nome e o nome dela geralmente indica qual é o caminho que ela vai percorrer, sua missão de vida, seu papel social na comunidade.
Tradição em risco
Devido a todas as questões de acesso à aldeia, o pequeno número de habitantes e a idade avançada dos meus avós, a tradição que é o nosso maior tesouro está ameaçada, pois eles já não podem mais sair da aldeia e realizar o rezo sagrado nas comunidades guaranis, também é difícil receber os parentes devido a falta de infraestrutura na aldeia e, além disso, existe hoje uma alta taxa de evasão de jovens que saem em busca de oportunidades para sustentar suas famílias e não continuam o estudo com eles e não compreendem quem são, de onde vieram e para onde estão caminhando, o que possibilita uma interrupção da linhagem.
A realidade é que existe um índice imenso de suicídios de jovens principalmente e de mulheres mais velhas nas aldeias guaranis como um todo. Muitos jovens indígenas buscam a identidade do branco, mas não conseguem sustentar a imagem de viver como um branco. Isso por causa da miséria e falta de oportunidades, já que não existe assistência do governo e a própria Funai piorou muito neste governo. Se a aldeia não tem um cacique que lute por esses recursos, as pessoas morrem de fome.
O caminho para manter a tradição viva é trazendo estruturas para dentro da aldeia, e a melhor solução que encontramos é construir uma Geodésica.
Geodésica
"Conviver com a tecnologia moderna é importante para o fortalecimento da própria cultura, porque é necessária para atender demandas de saúde, comunicação e acesso que surgiram com o contato com o mundo não indigena. Muita gente acha que as tecnologias atuais só prejudicam as aldeias, sendo que algumas prejudicam e outras fortalecem. A Ameríndia Design levanta essa bandeira de que não é para os povos indígenas ficarem como antigamente, que não pode ter tecnologia não-indigena, pelo contrário, as boas relações com o mundo contemporâneo devem ser inseridas para o resgate e formação de redes para o fortalecimento desses povos." - Jorge, fundador da Ameríndia Design e responsável técnico pela construção da geodésica na aldeia Araponga.
Antigamente as casas guaranis eram ocas feitas de palha e materiais disponíveis na época, como a guaricanga. Porém hoje em dia não se pode mais extrair matéria prima do parque em que está localizada a aldeia. Além disso, as atuais casas de pau a pique, que vieram de influência externa, possuem diversas questões: não se pode extrair o barro, pois Araponga está localizada em uma área de reserva; não possuem janelas, esquentam durante o dia e trazem problemas de saúde devido a utilização tradicional de forno a lenha dentro das casas.
Como as ocas antigas, a geodésica é um sistema simples, rápido de se aprender, versátil e econômico em uso de materiais, o que também facilita muito a construção dentro da aldeia, pelo material leve e fácil de transportar e montar. Na verdade nós indígenas já fazíamos a geodésica do nosso jeito, em forma de ocas de várias maneiras, agora só estamos usando um conhecimento maior que é a matemática da Geodésica. A tentativa dos avós é de manter a espontaneidade, não perder as raízes, mesmo que aprendam novas coisas.
A ideia de construir a geodésica é ter espaço para receber jovens e ter incentivos inclusive financeiros para que eles possam, se não permanecer lá, continuar voltando. Sair da aldeia é permitido, é um exemplo. O desejo é que quando saiam possam sempre voltar e colaborar, e acabar virando uma inspiração para os mais jovens. Poder conhecer coisas novas e somar com a cultura de Guarani.
Por tudo isso a Geodésia não é simplesmente mais uma construção na aldeia, o objetivo é trazer recursos sem ter que sair de Araponga. E quando precisar sair, que por algum motivo maior. A escolha da geodésica é por ser um sistema simples que eles dominam, material mais viável e fácil para construir na aldeia. A construção tem o sentido de dar continuidade e trazer recursos de forma que possam manter os jovens dentro da aldeia, ser a escola do aprender e do ensinar. Trazer pessoas para visitar, porque a aldeia é um lugar diferente e único.
Campanha
Junto com nossa família da Grande Casa 4 Flechas, que é a ponte entre os povos nativos e pessoas como o Jorge da Ameríndia Design, criamos uma campanha de financiamento coletivo de 61.200 reais para realizar o projeto da construção da geodésica na aldeia, que está no ar neste momento, e pensamos em recompensas para quem apoiar, inclusive participando da construção da própria geodésica em uma oficina viva.
Um pequeno gesto de contribuir com alguns reais com essa campanha pode ajudar a proteger a grandeza da sabedoria dos meus avós, que acredito ser importante não somente para o Guarani, mas para o planeta como um todo.
Have'ete Agudjerete