Agronejo
Como a música sertaneja tomou a frente da propaganda do agronegócio
Publicado em 06/2022
Não é nenhum segredo ou novidade que a indústria da música sertaneja tem um forte vínculo com o agronegócio. Em outubro de 2020, Gusttavo Lima recebeu um cachê de R$ 1,5 milhão para cantar na live Embaixador no Agronegócio, transmitida de uma enorme fazenda de soja no Mato Grosso. Ainda em 2018, Paulo Cesarino, dono do estúdio Up Music (que possui mais de 20 anos de atividade e já gravou artistas como Michel Teló e o próprio Gusttavo), deu o papo sobre essas relações entre o agro e os sertanejos: "A alta do PIB agropecuário está ligada ao crescimento da música sertaneja no Brasil. Como o sertanejo vive de vender músicas nas feiras agropecuárias, foi privilegiado", disse em entrevista à Folha de S. Paulo.
Mas recentemente essa ligação vem ultrapassando o financiamento nos bastidores e chegando nas músicas em si, com menções diretas à pecuária, à plantação de soja e ao enriquecimento dos grandes fazendeiros em suas letras. Chamada de "agronejo" por alguns fãs, essa nova vertente constrói uma identidade agroboy (e sua autoafirmação orgulhosa) e ao mesmo tempo opera como máquina de propaganda da indústria agropecuária, muitas vezes apropriando-se de discursos e narrativas de gêneros musicais marginalizados, como o funk.
"Aqui o engarrafamento é de boi/ O arroba da internet, aqui é de gado/ Agora eu tô tranquilo, então partiu, já foi/ A soja desse ano deixou nós folgado", entoa o cantor Loubet, do Mato Grosso, na música "Respeita o Agro", que dá título ao seu DVD lançado em fevereiro. Outra música simbólica é "Os Menino da Pecuária", da dupla paranaense Léo e Raphael. Com 52 milhões de views, a canção abre com o áudio de um vídeo viral de uma criança na faixa dos 5 anos dizendo: "Meus amigos me perguntaram na escola o que vou ser quando eu crescer. Eu falei que já sou formado na pecuária!" A letra da música combina a ostentação de um pasto cheio de cabeças de gado (que podem valer mais do que algumas Ferrari) e exaltação da indústria do campo. "Não é à toa que o PIB começa com P de pecuária", dizem eles, enquanto o videoclipe vai exibindo estatísticas que glorificam o setor, como em um powerpoint publicitário. Assim, a música retoma a antiga estratégia de se legitimar apresentando os interesses da agroindústria como interesses de toda a população, construindo uma imagem e reputação de "produção de riquezas do país" que esconde suas responsabilidades na crise ambiental, no negacionismo climático e no extermínio de povos indígenas.
"Respeita o agro porque é o agro que carrega essa nação", diz um dos comentários à música no YouTube. Um outro completa: "A pecuária brasileira está dando orgulho. Trabalho duro junto com tecnologia, cultura do reaproveitamento e do não desperdício. Parabéns pela música e parabéns a todos e todas que trabalham em todos os setores da pecuária". E ainda tem quem tome as letras como inspiração para a vida: "Linda música, muda a minha vida. Me dá ânimo para pecuária no Mato Grosso!!! 250 cabeças de gados em produção! kkk".
Muitas dessas músicas apresentam histórias de superação da pobreza e do trabalho braçal pesado. Quem tá fazendo nome nessa vertente é o duo Us Agroboy, formado por jovens de Minas Gerais e Goiás. Eles sintetizam bem essa narrativa em "O Agro Nunca Para":
Quem vê essa fazenda grande e cheia de gado
Não sabe a metade, é que meu pai foi correria num suor danado
E eu fiz faculdade, a primeira terra que eu arei,
Primeira soja que eu plantei
O primeiro cavalo que eu andei
Hoje eu to na colheitadeira, e meu velho de bobeira,
Cheio de orgulho e felicidade
Hoje eu pego a minha caminhonete e o dinheiro da soja
Vai tudo pros grave
Mas tem um ponto importante aqui: apesar do dinheiro, dos carros e da ostentação, os cantores insistem numa diferenciação entre eles e o "playboy" das grandes cidades, que, do seu ponto de vista, seriam esnobes e desumildes que tentam diminuir a força daqueles que vivem no campo. O sucesso financeiro conquistado pelos agroboys seria então uma vingança contra os playba. Us Agroboys destacam isso em "Fazendinha de Madeira", faixa gravada com os veteranos Fernando & Sorocaba e incluída no seu recém-lançado EP de estreia. Na música, um homem relembra de quando na infância ganhou da mãe uma fazendinha de brinquedo — e ali iniciou o sonho de ser fazendeiro. "Enquanto a playboyzada só ria de mim/ Hoje quem ri sou eu de quem desacreditou/ A roça venceu, o agro estourou".
"A Roça Venceu" é também o nome de uma música dos paranenses Anthony & Gabriel, que aparecem em um clipe patrocinado por uma loja de produtos agrícolas rodeados por caminhonetes potentes, tratores e colheitadeiras, exclamam: "É nós tomando a pinga da cana que nós colheu/ Pro azar do playboy, a roça venceu". Originário do funk, o bordão "favela venceu" é reapropriado para o contexto rural, assim como o estilo e visual chavoso. Os peões passam a combinar "Juliet e Chapelão", como diz o título da música de Ana Castela, Luan Pereira e DJ Chris no Beat, que também tem um beat de funk e coreografia feita para estourar no Tik Tok.
Além de tomar os símbolos e narrativas de outros gêneros musicais, os principais cantores dessa tendência também estão reformulando linhagens internas do sertanejo, como o feminejo. Agora não é mais sobre as "patroas", mas sim sobre as "brutas do agro". Apelidada de "A Boiadera", a sul-mato-grossense Ana Castela é parte do casting do escritório AgroPlay e canta sobre um tipo de mulher que vive "a lida do gado/ De Hilux ou de cavalo", sendo o oposto da patricinha (ou "paty", como ela chama). Na mesma linha, a mato-grossense Bruna Viola exalta aquela que "já foi chamada de sexo frágil e agora é conhecida como mulher do agro". Lança então um discurso de empoderamento pelo trabalho e autonomia financeira: "Quando o homem do campo é mulher/ Segura que foguete não tem ré/ Lugar de mulher é onde ela quiser".
Talvez ainda seja cedo para dizer se tudo isso configura um subgênero do sertanejo. Mas há uma movimentação online que vai demarcando sua identidade. Por enquanto nenhum serviço de streaming possui uma curadoria oficial dedicada à temática, mas playlists criadas por usuários começaram a surgir no Spotify com nomes como "Agronejo" e "Agro Brasil" — esta última já conta com mais de 9 mil seguidores. Para além dos números, é importante observar quão significativa essa movimentação é na construção de uma nova imagem do homem do campo e da agroindústria, revelando-se uma máquina de propaganda sólida que trabalha ao lado do bolsonarismo em sua guerra cultural — e que, sim, pode vir a ter impacto nas eleições deste ano.
Em janeiro de 2019, Jair Bolsonaro foi homenageado no Palácio do Planalto por um grupo de cantores sertanejos, entre eles as duplas Bruno & Marrone e Cesar Menoti & Fabiano. "Os artistas sertanejos, que percorrem todos os cantos desse grandioso Brasil e vivenciam todos os dilemas e dificuldades do povo brasileiro, encontraram no governo do presidente Bolsonaro essa postura de um governante que trabalha em prol de seu povo, de seu país", dizia a carta dos músicos, lida por Cuiabano Lima, narrador da festa do peão de Barretos. Em resposta, Bolsonaro disse: "Sempre tive um carinho muito especial por vocês. Nós chegamos à Presidência em parte devendo a vocês".
O setor sempre foi um dos públicos-alvos de Bolsonaro. Em 2019, o presidente esteve na última edição presencial da festa de Barretos para retribuir o apoio com um decreto que tornava sem efeito as leis municipais que proibiam a prática de rodeio sob a alegação de maus-tratos a animais. Além disso, transferiu a fiscalização das regras que garantem o bem-estar e condições sanitárias dos animais de rodeio para o Ministério da Agricultura. No microfone, Cuiabano Lima celebrava o comprometimento do "simplão da república" com os rodeios, enquanto Bolsonaro era aplaudido por uma plateia de 30 mil pessoas.
Em abril, Bolsonaro vetou a Lei Paulo Gustavo (que destinaria R$ 3,9 bilhões ao setor cultural para amenizar os danos da pandemia) justificando que os recursos deveriam ir para o agronegócio. Antes disso, em janeiro, ele esteve no lançamento do programa Circuito Agro, do Banco do Brasil, para celebrar a "redução em 80% das multas do campo" e a "quase anulação das ações do MST" e a liberação das armas de fogo no campo. Em resposta, entidades da agroindústria já começam a se manifestar abertamente a favor da reeleição do presidente. Presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), Antonio Galvan afirmou que "praticamente 100%" do setor produtivo brasileiro apoia a "sequência" do presidente. É nesse cenário que o agronejo opera como máquina de propaganda, disseminando uma cultura do agro tech e pop, espalhando a imagem de uma indústria que alimenta o país — enquanto oculta o desastre humanitário e ambiental puxado pelo setor.
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Créditos imagens (em ordem):
1: Videoclipe Ana Castela - As menina da pecuária
2 a 5: Videoclipe Léo e Raphael - Os menino da pecuária
6 a 8: Videoclipe Us Agroboy - Fazendinha de Madeira
9: Videoclipe Anthony e Gabriel - A roça venceu
10 a 12: Videoclipe Ana Castela - As menina da pecuária
13 a 15: Videoclipe Bruna Viola - Mulher do Agro
16 e 17: Videoclipe Anthony e Gabriel - A roça venceu