Videoclipes independentes no Brasil
Mercado, estética, desafios e estratégias para driblar a pouca grana
Publicado em 08/2022
Visualizer no YouTube, reels no Instagram e até canvas no Spotify: os vídeos curtos em loop parecem ter dominado o audiovisual quando o assunto é música. Mas mesmo com essa mudança no mercado, realizadores brasileiros continuam a produzir videoclipes com narrativas e estéticas cada vez mais criativas. Nesse universo, quem se destaca é a galera independente, seja pelo alcance que os filmes geram aos artistas ou pelo reconhecimento do trabalho em festivais especializados.
Para saber mais sobre o que rola no mercado de videoclipes independentes, conversamos com quatro realizadoras: a paranaense Leticiah F, 31 anos, produtora, diretora e fotógrafa; o duo de diretoras e artistas visuais paulistas CeGê, formado pela stylist e diretora criativa Gabiru, 29, e pela fotógrafa e diretora Camila Tuon, 31; e com a cantora e multiartista sergipana Isis Broken, 27, que assina direção e roteiro de alguns de seus videoclipes.
Isis Broken: boas histórias e uma estética bapho
Isis Broken é uma artista que acumula prêmios nacionais e internacionais com seus videoclipes, como o de melhor figurino pelo m-v-f- 2019 e o de melhor videoclipe pelo 27º Festival de Cinema de Vitória, ambos para o filme "O Clã" (2019). "Estar ali com meu primeiro videoclipe foi algo recompensador, porque eu sabia que era uma porta de entrada e percebi que eles também queriam ouvir o que uma travesti nordestina tinha para contar. E lógico que eu tornei isso atrativo", diz Isis. "A gente também tem que ser esperta para poder chegar lá e nosso trabalho ser consumido, senão a gente é que vai ser consumida por um mercado que é tão grande". Isis se define como RAPentista (uma união de rap com repente), bruxa cangaceira, mãe travesti progenitora - e uma cria dos videoclipes. "Se não existisse videoclipe talvez não existisse Isis Broken. O videoclipe é tudo na minha carreira. Às vezes, penso no vídeo até antes de escrever a música".
Atenta ao mercado de videoclipes, Isis acredita que hoje se valoriza muito quem conta as histórias. "Na década passada, a gente estava falando muito sobre dissidência de sexualidade, com muitas produções de homens cisgêneros gays e drag queens. Mas nesta década a gente está falando sobre dissidência de gênero. As pessoas estão tendo noção e responsabilidade de ouvir corpos trans e transvestigêneres".
Isis acaba de lançar o videoclipe da música "Um Rock, um Roubo, um Love com Você" (2022), em parceria com seu marido, Aqualien. "A gente gravou o clipe um dia antes de nascer Apolo, nosso filho. Isso é algo muito revolucionário. Quantos clipes você viu com um homem trans grávido?". O filme foi feito na guerrilha, como os demais vídeos da artista. "Eu peguei o que tinha no guarda-roupa e a gente fez um clipe. Ficou lindo e muito sincero. Eu sei que o clipe tem uma história muito potente para contar".
Além da relevância das narrativas que traz em seus videoclipes, Isis se preocupa em ter uma estética própria. "Quando a gente pensa em artistas independentes, a gente pensa em um trabalho todo estruturado pelo próprio artista. Toda a minha estética de cangaceira vem de referências da minha família. Meu bisavô era coiteiro do bando de Lampião, então eu cresci ouvindo essas histórias do meu avô, que era repentista e cordelista", conta. E, dentro da estética, o figurino tem um papel fundamental para Isis. "Percebi o quanto a vestimenta é importante quando ganhei meu primeiro prêmio de figurino. Um clipe sem um look bapho, uma make bapho, uma estrutura bapho não vai funcionar. E ele precisa funcionar à parte da música: se eu deixar o clipe no mudo, ele tem que ser incrível".
Leticiah F: O menos é mais
Leticiah F também tem grande preocupação com a estética em seus trabalhos. "Minha maior assinatura é o preto e branco nas live sessions. E nos videoclipes, alguém parado e uma câmera indo e vindo, muito contraluz e preto e branco", diz ela, que já dirigiu clipes como "Sem Mentir" (2020), de Tuyo, e "Enigma" (2021), de Chameleo com Carol Biazin. "Acredito bastante em uma ideia simples e bem executada, principalmente no independente e com pouco recurso. Falam que é vídeo conceitual, mas não é. É muito simples: é um preto e branco, uma luz forte atrás e um rebatedor na frente. O preto e branco contrastado deixa as pessoas bonitas. E eu tenho essa preocupação". A preocupação em fazer com que os artistas se sintam bonitos vem do histórico profissional de Leticiah. Nascida em Cianorte, interior do Paraná, Leticiah trabalhou como fotógrafa e fez vídeos de casamentos por um bom tempo até começar a fazer lives de bandas de amigos em Curitiba e se ligar de vez com a música.
Uma das lives foi a da música "P.U.T.A" (2016), da Mulamba. Seis dias depois da postagem do vídeo, ele já estava com um milhão de visualizações - e hoje já alcança quase 5 milhões de views. "Foi um dos vídeos mais simples que eu já fiz - feito no sofá de casa! - e mais importantes na trajetória de uma banda", conta. A mesma repercussão por meio de um vídeo dirigido por Leticiah aconteceu com Tuyo. O vídeo de "Solamento + Amadurece e Apodrece" versão acústica (2017) foi em plano sequência, com câmera na mão e na natureza, e hoje tem mais de 8,5 milhões de views. "Todos os meus videoclipes são muito independentes. São vídeos muito, muito simples, mas que fizeram muita diferença para as bandas. Às vezes é mais importante as bandas terem um vídeo que o vídeo", diz ela.
Depois das lives veio o primeiro videoclipe de Leticiah, "Amadurece e Apodrece" (2017), de Tuyo, feito sem verba nenhuma e que contou com parcerias para dar certo. "Foi feito inteiro em uma casa e choveu no dia! Foram 40 dias de ensaio, mas tivemos só meia diária de gravação". Também com baixíssimo orçamento, o trabalho mais recente dirigido por Leticiah, "Lascívia" (2022), clipe do segundo single do novo álbum da Mulamba, foi realizado por uma equipe de seis mulheres e contou com 2 mil reais de verba. "O videoclipe é uma evolução de 'Desses Nadas' [videoclipe de 2018 que Leticiah dirigiu, fotografou e montou]. É bem sensorial e muito suave. É sobre sensualidade, toque, e é muito íntimo".
CeGê: união criativa, afeto e cura
Intimidade e afeto são características também presentes nas narrativas dos videoclipes da CeGê. O mais recente trabalho dirigido pela dupla foi "Era uma Vez Liliane" (2022), de Negra Li. "O início do clipe traz mais a infância dela e memórias afetivas, e depois mostramos o que ela está vivendo agora e qual o legado dela'', diz Camila. E ntre as características marcantes dos trabalhos dirigidos pela dupla estão os tipos de corte na montagem, introdução no início dos clipes, fotografia com texturas - e afeto. "Tudo o que a gente faz é uma cura. A gente sempre vai para um lado que é muito fa miliar, o resgate de quem eu sou no mundo", diz Camila. Um clipe dirigido pela dupla com essas características é o mais recente da Liniker, "Baby 95" (2021), indicado ao m - v - f - 2021. "A gente fala muito sobre o autoconhecimento da persona sobre a qual a ge nte está falando, o que leva a todo tipo de ancestralidade da artista. É uma viagem de cura. É satisfatório concretizar uma história de afeto entre corpos pretos", diz Gabiru.
Antes da CeGê, Camila era fotógrafa e trabalhava em uma produtora onde fazia pesquisa visual para roteiros. Já Gabiru é stylist e se formou em design de moda. "Era uma área muito hostil a quem eu sou. Sou uma mulher preta e dentro desse mercado há uma hostilidade e um racismo muito grande. Eu tentei identificar em qual vertente dessa área poderia me encaixar." Amigas que frequentemente trabalhavam nos mesmos lugares, Camila e Gabiru uniram suas habilidades criativas após o convite para realizar o clipe de "Dollar Euro" (2019), de Tássia Reis com Monna Brutal. Ambas fizeram juntas roteiro, direção geral e criativa. A repercussão foi grande, o prêmio de melhor videoclipe brasileiro pelo selo Genius veio logo de cara e assim surgiu a CeGê, que também assina roteiro e direção geral, de cena e criativa de outro clipe de Tássia, "Shonda D+" (2021), que teve três indicações ao m-v-f-.
Por constatar que o mercado de videoclipes não é muito acolhedor, a dupla definiu que a CeGê promoveria movimento no mercado audiovisual. "A gente tem a responsabilidade de trazer pessoas que nunca trabalharam com filmes e assim distribuir uma rede nova", diz Gabiru. Além de pouco agregador, elas observam que este mercado também tem uma urgência que dificulta o planejamento, essencial para valorizar tanto o projeto quanto a equipe. "É tudo para ontem. E a gente precisa de planejamento para conseguir patrocínio. Os projetos de videoclipes que têm uma verba investida são bem excludentes, é uma bolha que a gente não sabe como furar", afirma Gabiru. Mas, segundo elas, há pontos positivos neste mercado. "Ele vem em um movimento mais liberal em relação à liberdade criativa dos cantores, dos criativos. E hoje a possibilidade de vincular trabalhos com marcas é mais acessível", diz Gabiru.
Rola realizar com pouca grana?
Com uma boa equipe e uma boa ideia, rola. Isis Broken dá o exemplo do clipe de "Ararinha da Viola" (2021), homenagem a seu avô, que era repentista. "Eu tinha uma peneira furada em casa, umas fitas e fui colando tudo. Ia no brechó, comprava cinco looks por cem reais. E juntei lixo durante duas semanas para fazer o look de Iemanjá. Odeio estar no lugar de precarização, mas o clipe foi realizado com 1500 reais e que concorreu a prêmios. Essas condições fazem com que a gente tenha a obrigação de ser mais criativa", diz. Para Leticiah F, o essencial para uma produção independente é ter poucos e certeiros equipamentos, e uma boa equipe. "Acho que a equipe e uma ideia simples e bem executada são a força do videoclipe independente e com pouco recurso".
Ainda vale a pena fazer videoclipes?
Leticiah acredita ser importante para o artista produzir videoclipes, mas não imprescindível. "Em tempos de TikTok, reels e canva, ter um visual é necessário, mas não sei se é preciso ter o videoclipe. Por conta desse imediatismo, não sei se, no primeiro momento, o investimento é tão necessário". Gabiru concorda que hoje o visualizer é uma saída criativa, já que não exige grande estrutura e nem muito tempo. "O videoclipe constrói uma persona para o artista, e por isso é tão importante a permanência dele. Mas o visualizer é um caminho para se manter nesse universo", diz ela. Já Isis acredita que é a partir do videoclipe que se dá a conexão com o público. "Assim se entende a estética, o trabalho e a sacada do artista por trás daquele som."
Paciência com quem tá começando
Se você sempre quis se jogar no mundo dos videoclipes e não sabe por onde começar, o primeiro passo, segundo Leticiah, é se planejar. Depois, arriscar. "Quanto mais você trabalha, melhor fica. Então vai lá e faz." E, para conseguir realizar, Gabiru acredita ser importante se valorizar. "Valorizar a sua história, o seu conteúdo, a época em que você vive, o que você aprendeu e trocou com outras pessoas. A gente pensa a todo momento na consequência do trabalho, porque videoclipes são efêmeros. Mas como a gente pode trazer um peso para que ele seja lembrado?", diz ela.
Isis aconselha os artistas a não se venderem a uma estética atual. "Eu diria para ver o videoclipe como algo atemporal. Seu trabalho tem que ser vanguardista também. Depois de 'O Clã', eu criei um movimento, eu trouxe o cangaço de volta. Então, crie um movimento, uma estética e um desejo dessa estética. Tenha boas histórias, novas estéticas, novas visões", diz.
Ok, mas seu primeiro videoclipe pode ficar ruim? Pode. E aí vem o sábio conselho de Leticiah. "Toda vez que você fizer um trabalho e se sentir mal, vá fuçar o primeiro trabalho de alguém que você gosta. É normal a gente sempre querer fazer melhor, mas é preciso mesmo colocar o videoclipe no mundo".
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Créditos imagens (em ordem):
1 a 6: Isis Broken
7 a 18: Leticia F
19 a 35: CeGê
36 a 41: prints papo remoto