Rider #Dáprafazer: Masterclass Emicida
Os corres, dificuldades e inspirações da carreira de um dos mais respeitados artistas brasileiros
Publicado em 02/2017
Uma galera considera Emicida um rapper. Para outros ele é empresário. No Instagram, se define como “realizador de coisas impossíveis”. Nesta semana, em uma masterclass promovida pela Rider no Rio de Janeiro, ele falou sobre como é a vida de um fazedor.
Em duas horas de conversa, o cara do bairro do Cachoeira, em São Paulo, contou histórias sobre suas primeiras rimas, sua paixão pelo rap e os primórdios da Laboratório Fantasma, sua empresa que nasceu dentro de casa, com o irmão Fióti e mais alguns amigos, e hoje é uma mistura de produtora, selo musical, marca de moda e o que mais for possível realizar. E eles sonham alto e sabem muito bem o que estão fazendo - mesmo quando não sabem o que estão fazendo. Se liga só.
Na quebrada
“Com 14 anos eu recebi um panfleto de político que dizia que aquela região onde eu morava tinha 300 mil pessoas. O que 300 mil pessoas significam? Como conectar essas 300 mil pessoas? Queria mostrar para essas 300 mil pessoas que elas tinham valor, mesmo sem saber como eu faria isso. E a música rap estava presente. (...)
Tinha um cara que fazia uns eventos lá na minha quebrada que a gente enchia o saco pra ele colocar a gente pra tocar. E ele perguntava por que gente não fazia música que nem o Calypso, que era mais fácil (de arrumar show). Só que a gente não tá interessado em fazer o caminho mais fácil, a gente tá interessado em fazer o caminho mais sólido.”
A Galeria do Rock e o Mano Brown
“Tem um lugar lá em São Paulo que chama Galeria do Rock. Tem umas lojas de skate, umas coisas de street art, loja de roupa, um ambiente jovem. O único lazer que a gente tinha lá era ficar vendo as vitrines. E aquilo era inspirador pra nós. De alguma maneira a gente acreditava que a atmosfera do lugar, mesmo não podendo estar lá consumindo que nem aquelas pessoas, era inspiradora. A gente ficava horas e horas ali, cabulava aula e ficava o dia inteiro. E também porque vira e mexe a gente encontrava uma galera do Racionais. A gente via o KL Jay e ficava seguindo ele: ‘Caraaaaca! o KL Jay existe!’. O Brown a gente nunca viu lá na Galeria.
Mas também no dia que vimos o Brown até perdemos o ônibus pra voltar pra casa. No Rio de Janeiro esse rolê das batalhas de freestyle é mais irreverente, em São Paulo a galera é sisuda. Mas nós não curtíamos ficar fazendo essa cara de mau e éramos tirados. Sabe como chamavam a gente? Mochilinha.Porque nós estávamos sempre fugidos da escola ou do trampo, então estávamos sempre com uma mochilinha carregando marmita ou livro. Aí a gente emendava: cabulava aula, ficava por ali à tarde, comia um churrasco grego e esperava dar a hora de uma sessão de batalha na galeria. E um belo dia o Brown colou no nosso rolê. Nós ficamos foda. Ficamos falando dele e até perdemos o último busão para voltar pra casa. Tivemos que dormir lá no terminal.”
Primeiros discos
“A gente cresceu vendo Leandro e Leonardo indo no Faustão e vendendo 20 milhões de cópias, ganhando disco de ouro e o caralho a quatro. E aí bem na nossa vez não vende mais disco. Pensei: ‘nós vamos ser o avesso do avesso’.
Um dia saiu uma matéria no jornal falando que seis milhões de pessoas tinham aderido à pirataria, e aí eu falei: ‘é nesse universo que a gente vai entrar’. Porque é o seguinte: lá no Cachoeira, em 2017, não tem uma loja de disco. E as pessoas gostam de música. O mais próximo de uma loja de disco que tem lá é uma barraca de CD pirata de um parceiro nosso, que a gente chama de Centro Cultural. (...)
A primeira música a gente lançou quando nome nem era Laboratório Fantasma, era Na Humilde Crew, um coletivo. Éramos eu, Rashid, Projota, Fióti, Marcelo e alguns outros camaradas que eram DJs. A forma que a gente encontrou de fazer um CD e levar ele para as pessoas a um preço acessível foi a gente fazer tudo. Comprar o CD, envelope de carta e carimbar: ‘Na Humilde Apresenta: Emicida - Triunfo’. O preço final que a gente conseguiu chegar foi R$ 3. Era um CD muito feinho, as pessoas compravam por amor e pela fé. Fizemos 700 cópias. Juntamos R$ 2100, que voaram em esfiha do Habib’s. Três noites ostentando aquelas taças de sundae, tá ligado?
Aí vimos que tinha como baratear ainda mais. Queríamos produzir mais rápido, com mais música, porque o cara da barraca vendia 200 músicas por cinco conto, como eu vou vender uma música do Emicida por R$ 3? A gente precisava fazer mais. Para fazer mais, precisava comprar uma daquelas gravadoras que gravava CD em série, uns 10 de uma vez. Mas eu, na inocência, não sabia que era difícil conseguir. Acabamos encontrando um lugar em Santo André que vendia copiadora de CD, mas custava R$ 1790. Pedi para usar o cartão de crédito de um amigo e compramos.
Glória a Deus, passaram 15 dias e telefone tocou, não sei como. Alguém ligou chamando para abrir show do Marcelo D2 e tinha R$ 4 mil de cachê. Eu nunca nem tinha ganhado cachê, mano! QUATRO MIL?! Cê é loko. Com R$ 4 mil, naquela época, eu cantava o resto do ano.”
Descrença vira convicção
“Nós partimos de um lugar da sociedade de muita descrença, muita desilusão, muita miséria. Tanto financeira como espiritual, porque uma miséria chama a outra. A primeira coisa que a estrutura da sociedade faz é te fazer acreditar que não é possível. Pela cara de vocês eu vejo que essa coisa de ser um fazedor não é uma opção: é isso ou ninguém faz. Foi o que aconteceu com a gente.
Faz 15 anos que a gente está nesse corre, um corre baseado nas coisas que a gente acreditou que fossem impossíveis. A gente nunca pensou em abrir uma empresa, nunca pensou em ser empresário e nem em ser chamado de empresário. Porque a gente cresceu sem ver uma pessoa parecida com a gente ser empresário, tá ligado? A gente não tinha essa referência. A gente só não queria ser a única coisa que empurravam para que a gente fosse. O abismo, o escuro, a dúvida eram muito melhores do que aquela certeza que tava do meu lado. (...)
A gente foi construindo o bagulho com os nãos que a gente tinha, com o medo que a gente tinha. Até virar uma empresa, foi uma coisa que demorou. Nós começamos a chamar de empresa uns três anos depois que as pessoas começaram a nos chamar de firma. Porque, até então, nós falávamos que a Laboratório Fantasma era um barato que nós tínhamos, um barato só nosso. ‘Ah, nós colamos lá, fazemos nossos CDs, nossas camisetas e é isso.’
Graças a Deus, depois do primeiro ano já não precisávamos mais do investimento externo.
A gente era tão doido que fazia a conta de quantos CDs a gente ia vender quando tivéssemos 30 anos. A gente nem pensava em show, desconsideramos a internet. A gente estava tão noiado em vender disco que colocava vários na mochila e saía na rua para vender.”
Como faz para vender show?
"A gente não sabia vender show. O cara falava que queria show, a gente falava que custava mil reais e ficava chocado que acreditavam e topavam. (...) A gente partia do básico, que nem camelô: se eu comprei por dois, não posso vender por um. Fazia as contas básicas de custos de quem ia, equipamento, passagem e tudo mais e colocava um preço. (...)
Rashid ficou um tempo vendendo show, mas ele não era bom. Vendeu um show que éramos nós e mais uns quatro amigos por R$ 500. Em Curitiba. HAHAHA Aí colocamos ele para atender fã, porque ele é um cara simpático.”
O início da LAB
“As camisetas surgiram de uma necessidade que foi a seguinte: ninguém comprava mais CD e a conta precisava fechar. Como fazer o bagulho fechar? Vamos fazer umas camisetas! Os roqueiros fazem camiseta.
Éramos eu e Fióti mandando CD e camiseta para o Brasil inteiro pelo correio. Mas aí a gente descobriu que não podia enviar camiseta por carta social. Descobriu porque cheguei lá nos Correios com 15 camisetas e me disseram que não podia, que era outro processo e tal. Aí, andando pelo centro, entrei num sebo, vi os discos de vinil e tive a ideia. Comprei quinze discos, fui para casa, peguei as camisetas e dobrei, passei, passei, passei, passei até ela caber na capa do disco. E foi! Cheguei lá e falei para a tia dos Correios que eu era artista e estava mandando disco para jornalista ouvir. As capas todas fofinhas e ela nem sentiu. Hahahaha As primeiras pessoas que receberam camiseta nossa receberam na capa de disco. E nem sabiam o porquê, deviam achar que a gente era hipster. Mas era só para não pagar a taxa dos correios, porque a gente não tinha grana para isso. (...)
Uma vez um cara me disse uma parada muito foda: o hip hop não tem um bilionário porque a primeira coisa que o hip hop faz quando ascende é botar uma camiseta do Iron Maiden e não do Public Enemy. Aí você vê as marcas do Ozzy Osbourne ou do Metallica fortonas e os caras do rap, quando ascendem, usam a Nike. Aí a gente se ligou e passou a usar só os nossos bagulhos. E começaram a zoar que a gente era tipo a Turma da Mônica. hahaha Mas foi com essa parada que nós passamos por todos os meios de comunicação do Brasil mostrando que a gente estava fazendo música, roupa e lutando pela nossa identidade. Brigando pela nossa identidade. Que a gente queria ser quem a gente realmente é, que a gente não ia entrar num padrão.”
LAB na São Paulo Fashion Week
“Ano passado a gente se ligou que precisava dar dois passos: um era fazer um filme, entrar na TV com ficção, que é uma paixão nossa. E o outro era fazer roupa. A gente já tinha roupa, moletom, boné, já conhecia o João Pimenta e já tinha cruzado com o Paulo Borges (diretor-geral da São Paulo Fashion Week). Pedimos para o João desenhar mais umas roupas e conversamos com o Paulo, que abriu todas as portas para nós. Quando apresentamos o projeto da LAB dar esse passo, ele ficou doido.
'Nós não vamos parar até meter 30 pretos vivos na capa do jornal.' Essa era a meta do ano passado. E isso foi um bagulho que foi foda. Ficamos quatro meses desenvolvendo o desfile. E eu juro para vocês, do fundo do meu coração: em momento algum a gente fez uma reflexão. A gente só tinha uma conta meio óbvia, que era: se a gente chegar lá, a gente vai encher aquele bagulho de preto. Essa era uma conta fácil de fazer. A gente estava tão preocupado em cortar tecido, costurar, fazer estampa, contratar modelo, ‘será que isso vai estar pronto pra comprar depois do desfile?’... A gente estava tão focado na produção que a ficha só caiu no ensaio do desfile. Quando a música subiu e eu vi a negrada entrando e pensei: “caralho, isso aqui vai ser mó pancada”. Enchi o olho de água. Porque eu comecei a olhar o bagulho e era de verdade.
Ah, uma coisa que ninguém sabe que rolou: o segurança me barrou na hora de entrar no meu desfile. HAHAHAHA Aí olhei para um cara que tava lá dentro e sabia quem eu era e ele avisou o cara.
O desfile rolou e a gente ficou feliz para caralho na hora. Deu tudo certo: a luz entrou direito, o vídeo entrou direito, os modelos entraram no tempo certinho. Tudo rolou perfeito. Quando acabou aquela parada, a gente estava exausto e ficou todo mundo rindo no backstage. (...)
Passou um dia, passaram dois dias e estava todo mundo falando (do desfile). A gente estava feliz pra caralho. Conseguimos colocar trinta pretos vivos na capa do jornal. O bagulho correu tanto que com dois dias o vídeo do desfile tinha um milhão de visualizações. O vídeo de um desfile de moda da maior semana de moda da América Latina. Sabe quantos vídeos bateram essa meta? Nenhum. Nunca um vídeo foi tão visto na história do (São Paulo) fashion week.”
Polêmica pós-fashion week
“Aí, como nunca nada é fácil pra nós, quando chega uma pá de preto falando de coisa de preto e bate um milhão em dois dias, tem que botar um problema. Aí vieram falar: “Pô, mas isso aí não tá excluindo a favela?”
A peça mais cara da coleção custava R$ 329 reais, que as pessoas podem parcelar em 12 vezes. E durante dois meses do ano a gente faz promoção. (...) Tem marca que faz uns tênis muito feios e vende por mil reais. E a favela compra!
Ninguém que colocou essa pauta considerou o nosso background. Isso nunca foi uma questão porque a roupa que custa mais caro para fazer, vai custar mais caro. Já fez a conta para saber de onde vem a blusa que tu comprou por R$ 9,90? Já pensou em que condições trabalha a tiazinha que costurou uma blusa de R$ 9,90? Nós chegamos onde nós chegamos com as mesmas costureiras de 15 anos atrás. As mesmas tiazinhas, que estavam lá no desfile chorando.”
Videoclipes
“Um dia um cara chamado Fred Ouro Preto ligou querendo saber se a gente queria fazer clipe. O não nós já tínhamos, então topamos. (...) A gente lançou o barato, o clipe entrou na MTV e fomos indicados a duas categorias no VMB 2009, Rap e Aposta. Não ganhamos nada, mas foi bom pra baixar a nossa bola. Para mostrar que a gente tinha que construir o nosso ali na calçada. Aí a gente abraçou esse negócio mesmo, sentamos na calçada e continuamos. Em 2011 a gente ganhou Artista do Ano e Vídeo do Ano. Vídeo é uma parada muito foda e para nós porque tem uma parada política muito forte, você literalmente consegue colocar um preto na televisão. A gente sempre entendeu isso, por isso sempre teve uma preocupação foda com vídeo, com as músicas que a gente escolheu para virar vídeo.”
Ser independente, Chorão e o Charlie Brown Jr.
“Uma coisa que persegue a gente é que quando o bagulho fica foda, a galera acha que já não é nosso. Quando fica bom, acham que alguém vira dono. A galera não acreditava que a gente era independente, falava que era uma estratégia de uma gravadora para fingir que era independente.
Um dia encontrei o Chorão, ele era um cara muito especial, e quando ele soube que a gente era independente, começou a chamar para abrir show do Charlie Brown Jr. Foi levando a gente para um outro universo, apresentou para uma molecada que não conhecia o nosso trampo. Isso fez a gente se conectar com outros universos.”
Chegar no camelô é foda
“Para fechar o ano passado, coroar mesmo, a gente conseguiu fazer um documentário chamado ‘Sobre Noiz’, que conta a história da gravação do disco na África. Ano passado a gente foi indicado ao Grammy, eu fiquei feliz, mas o barato que eu emocionei de verdade foi quando minha amiga, lá do Jardim Peri (Zona Norte de São Paulo), tirou uma foto de uma banca de CD pirata e estava lá pendurado: ‘Sobre Noiz’. Mano, essa foi a chave de ouro que fechou o ano passado.
Porque é o seguinte: não existe camelô alternativo. Você não chega na barraca de CD e tem o CD do Arcade Fire. Quando ele põe ali, é porque tá vendendo. Essa foi uma coroação muito significativa para a gente porque isso, mais do que qualquer outra coisa, mostra que a gente continua se comunicando com quem a gente quer se comunicar, que é com um Brasil que, infelizmente, ainda não tá na televisão.”
O que vem
“Nos próximos anos a gente vai continuar teimoso. Vai tentar entrar no universo da ficção, na televisão, e no universo da literatura com mais profundidade Fomos só uns caras que nasceram com um pensamento que é: ou nós fazemos isso ou ninguém vai fazer porra nenhuma por nós.”