Rabisco aguda e virtualmente essa tela em branco. Procuro por coisas que não vem, então fico com o que é. Tem sido: intenso, bom, imenso, assustador. Uma oportunidade, um desafio, uma lástima, um risco. Tenho sido. Faço o que posso, me desfaço em tanto laço. Tenho me concentrado em ser. Ser que é tanta coisa: ser gente, ser bicho, ser mente, ser espírito, ser corpo, ser casa, ser sozinha, ser relação. Vulnerabilidade e força, caos e ordem, escassez e sobra. Vou fazendo dobras e tecendo sentidos, compondo uma trama que deseja aquilo que é possível. Dou contorno para um rosto novo, que eu não sei de quem é e sei que sou eu.
Felina, tenho tomado longos banhos de sol de patas dadas com meus irmãos. Me alongo, vez em quando alcanço o céu com os pés e sempre toco o chão com as mãos. Cachorro olhando para baixo. Penso na Terra como morada, na casa como morada, no corpo como morada, no outro como morada. Ferida, vou me avizinhando de mim mesma, da minha companheira, dos meus hábitos, daquelas e daqueles que me habitam em saudade e sonho.
O sistema me enjoa, me mastiga, me vomita. Me sinto grávida de mim. Gesto um silêncio profundo, um vazio-fértil. A ausência de som que habita um tambor prestes à ser rompida pelo toque. Lamacenta, carrego dentro uma possibilidade. Prestes à arrebentar, concentro. Medito, observo e escuto. Choro muito. Tenho medo de perder as velhas e velhos da minha vida, da vida de quem amo, minha própria velhice. Penso em mais de 10 mil nomes que não serão pronunciados em respeito e luto. O presente se apresenta como um cantor
mudo.
Mudo eu. Pego os frutos da terra e sorvo um leite que vem das divinas tetas de um mundo que não só virá como já me alimenta. Ritualizo o cotidiano em repetições que ecoam mudanças estruturais. Tiro o tempo para dançar. Cozinho poções em fogo baixo, como cores e enfeitiço o futuro porque há de se honrar aí também os velhos. O futuro é uma velha contando uma história tão antiga quanto o tempo. Apesar do meu lamento, insisto em uma esperança que se equilibra e teima. Queima na gente uma febre urgente em curar. Transformo palavra em encanto para que esse canto possa ecoar. Transbordo em águas tranquilas, temo todo o mal, mas me vingo através de uma dignidade ímpar. O amanhã será.