Uma tarde com Nomi Ruiz, no Rio de Janeiro
Horas antes do MECAUrca, batemos um papo e fizemos um passeio com a cantora até a Casa Nem
Publicado em 11/2017
Foi na hora: assim que viu o nome de Nomi Ruiz no line-up do MECAUrca, Clarissa Ribeiro, nossa super editora de vídeo, deu um grito de felicidade por poder ver de perto o seu ídolo. E já saiu mandando mensagem pra Bia Medeiros pra fazer um zine especial com a cantora americana trans e babadeira – este aqui que você tá lendo mesmo.
A galera do MECA comprou a ideia (valeu, gente! <3), Nomi também. Então, horas antes de subir ao palco montado no Morro da Urca, no último sábado, ela entrou num táxi com Clarissa e nosso fotógrafo Derek Mangabeira para dar um rolezinho pela cidade. Tudo foi combinado pelo WhatsApp, tipo migas mesmo. A cantora é muito tranquila, acessível e querida. O local escolhido pro papo foi a Casa Nem, centro de acolhida e formação para pessoas LGBT com foco na população trans, que fica naquele pedacinho entre a Glória e a Lapa, no centro do Rio.
Por acaso, quando tinha 13 anos, Nomi frequentou espaço parecido, o Hetrick-Martin Institute, que fica na Harvey Milk Schoolum, em Nova York, sua cidade natal, e foi nessa época que ela se descobriu uma mulher trans.
Mais do que uma entrevista, a tarde de sábado virou uma festa, uma confraternização deliciosa com todas as meninas da Casa Nem, que, é claro, se reuniram pra conhecer a artista, ao som da qual já dançaram muito nas festas por lá.
As perguntas, aliás, foram formuladas por três fãs especiais de Nomi: Mayara Cajueiro, Ana Giselle e Maria Clara Araújo, também mulheres trans, que arrasaram nas pautas - como você pode ver abaixo.
Mayara Cajueiro (@Mayacajueiro)
Sou carioca, moro em Recife e estou chorando porque não pude ver a Nomi na minha cidade. Sou muito fã dela e das suas músicas e acho ótimo ter travestis nos representando também no mundo da música. Sou comissária de bordo e DJ nas horas vagas. Minhas perguntas são um pouco relacionadas com o que estudo e amo.
Você viaja bastante, vive no meio dos fusos e ultrapassando fronteiras. Como você lida com essa mudança constante de culturas? Essa é a melhor parte de viajar, realmente poder ver como as outras pessoas vivem, ver como somos todos tão parecidos. Eu rodo o mundo. Todos têm ideias pré-concebidas de como as outras culturas são, como as outras pessoas do mundo são, mas todos têm o mesmo coração, na verdade. Isso sempre me lembra o quanto sou sortuda por ter a música, porque ela é como uma linguagem universal. Como a minha música, de Nova York e do Brooklyn, um lugar pequeno, atinge pessoas ao redor do mundo.
Como os lugares pelo qual você passou te influenciaram e te transformaram? Definitivamente, musicalmente. Sons diferentes, ritmos diferentes, músicas típicas diferentes de países diferentes realmente me influenciam, afetam o meu processo de compor músicas, meu estilo e meu coração. Acho que sou muito sortuda, acho que sou muito amada. Há tanto amor pelo mundo! Eu fiz amigos em diferentes países que se tornaram a minha família. Ter isso é muito poderoso.
Em quais culturas você se viu mais livre e em quais você se sentiu menos aceita? Acho que na Grécia. Eu tenho uma conexão grande com a Grécia, tenho muitos amigos lá e é um lugar onde me sinto muito segura. Acho que existe alguma coisa diferente na cultura grega, como se não houvesse o perigo eminente em qualquer lugar, andando na rua, sabe? Talvez as pessoas tenham pontos de vista diferentes, mas acho que eles guardam isso para eles mesmos. Se eles não concordam com alguma coisa, só deixam isso reservado para dentro das próprias casas ou algo do tipo. Onde não me senti aceita? Talvez em Nova York, de onde eu sou, que pode ser uma cidade dura. Crescer lá foi muito difícil, mas isso te torna mais forte, sabe? Passar por essas coisas e viver em uma cidade difícil definitivamente me deixou mais forte.
Por fim, qual sua concepção do que é ser trans pelo mundo? É interessante ver como países diferentes têm níveis diferentes de evolução com relação à política e à visão das pessoas sobre nós, pessoas que de fato sabem que nós existimos. Nos Estados Unidos, estamos neste momento agora em que existe muito barulho sobre a visibilidade trans e acho que estamos apenas começando a lidar com outras questões. E se você olhar para outro lugar, como o Brasil, percebe que já está começando de um jeito difícil, logo no início, e há muito mais coisa para ser motivo de luta. Então, é doido como em uma pauta você pode estar em um país que é mais avançado, mas aí viaja para outro país e ele está começando do começo. Isso é muito complicado.
Ana Giselle (@anagiza)
Me identifico enquanto transalien, que é a junção de uma transexual e uma alienígena, que dá vida a uma identidade pós-humana, na qual me aproprio dos conceitos de anormalidade caracterizados socialmente acerca de pessoas trans e ressignifico os pressupostos equivocados de abjeção e do que é incomum. Ser transalien é construir um corpo livre de padrões e cis-normatividades, ou simplesmente Ana Giselle, artista visual, DJ, corpo-espetáculo, monstra e criatura da noite.
Gostaria de falar sobre Anohni. Como surgiu a ideia da parceria em “Prisioner of love” e, futuramente, no projeto da Anohni, o “Turning”? Bem, nós nos conhecemos por conta do “Turning”, ele veio antes, com uma grande turnê. Ela me pediu para ser uma das modelos, começamos uma amizade forte e continuamos sendo amigas. Quando estava trabalhando no meu álbum, sabia que queria ela cantando e que queria mais, algo bem diferente do que ela já tinha feito, algo denso e cheio de sentimento. Então, a convidei, e ela disse sim. Depois disso, “Turning” virou um projeto maior, a carreira dela cresceu muito, no mundo todo.
O que você pensa sobre a importância da representatividade de pessoas trans na música? Acho que é importante pela visibilidade. Hollywood está contando as nossas histórias agora e a indústria musical é mais difícil. Música é um caminho, um veículo, tão importante para contar histórias! As pessoas realmente escutam, colocam seus fones de ouvido, ouvem as letras, realmente transmitimos mensagens poderosas. Muitos artistas conseguem usá-la de forma bem pensada. Política é uma questão de relacionamentos, e é justo que nós tenhamos nosso rosto e nossa história para nos aproximarmos das pessoas e da cultura.
Quando vem o novo álbum solo? Tem projetos futuros pro Jessica 6? Sim, temos um novo álbum do Jessica 6 chegando em janeiro. Ano que vem teremos um novo álbum do Jessica 6 e também terei um disco solo, que estou terminando agora. O som está bem diferente, calmo e doce, mais corajoso.
Maria Clara Araújo (@afrotranscendente)
Sou travesti, escritora e estudante de Pedagogia da Universidade Federal de Pernambuco, acadêmica-ativista que tem pensado qual o lugar da travesti no Brasil, o país que mais mata travestis e mulheres trans no mundo.
Como ser uma cantora-artista-performer implica no processo de humanização que você vive/luta por, assim como outras mulheres trans? Com estar visível nos palcos contribui dentro de um processo maior, que é a sua luta contínua e de outras por se humanizar? Falo humanização entendendo que pessoas trans fazem parte de um grupo que precisa lutar pelo seu reconhecimento enquanto seres humanos - precisando, por exemplo, justificar que podemos, sim, usar banheiros sanitários. Quando falamos que pessoas trans não são reconhecidas como seres humanos, o que está sendo debatido é a forma precária com que nossas vidas são vividas. Acho que as pessoas, quando ouvem a minha voz e me veem... é algo muito íntimo. As pessoas vão a um show ou até assistem um vídeo e escutam a voz de um ser humano, escutam alguém cantando algo que realmente podem sentir as palavras, a história. Então, eu sinto que muitas pessoas me dizem isso. Canto sobre os meus problemas e minha dor, sempre penso que sou tão isolada e sozinha. Geralmente, estou sozinha no meu quarto e contando a minha história. Quando eu canto e as pessoas reagem à música, posso ver como isso as toca, é muito poderoso se conectar com as pessoas e sensibilizá-las. Como eu disse, música é universal, então o meu público também é hétero, gay, trans, cis. Primeiro eles ouvem a música e as palavras, é algo desconectado do corpo, é um tipo de coisa espiritual, não existe um corpo. É a forma de chegar a um público e fazê-lo entender a nossa situação, a nossa história.
O quão importante para você é vir ao Brasil, o país que mais mata mulheres trans no mundo? Eu soube desse dado, e é bizarro. Eu realmente acho que devemos começar a ser melhores com os nossos caras. Os homens são realmente o problema, não é uma questão tóxica em massa. Especialmente na América do Sul, eles não podem ter sentimentos, ser emotivos, ter empatia pelas outras pessoas, serem femininos ou até aceitar seus próprios corpos, sexo, sexualidade, qualquer orientação sexual. E quando homens são tão reprimidos, isso aparece de forma violenta, de jeitos mais estranhos, eles precisam nos ver sofrer, mulheres trans, mulheres em geral, todas nós sofremos nas mãos de homens que sofrem com a masculinidade tóxica. Então, eu sinto como se nós tivéssemos que, de alguma forma, descobrir uma forma de sermos melhores com os nossos meninos quando eles estão crescendo. E não sei como podemos curar os homens que já são perturbados hoje.
Clarissa: É isso o que a Maria diz. Até no início da educação nós precisamos ter políticas para a aceitação de pessoas trans, pessoas LGBT, mas também para educar os jovens homens sobre como lidar com quem é diferente.
Nomi: É realmente a raiz de tantos problemas! Também acho que na política são eles que têm poder, são eles que estão em todos os altos cargos.
Clarissa: Até agora.
Nomi: Até agora. Derruba todo mundo! Então, sim, eu acho que no futuro certamente teremos que encontrar uma forma de sermos melhores com os nossos meninos. Porque nós temos umas às outras, olha esse lugar! Nós cuidamos umas das outras não importa a situação, não importa o motivo. Acho que homens não têm amigos de verdade, eles não são apegados. Homens heterossexuais não têm alguém para conversar, então isso aparece em forma de violência. É muito triste.
Você percebe a sua vinda ao Brasil como um ato político e de resistência, além de, obviamente, uma chance de se conectar com seus fãs daqui e vivenciar um pouco o que é a América do Sul? É engraçado, eu não tenho nenhum controle sobre isso. Minha existência é um ato político, só viver a minha vida é resistir, é dizer: “olha, eu vou viver a minha verdade”. E é neste lugar que, muitas vezes, as pessoas querem nos oprimir, porque elas não querem saber que, como seres humanos, nós temos o poder de sermos o que quisermos. Elas querem colocar seus medos em alguma coisa. Elas não querem ter responsabilidade sobre isso. Nós todos temos o controle para sermos nós mesmos, viver a nossa verdade. Nós somos o maior exemplo visual disso. É como se, ao nos ver, você não tivesse outra escolha a não ser aceitar o fato de que você tem controle sobre a sua vida. Então, estar no palco e ser vista será sempre, como uma mulher com experiência trans, algo que é político, independente de eu me considerar uma ativista, uma política, ou não. É o que é e sempre será. Sou feliz porque meu trabalho pode realmente ter esse efeito.
Clarissa: Eu sinto a mesma coisa quando estou andando na rua com a minha namorada. Acho que só estarmos de mãos dadas é tão grande, é um ato político.
Nomi: E a coisa mais simples, a coisa que é tão natural, tão sem esforço, é “boooom”: como uma bomba.
Derek: Eu consigo me identificar totalmente com o que você está falando porque ser um homem negro em festas brancas é um ato político. Quando você é gay, só estar ali...
Clarissa: Ocupar esse espaço que agora é destinado a você.
Nomi: Exatamente, isso é uma coisa enorme a se fazer. O efeito é como uma onda, você pode não saber ou não ver como, mas ele afeta as pessoas.
Clarissa: Eu também quero fazer uma pergunta, é a última, prometo. Eu amo muito o clipe de “Animal feelings”. Quando assisti pela primeira vez, tive que rever umas três vezes porque é muita informação! Só tem você nele, mas a maquiagem, o conceito, a edição com aqueles retângulos... Como foi a sua participação na criação desse conceito visual e como foi para você aparecer nesse clipe com um tipo de visual sem gênero – sem cabelo, uma coisa meio alien futurista?
Foi incrível. E também foi assustador porque foi a primeira vez em que fiz isso. Sempre quis fazer algo assim, quando conversamos sobre o vídeo eu disse que gostaria de experimentar algumas ideias que tive com a minha imagem, algo mais etéreo e tal. Estava ficando cansada de ser de qualquer gênero, de parecer de um jeito específico, sentindo a pressão de parecer de um jeito específico como uma garota na música. Estava nesse momento e queria me desvencilhar do gênero e só sonhar com algo fora do corpo. Só queria escapar das pressões do mundo me fazendo sentir que devo ter um certo look, uma certa imagem, ou até como devo expressar minha feminilidade. Às vezes eu sinto a pressão de expressar a feminilidade de um jeito típico, meio comercial. E esse é meu momento de mostrar minha percepção de como me sinto um ser feminino. Então, foi assustador, mas tínhamos um bom time, uma equipe bem pequena de pessoas que eu confiava, e isso foi muito libertador. Me senti muito empoderada por esse vídeo. Vou fazer outro meio parecido, mas um pouco diferente, está saindo com uma vibe meio animalesca.