Fruição Funkeira volume 2
Para quem não pode pegar doces, mas pode comer
Publicado em 09/2020
Se o chão de Ogum e o progresso representam adultos sambistas, o ar dos Ibeji e a infância representam crianças funkeiras. Se 23 de abril é feijoada, pandeiro, roda de samba, salve Jorge e Ògún ieé, 27 de setembro é doce, brinquedo, Baile Funk, viva São Cosme e São Damião e Bejiróó.
Quem não gosta de comer doces? “Vendo Chokito/Maron-gleivêi/Tchurun-marum-glé-vê/Lá-lá-lá-lá/Vendo bala/No trabalho”. MC Magalhães, com “Rap do Trabalhador”, é música para lembrar os anos 90 e aqueles rolé na pista, de pegar doces com a patota de São Comes e São Damião: irmãos gêmeos que fazem do Brasil uma criança funkeira.
Em suas gerações de novos seres, com todo tipo de gente, das mais novas as mais antigas, sejam elas que comem ou as que sentem fome, o funk do Brasil é trilha sonora oficial do dia de comer doces. De tudo, a criança brasileira (funkeira) que não pôde comer doce de Cosme e Damião, não receberá o carinho da rua. Aliás, pra quem não pode pegar doce, mas poderão comer, vocês têm pensado nessa Ibejada nos tempos de pandemia por COVID-19?
“Faça uma lista com o nome dos amigos de infância/Mas não chore não”. Cidinho General lembra que poucos no Brasil têm a possibilidade de ser criança. Não é por menos a importância do dia das crianças, a devoção por Nossa Senhora Aparecida em 12 de outubro. A tradição festiva do mundo desse dito feriado é aberta por Comes e Damião, nomes que somam com o sincrético entre cachaça e água benta, o vadiar como necessidade humana, afinal, são 15 dias no direito de comer doces.
Nesse tempo, o sonho funkeiro fica no ar, no coletivo, porque é o mesmo sonho brasileiro: sair de casa e voltar bem. Contudo, hoje, o sonho funkeiro não poderá ser realizado, ainda que não deixe de ser sonhado. Não terá, ou pelo menos não deveria ter, dá melhor forma, os Bailes Funks de favela especial para as crianças. O São Cosme e São Damião de 2020 mostra que as crianças brasileiras estão proibidas de comerem doces na rua, e escracha o pesadelo funkeiro/brasileiro: a fome.
Silêncio que precede o esporro, fome é som do ruído em efeito looping, causado pelo ronco da barriga faminta ouvida após a queda de luz em um Baile Funk lotado. Por agora, é preciso sonhar ouvindo nossos pesadelos, os gritos que saem do silêncio da fome e do racismo, os choros berrados diante de nossas escutas contagiadas por infecções passadas, causadoras dos danos presentes, emergentes para tratamentos futuros.
Seguimos pedindo para Doum, depois de seu passeio no cavalo de Ogum, que siga olhando para as crianças brasileiras funkeiras, sejam as que pegarão doces nesse momento do COVID-19, ou não. Porque elas tão tudo querendo o doce da rua, realizar sonhos, no mínimo aquele padrão, de ir para um Baile Funk inesquecível e voltar pra casa bem, junto de seus entes queridos.
*Samuel Lima é Doutorando em Educação (ProPEd-UERJ), Mestre em Cultura, Comunicação e Educação (FEBF-UERJ), Assistente Social (UNISUAM), produz o grupo de rap Antiéticos, e os funkeiros MC Beiblade e MC Robin Rude, junto a Lotação Records