Fruição Funkeira
Pele Funkeira, Máscaras da Cultura por Samuel Lima
Publicado em 08/2020
Som, dizem que nasci no movimento neoliberal dos anos 90. Mas não sei que porra é essa. Na real vim de antes. Tenho 50. É, coroa, mas na infinita duração cultural, e como dizem Claudinho (em memória) e Buchecha “nosso sonho não vai terminar”.
Bato de frente com regras. Encantado na Terra sou cria do Brasil como lugar de sabedorias não aceitas. Sobra bololô transacional, multicolorido, que vira Baile, lugar principal de meu corpo, a invocação negra, minha cor primeira. “Amar como ama um black, brother!”. Gerson King Combo é uma das partes principais do início da ética, a linguagem do Quilombo elaborada ainda mais antigamente, na descendência do samba.
Ruído, faço os MCs Cidinho (General) e Doca darem aulas de ouvir o mundo como se escuta música, a maior “editora de livros” que existe. Best seller, hit da alternativa resistência na miséria que me obrigam, aconteço por fatos das páginas brasileiras: “Pois moro na favela e sou muito desrespeitado, a tristeza e alegria aqui caminham lado a lado”.
Single, toco e trago a morte como se bebe ou se fuma. “Já pensou sem a cerveja e a maconha o que seria do mundo?”. A pergunta que faço com a rainha Deize Tigrona passa a visão da nossa existência, ainda que ela seja mortal: a liberdade. Duvida? Sem neurose, faz aí então uma busca online com o nome “Hayssa Alves de Souza Andrade”.
Viram? “Então, calmamente, respondo que há imbecis demais neste mundo. E já que o digo, vou tentar prová-lo”. Boladão né!? Lembra até os versos “Pra falar tem que provar/Pra dizer tem que saber” do meno MC PQD. E sabe quem disse? Frantz Omar Fanon (*1925 - +1961), martinicano, psiquiatra, filósofo e ponta firme do bonde que brota com nós, na busca de novas escritas das folhas da vida, através das diversidades e diferenças.
Em “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952), Fanon, para mim, na total cadência educativa, realiza seu livro como um “disco”, onde cada capítulo soa balada, as tracks que não faltam no kit da minha controladora AKAI MPD32. É o trem, o convite para dançar coreografias ousadas, Atlântica, profunda diante de uma afirmação: “o negro não é um homem”.
Fanon dá o papo reto sobre a vítima permanente da essência nacional, o preto. Ele explica, de passinho em passinho, que qualquer incompreensão negra, diante da razão branca, existirá pela “ausência de discernimento” qual o homem negro não é responsável e, por isso, os corre estariam nas meta de “desalienação”.
E se os pretinho não são considerados humanos, seu feminino, as pretinha, também não, e ambos vivem, como disse Fanon, a “descida aos verdadeiros Infernos”, a coisa de pele, “um espinho” enfiado “no coração do mundo”, já que existem homens (brancos, que não precisam anunciar a sua cor) e homens negros.
Mas Hayssa tem a pele escura? Não. A afirmação amplia a dúvida: como é tratado o feminino brasileiro? Mais questões surgem: o que acontece com o corpo da mulher no mundo? Hayssa é uma das muitas assassinadas no contexto de direitos iguais, aqueles que, segundo Fanon, são elaborados “em nome da inteligência e da filosofia”. Taras, fracassos, vícios da família patriarcal europeia, que tem como referência maior o homem branco cis, revelam a morte de Hayssa como genecofobia.
Sim, eu, o funk, colo no rolé e mostro que aqui, no Brasil, existe um medo cultural fudido de buceta. É isso memu pai, apesar de adorarmos elas nas nossas mixagens com todos os palavrões possíveis, esculachamos as xerecas naquela caôzada toda criada no meu lugar de berço, a cidade do Rio de Janeiro, a capital da mulata, o corpo de compasso importante para lombrarmos a democracia racial no Brasil, que insiste em esconder, ou até vender, em 3 por 10, ou 1 por 5, todo o sangue afro-ameríndio derramado como necessário na construção cidadã.
Foi essa pica das galáxias de casa-grande e senzala que fudeu geral, sem consentimento. Contudo, na descendência escravizada de corpos indígenas e, logo depois, de corpos africanos tirados de lá para cá, na formação do chamado Novo Mundo - e sequencialmente batizado continente americano -, o tal suave no intercâmbio sexual “especial” de mistura das etnias e culturas a partir do português, a língua oficial, dichava os proceder da assimilação, aculturação e acomodação brasileira, as violências sobre sua/nossa gente. É rapaziada, somos envolvidos nesses bagulho todo.
Essa conduta é maneira da gente pensar, a linguagem como conspiração. Fanon, chapa-quente, diz que devemos tratá-la entre “selva”, o “oral”, e a “metrópole”, o “racional”, e explica que quem “possui a linguagem possui, em contrapartida, o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito”. Esfrega-esfrega, rala-rala, mela-cueca, proibidão, putaria e, quem diria, o meu processo de libertação também produz Funk Gospel.
E esse outro salseiro, de preto funkeiro que usa cordão de pingente no peito com a “estrelinha de Davi”?! Tô dizendo, os meno colocam no pescoço a própria mira das armas de fogo fabricadas em Israel. Mais um processo de representação oferecida pelos arrombados patriotas, essa gente do bem. Nesse mundo, o ajuizado agride e radical é quem ama: com Fanon, posso oferecer minha fruição em otopatamar, cagando pra vanguarda e desenrolando com a sobrevivência.
“Sou mais um soldado sofredor que sofre e apanha pela cor/Mas quem vê nos olhos de um pobre menino, o sonho de ser um jogador/Ou uma menina sozinha e pequena que tem um sonho de cantar, virar modelo, popstar”. Guerreiro, MC Robin Rude explica que cachorros de rua ou domésticos, pássaros voando no céu ou na gaiola, formigas no grão de açúcar ou no pau-de-cana, não promovem guerras, mas sim o homem, o único animal que se acha diferente dos outros animais.
Existe uma guerra contra as mulheres brasileiras, o feminicídio e as variadas formas de misoginias localizadas no cotidiano do chão racista que, no Brasil, dizem que não existe. Não é geral, inclusive entre os(as) negros(as), que tão ligados a tal desfrute, o “benefício” de entender a existência colonial social da estrutura anti-negros(as). O racismo ecoa e mostra a heresia brasileira, o foco das sonoridades de Fanon: “tornar possível um encontro saudável entre o negro e o branco”.
“É chegada a hora os divergentes se juntar/Partirmos pro caô não há quem possa segurar/O problema não é meu nem seu/É nosso, não sabia?/Punhos cortando o ar mostram não somos minoria!”. Mano Teko lança sua fruição funkeira, a sensação de algo a ser, o sonho coletivo possivelmente silenciado, o lugar do ruído, das lutas, revoltas, quando as rebeliões das identidades se transformam em música.
O que, na cultura, incorpora mais a escuta de críticas contra a ausência de liberdade do que a música? Qual a música no Brasil que mais expõe a relação de censura ao ser ouvida? Namoral, sem miséria, sou o maior movimento cultural das juventudes brasileiras, porque comunico coisas minhas que são do planeta.
Música salva, e fechamos é com Menor do Chapa quando diz: “O Baile rola/Quem é contra mete o pé/Venha curtir/Com paz, amor e muita fé”. Sou música, mesmo que digam que não sou. Foda-se o certo e o errado passado que se elevam no agora, o holocausto diário do genocídio. Que vá pra casa do caralho o extirpe de mal podermos orar São Jorge, quem diga Ogum. Sou contra o estupro e esse ambiente sexual tóxico que mendiga carinho, ternura, e nos faz jogar fora as forças vitais de nossos quadris soltos, comumente hipersexualizados.
Fruição funkeira é aquilo que vai trazer a contingência histórica do mundo para o Brasil a partir da sua cultura jovem, o funk, eu mesmo, o próprio torso incorporado no autor do texto que você acabou de ler, aquilo que o fez sobreviver e buscar justiças sociais, nos sonhos coletivos com outros corpos sobreviventes, a partir de seu doutoramento em Educação, mandando todo esse papo.
Referências
Fanon, Frantz Omar. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
Samuel Lima é Doutorando em Educação (ProPEd-UERJ), Mestre em Cultura, Comunicação e Educação (FEBF-UERJ), Assistente Social (UNISUAM), produz o grupo de rap Antiéticos, e os funkeiros MC Beiblade e MC Robin Rude, junto a Lotação Records.