MULTIPLICIDADE É A VACINA
Festival se joga em edição virtual para mostrar mais uma vez que as artes curam (e libertam)
Publicado em 01/2021
Arte sempre foi vacina eficaz contra a doença do obscurantismo. A gente sabe disso. E a galera do Festival Multiplicidade também. Os caras estão há 16 anos imunizando nossas mentes com uma ultraconectividade de expressões, que vão do cinema à performance, do VJing às artes visuais, da música à arte digital, da vídeo-arte ao xamanismo. E é claro que diante do flerte com o breu proporcionado pela pandemia e por esse desgoverno, o Multiplicidade não ia deixar de acender seus pontos de luz.
Do dia 21 a 24 de janeiro, o festival vai realizar sua 16ª edição, em formato 100% digital. Ironicamente, o tema do evento vai dar uma ucranizada nas coisas, mas bebendo da fonte de Clarice Lispector, não da Sara Winter. “Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”: a frase da escritora, contida em seu romance de estreia, “Perto do coração selvagem” (1943), norteia a programação.
O teaser desta edição rolou lá em outubro de 2020, já com a pandemia comendo solta. Um papo-live com Filipe Cartaxo e Russo Passapusso, do BaianaSystem, além do vernissage digital do novo livro do festival, deram um gostinho do que estava por vir. E que agora vem aí, no canal do Multiplicidade no YouTube e nas redes do festival.
Nessa temporada, o Multiplicidade tem, pela primeira vez, a curadoria compartilhada. Além de Batman Zavareze, assinam a programação o jornalista e curador musical Carlos Albuquerque, o artista sonoro chileno Nico Espinoza, o DJ e produtor musical Nado Leal, o creative coder Clelio de Paula e a diretora criativa e curadora Amnah Asad.
A abertura acontece no dia 21, com uma performance musical com Tom Zé e um vídeo-mapping no Museu Nacional, participando do calendário comemorativo de 100 anos da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Nos dias 22 e 23 vão rolar apresentações de dez artistas nacionais e quatro internacionais com conteúdo 100% digital. Por fim, no dia 24 tem encerramento com uma performance única do artista japonês (fodão) Ryoji Ikeda.
E né por nada não, mas deixamos o mais bacana pro final: esta edição também vai contar com uma galeria virtual reunindo obras de artistas convidados explorando o tema “Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”. E sabe quem vai participar desse rolê?
Ok, bora deixar a resposta pro Batman Zavareze, idealizador e curador do Multiplicidade, que bateu um papo com o I Hate Flash.
O digital sempre fez parte do Multiplicidade nesses 16 anos de festival. Curiosamente, é a primeira vez que o evento vai rolar no ambiente...100% digital. Quais os maiores desafios para montar essa edição em tempos de pandemia?
BZ >> A tecnologia faz parte das investigações criativas do festival desde o seu primeiro ano, mas sempre fomos seduzidos pela universalidade de todas as telas. Gosto da ideia de que TUDO É TELA. Os nossos corpos, as fachadas arquitetônicas, as ruínas, as copas das árvores, o chão que pisamos, a cúpula do Planetário, o telão do cinema, a TV, o celular e o computador são as muitas telas que nos seduzem profundamente. Ficar restrito à mediação de uma única tela é muito limitador, mas é o que podemos fazer agora. Isso é um fato inegociável na pandemia, mas acho ao mesmo tempo um puta desafio reinventar a sensação e a força da presença através de uma tela física que nos separa.
Como surgiu a inspiração para o tema desta edição, "Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”?
BZ >> Em 2019, o Multiplicidade concluía uma trilogia de olhar para dentro, de nossos muitos Brasis. Foram três anos trazendo representatividades que nunca tínhamos trabalhado com potência, dos indígenas, pretxs, artistxs periféricos de diferentes regiões do Brasil. Ao terminar a trilogia do Barulho, da Resistência e dos Brasis, entendi que estávamos começando uma grande jornada sobre LIBERDADE. Foi quando, fuxicando, me reencontrei com Clarice Lispector, dona dessa frase linda: "Liberdade é pouco, o que desejo ainda não tem nome". Adaptei livremente para nossos quereres.
Onde Tom Zé e Clarice Lispector se "encontram"? Na busca pela liberdade?
BZ >> Clarice Lispector é a alma da liberdade e Tom Zé é a resistência poética. Nesse ano de pandemia e pandemônio político, com um desgoverno que odeia quem pensa diferente, precisávamos iluminar as liberdades poéticas, as utopias e as resistências. Ambos são faróis nas artes para seguirmos nas nossas investigações artísticas.
Me conta em detalhes como vai funcionar a campanha para a recuperação do Museu Nacional? O mapping vai ser realizado por quem?
BZ >> Nesse ano de pandemia fiquei na cabeça com alguns lugares potentes que poderiam ser emblemáticos para um mapping histórico, como por exemplo a Fiocruz e o Museu Nacional. Ambos tinham a arquitetura histórica e a ciência envolvidas. Ambos seriam lindos, mas em nosso imaginário sabíamos que o Museu Nacional está lutando desde o trágico incêndio de 2018 com uma campanha mundial de arrecadação de fundos para sua reconstrução (#museunacionalvive). Eles têm sua conta de doação, gerenciada por eles próprios e o que estamos fazendo é trazendo-os novamente para o foco principal do debate sobre qual país queremos em nossos futuros.
A galeria virtual vai rolar no site do Multiplicidade? O que você espera das obras da galera do I Hate Flash?
BZ >> O IHF tem uma linguagem muito peculiar que vai estimular e ajudar a disseminar que LIBERDADE É POUCO, o que queremos e desejamos é algo novo, belo e amoroso. A galera do IHF sempre, sempre mesmo, me tirou do prumo com suas propostas e linguagens autorais ao subverter nossa percepção de uma história sendo contada. Eu desejo que todos voem, se divirtam e nos encham de poéticas para afirmarmos que juntos somos muito mais fortes.
Fala um pouquinho pra gente sobre o Ryoji Ikeda? Por que a escolha dele pro encerramento e o que esperar da sua apresentação?
BZ >> Há mais de uma década venho conversando com o Ryoji Ikeda em festivais pelo mundo e no Brasil, quando ele esteve por aqui. E de alguma forma nunca conseguimos viabilizar suas doideiras. Venho acompanhando suas peripécias e o que mais me seduz é a pesquisa de décadas para a obra DATA VERSE se concretizar. Envolve uma série de dados científicos, creative coder, imagens e uma composição musical sofisticada. Eu vi pela última vez na Bienal de Veneza, em 2019. Ali eu repeti internamente que iria trazer essa obra e aquela exata experiência para o Brasil. É um filme de 11 minutos que na Bienal eu vi em looping por mais de 1 hora. Fiquei chapado e vi mais de 10 vezes seguidas num mantra hipnótico. Essa obra me faz parar, me faz rever uma série de questões porque gera um deslocamento poético no meu corpo, na minha mente e na minha alma.
Pra fechar: fazer arte, mais do que nunca, é resistir?
BZ>> A arte pode nos ajudar a encontrar novas saídas. É preciso resistir. Resistir para existir. No fundo, precisamos hackear tudo que estamos viciados a fazer e não tem a menor importância. Temos que voltar a sonhar, a voar e ter utopias no campo poético da imaginação. Nesse ponto a arte vive e não nos deixará sucumbir. A arte vai ficar entre nós, eles passarão.
A liberdade pelos olhos da galera da firma
O que a gente quer ainda não tem nome, mas é algo parecido com nosso ideal de liberdade, né? Ela às vezes só muda de nome, como bem prova o Schlaepfer: “Depois de escrever cinco parágrafos e não estar nem na metade do que pensei, acho melhor reduzir à primeira coisa que veio na cabeça no dia de hoje: VACINA!”.
Separamos abaixo alguns relatos (profundos e reflexivos, tá?) dos nossos fotógrafos sobre o tema, confere aí!
Derek Mangabeira
“Acho que liberdade tem a ver com ausência de muros. As imagens que escolhi propõem um pouco essa ausência, na medida em que inserem o corpo preto no centro das belas artes”.
Fernanda Tiné
“Gosto muito da definição da Nina Simone, que diz: liberdade é não ter medo. Meu trabalho tenta retratar como seria minha vida assim, livre, sem medo”.
Helena Yoshioka
“Quando eu penso na ideia de liberdade, penso que ela é um processo, não um lugar em que se chega. A liberdade exige confiar nesse processo, se entregar sem necessariamente ver o que tem do lado de lá. Liberdade é um movimento, um mergulho”.
Filipe Marques
“Liberdade é uma das iscas nos anzóis na frente das esteiras de nossas vidas. Talvez precisemos parar de correr atrás de um ideal de liberdade, e perceber que ela faz parte de nós agora. É preciso sentir a liberdade que nos habita.”
Flora Didonet
“Pra mim, o ideal de liberdade seria uma forma de vida em que a capacidade de se conhecer (sem as pressões, expectativas, padrões e tudo mais que nos molda) fosse intrínseca ao ser humano”.
PROGRAMAÇÃO
FESTIVAL MULTIPLICIDADE 2021
21.1.21 inicio às 20h
20h10 - Daito Manabe (JPN)
20h32 - Tom Zé (BA) com mapping do Museu Nacional (RJ)
22.1.21 inicio às 20h
20h09 - Uyra Sodoma (AM)
20h28 - HEXORCISMOS AKA Moisés Horta Valenzuela [MEX]
20h43 - Dillon Bastan [EUA]
20h57 - Tornike Margvelashvili AKA Mess Montage (GEO)
21h11 - Renato Vallone (RJ)
21h16 - Carlos do Complexo (RJ)
21h46 - Novíssimo Edgar (SP)
23.1.21 inicio às 20h
20h07 - Hyewon Suk [COR]
20h12 - Genesis Victoria [CHI]
20h17 - Bianca Turner (SP)
20h29 - Ana Frango Elétrico + Fernanda Massotti (RJ)
20h44 - Cashu & Mari Herzer (SP)
20h51 - L_cio (SP)
24.1.21 inicio às 17h
17h12 - Ryoji Ikeda (JPN)
Transmissões nos dias 21, 22, 23/1 no canal do Youtube do Festival Multiplicidade a partir das 20h. Dia 24/1 às 17h - numa única apresentação do artista japonês Ryoji Ikeda com a obra DATA-VERSE 1.
*Pedro Willmersdorf é jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), hoje repórter do Jornal O Globo/JornalExtra/Revista Época, e com passagens pelo Jornal do Brasil, I Hate Flash e PartyBusters.