Deize Tigrona está de volta
Batemos um papo com a MC que é ícone do funk e do movimento feminista
Publicado em 06/2016
Deize Tigrona é uma personagem que não pode faltar em qualquer antologia que conte a história do funk no Rio de Janeiro. Nascida em São Conrado e criada na Cidade de Deus, a MC ganhou notoriedade na cena no final dos anos 1990 e chamou atenção da mídia com a música “Injeção” (aquela do “Ai, doutor, que dor / Ai, médico, que dor”). Hoje, ela tenta retomar a carreira de cantora e não tem vergonha de dizer que superou uma depressão e trabalha como gari para sustentar a casa, enquanto dá duro para voltar ao mundo da música.
Após shows na Europa e parcerias com os artistas internacionais Diplo, Buraka Som Sistema e Tigarah, a cantora passou por momentos difíceis, encarou uma depressão e se afastou dos holofotes, casos que pensa em contar em um futuro livro. Um de seus últimos lançamentos havia sido a faixa “Prostituto”, em parceria com o paraense Jaloo.
Atualmente, o nome de Deize é lembrado como um dos primeiros ícones feministas do funk carioca. Ela foi uma desbravadora desse universo machista que, na década de 1990, era tomado pelos proibidões que degradavam a imagem da mulher. E é nessa onda girl power que a cantora busca retomar a carreira de maneira mais firme. O primeiro single de sua retomada se chama “Madame”, faixa produzida pelo gaúcho Chernobyl, da banda Comunidade Nin-Jitsu, e lançada pelo selo Funk na Caixa, em parceria com o coletivo Heavy Baile. O I Hate Flash bateu um papo com a Deize e fez um ensaio arrasador com ela, no clube Fosfobox, em Copacabana, com direito a looks elaborados pela equipe da marca Ttrappo, que reúne trabalhos de diferentes origens étnicas e sociais.
I Hate Flash: Qual foi a principal inspiração para sua música nova, “Madame”?
Deize Tigrona: “Madame” é uma resposta para a hipocrisia e o julgamento dessa galera “bacaninha” que diz que eu só canto música de putaria. As pessoas apontam o dedo, mas não veem que, quando fazem isso, apontam três dedos para si mesmos. Chegaram a dizer que eu não estava na mídia porque não andava mais de avião. As pessoas com as palavras negativas delas… Tentaram me queimar. Isso me revoltou e me motivou a escrever essa música. Eu nunca tive mega-empresário e levei meu som para a Europa na cara dura. Hoje eu trabalho como gari. Não fiz meu nome com a ajuda de terceiros. Conquistei meu espaço fazendo contatos. Tem um trecho da música que eu digo: “O mundo não tem dúvida/ Quem controla é a tarja preta/ A cocaína é branca, e o ouro é a cerveja/ O café não vale nada, tu sabe como é/ Quem manda nesse mundo é os três poderes da mulher”.
A faixa que você está lançando é uma parceria com o Chernobyl, conhecido por mistura a música eletrônica com o funk. Qual a influência da música eletrônica no seu trabalho hoje?
Hoje é o meu conhecimento total. Muitos que criticaram meu som, quando eu comecei a misturar o funk com o eletrônico, hoje estão fazendo igual. Isso é o eletro-funk. É muito mais corajoso até mesmo do que bandas de rock fazem, independentemente se é pop ou não. Dez anos atrás, eu já dizia que o funk ia continuar igual com relação à letra, mas que a batida ia mudar. Não estava certa?
Você já teve uma música sampleada pela M.I.A., duas músicas assinadas junto com o Diplo, já fez parceria com um grupo português e também já trabalhou com uma artista japonesa. No meio disso tudo, como você vê o funk carioca hoje no mundo?
Hoje existe um abraço mais forte, um abraço mais apertado. Eu consegui fazer amigos ao redor do mundo. Gostaria que houvesse mais ainda essa união do funk.
Acredita que o estilo sofra menos preconceito lá fora do que aqui?
Com certeza! Cara, vou te falar uma coisa... As minhas músicas tocam tudo lá fora, todas estouradas e sem edição. Tocam mais lá fora do que aqui. Meus papéis de direitos autorais são todos de fora. As rádios aqui não tocam funk, e eu tenho nome, fama e música. É necessária uma união maior da galera do funk para isso mudar. Tenho muitas músicas para tocar aqui em rádio.
Você passou um tempo longe dos palcos, e nesses anos, acabou surgindo a galera do “funk ostentação”, que acabou ganhando muito dinheiro com a música. Na época em que estava em atividade, você conseguia viver somente da música?
Quando eu comecei, eu conseguia viver só de música sim, mas não fiquei rica. Não tinha produção, empresário. Ganhei dinheiro, mas não saí da Cidade de Deus.
Você acredita que o funk passou por um processo de “gourmetização”, que tornou o estilo mais aceitável para o grande público? Atualmente, até algumas festas chiques da cidade tentam emular o “tema favela”.
A letra continua igual! Acho aceitação uma coisa ótima. Antigamente, talvez, não fizesse tanto sucesso pelo monopólio das produtoras. Hoje, as pernas estão mais abertas.
Como uma artista que veio de uma área pobre do Rio, você acha que hoje existe um funk para quem é rico e outro para quem é pobre?
Hoje existe funk pra geral. Ele ganhou força por si só.
Seu nome voltou a ser muito citado pelo impulso que o movimento feminista ganhou nos últimos anos. Nos anos 1990, quando você surgiu, o conceito de feminismo era presente na sua vida?
Isso vem lá de trás, da história dos “bailes de briga”. Um dia, o DJ Duda chamou quem quisesse para subir no palco e ir para o microfone cantar uma música. Ele disse que, se fosse boa, ele iria produzir. Eu gostava muito de ver essas sacanagens que passavam na TV... “Bonitinha, mas ordinária”, “Hilda Furacão”. E eu queria cantar de qualquer jeito. Na época, já ouvia rap e fiz uma música chamada “Hilda Furacão”, pensando nos bailes de briga. Cantei, o Duda gostou, produziu a música e começou a tocar nos bailes. Na letra eu falo: “Não somos Hilda Furacão, mas seu macho vamos comer/ Esse é o Bonde do Fervo, lá da Praca do Apê”. Umas meninas acharam que a música era para elas e que existia mesmo um Bonde do Fervo. Então criaram o Bonde das Bad Girls, e as meninas da minha área aproveitaram a letra para criar o Bonde do Fervo. Daí tudo começou… Fazíamos o corredor nos bailes de brigas, um bonde contra o outro, e as meninas cantando. Desse cenário surgiram vários grupos. A gente não pensava em conceito, cantávamos por caixa de cerveja, e isso começou a se expandir. Caetano Veloso chegou a levar o Bonde do Faz Gostoso no programa "Domingão do Faustão" até. No início, eu ficava com vergonha de certas letras que eu escrevia. Pensava: “Nossa, letra pesadona”. Mas as pessoas falavam: “Nossa, ela é foda, ela é foda”. Não existia letra que falava esse tipo de coisa naquela época. Não existia um conceito de feminismo, as coisas só foram acontecendo.
Você acredita que possa haver “funk de putaria” sem ser machista?
O que acontece com o lance do feminismo e o machismo é um lance político. É difícil não associar uma coisa à outra. Quando fiz “Madame”, me ligaram ao feminismo, e isso deixa o movimento mais forte.
Ouvi dizer que você tem planos para o lançamento de um livro. Que assuntos pretende abordar?
O meu intuito era fazer um livro abordando tudo que eu já passei. A história da Deize por trás da artista. Nesses últimos anos eu passei por uma depressão, adotei minha sobrinha, perdi a minha avó, acabei de conhecer meu pai, agora com 32 anos, estou trabalhando na Columrb, mas tô aí.
Podemos dizer que não poderia haver momento melhor para um retorno seu?
Com certeza. Eu estou com uma letra fodástica que quero lançar em parceria com o DJ Gork, do Bonde do Rolê. Procuro visibilidade, quem sabe um novo videoclipe. Montei um estúdio aqui na minha casa. Pretendo continuar minhas parcerias com o Chernobyl.
Quais são os planos para o resto do ano?
Para 2016, eu quero definitivamente seguir minha carreira, sem parar. Talvez montar um projeto com umas outras duas MCs das antigas. Agora sei quem é quem. Vamo ver!
Styling: Rafael Joaquim e Allan Machado
Make: Artur Figueiredo
Agradecimentos especiais a Fosfobox, Ttrappo, Aro Swimwear e Nike