De Manaus a Maués
Seis dias de navegando pela Amazônia para descobrir a rota do guaraná
Publicado em 12/2016
Chegamos em Manaus na hora do almoço de uma terça-feira, eu, que nunca achei que fosse conhecer aquelas bandas, estava batendo cartão naquela terra maravilhosa pela segunda vez. Agora, a convite do Guaraná Antarctica para conhecer o trajeto que o guaraná faz até virar o refrigerante, em uma viagem de seis dias. Passamos rapidamente pelo Mercado Municipal assim que chegamos, lá eu conheci várias pequenas farmácias naturais - incrível como, morando em São Paulo, não fazemos nem ideia do conhecimento que temos. Tinha óleo para curar de tudo: frieira, cólica, dor nas costas etc. Tenho o péssimo hábito de não andar com dinheiro físico, não comprei nada, mas consegui fotografar e aprender um pouco enquanto a galera comprava as brusinha. Demos uma passada super, mas super rápida no Teatro Municipal, tão rápida que nem vou comentar aqui - no tempo de escrever essa frase eu já tinha terminado o passeio.
Chegamos ao porto. Nossa casa pelos próximos seis dias estava ali, no meio do rio. Nós andando pela areia, com malas, equipamento, mosquitos devorando geral - a maré estava baixa, então tínhamos que ir de barquinho. Nessa hora pegamos o primeiro dos infinitos barquinhos que estariam por vir. Por dentro, o barco era super maneiro, chique de verdade. Balançava muito aquela parada, claro que menos que outros barcos que já andei, mas tentar fotografar olhando muito pelo visor era enjoo na certa.
A viagem até Maués durou 18 horas. Dormir no barco fez muito bem para meus problemas de sono, acho que era o balanço que me ninava. Maués nos recebeu com uma chuva torrencial de 10 minutos, mas foi um puta hadouken de água que deu o primeiro ruim da câmera na viagem. Logo depois da chuva parar e irmos para uma sala fechada, a câmera começou a dar loucura, eu apertava o botão de play e ele ligava o liveview, botão de ok não funcionava e quando eu abria o menu, ele ficava andando infinito para esquerda. Solução: uns tapas, chacoalhadas e reza braba. Funcionou. E pude tirar umas fotos pelas ruas de Maués.
Tenho um lance com fotografar ruas e pessoas nelas, tenho um fascínio por registrar, ali, um momento banal num formato bonito de se ver. Maués foi maravilhosa para isso, as cores verdes em todos os cantos - acho que o guaraná tem dedo nisso. A cidade é praticamente movimentada na base do guaraná. Nessa viagem, eu conheci desde o cara que faz a muda da árvore, o produtor local que mora ali no meio do mato, até o cara que cuida do estoque dos grãos torrados, e geral tem um orgulho bonito de se ver, falam e fazem questão que provem do seu produto. A galera de lá costuma tomar guaraná todo dia de manhã, para começar o dia com energia.
Na festa do Guaraná, que rola na praia da Ponta da Maresia, em Maués, eu vivenciei experiências única. Rolou o concurso da Rainha do Guaraná, um evento bem importante para galera local, com torcidas gigantes, bandeiras e tambores. Eles ovacionavam a rainha do ano anterior com tanta energia que até assustava, coisa bonita de se ver.
Nessa festa, também rolou a apresentação da lenda do guaraná, uma história muito bonita sobre como os olhos do Kurumin se tornaram a fruta. Mas eu não imaginava que nessa noite eu teria uma treta por causa dos olhos do Pajé (esse cara aí com roupa de cobra e cheio de dentes no rosto). Estava eu ali no canto do palco, fotografando e me emocionando com a apresentação, olho para frente e o “Pajé” está vindo na minha direção, fazendo um sinal com a mão como se estivesse pedindo algo. Eu estendo a minha imitando a dele, uma lente de contato é depositada na minha mão, ali, sem aviso nem nada. Antes de eu reagir ele já estava enfiando os dois dedos no próprio olho e tirando mais uma lente e dizendo: “Coloca num copo de água por favor!”. Ele voltou para a peça, eu olhei para o lado, vi um “índio” e entreguei os olhos do Pajé, pedi pra colocar na agua e tudo mais. Continuei fotografando a peça até o final, até virei migo da equipe e fiz aquela foto clássica do artista no palco com a galera no fundo (ficou horrível). Dai o Pajé pergunta: “Cadê minhas lentes, mano?”. Enquanto eu respondia essa pergunta, uma parte do meu cérebro já tinha feito um scan geral da situação e me dizia em sinal de alerta: “Ahhh, eu entreguei para um índio!” (SÓ TEM INDIO!!!! TODOS COM A MESMA CARACTERIZAÇÃO!)
À minha volta, todos pareciam iguais: o figurino era igual para todos os "índios" e, até aquela hora, eu não tinha percebido que todo o elenco estava de peruca. Porra, tantos cabelos com personalidade - tinha até um escrito “i love you” na lateral direita (se fosse esse índio eu lembraria)! Mas não, eu tinha entregado para um índio de peruca, igual a todos eles, e o Pajé já estava bolado comigo. Eu comecei a ficar bolado com ele pelo barraco e situação. Ele disse que as lentes eram emprestadas, apontou para a amiga que era a dona das lentes, uma drag linda de quase dois metros de altura. Digo um “oi” simpático para ela e recebo o mesmo de volta – UFA!
Tomo a atitude que deveria ter tomado desde o início e pergunto pra alguns dos não-mais-tão-índios que estão à minha volta com um certo tom de desespero: “foi pra você que eu dei as lentes do pajé?!” Com a confirmação de “não”, eu peço para repassarem essa mensagem porque, com fé, iríamos achar. Eis que alguém grita um nome, até agora não tenho certeza de qual era, e achamos o menino que pegou as lentes comigo (o cabelo dele embaixo da peruca era platinado, porra!). Ele confirma que entreguei pra ele, disse que colocou numa garrafa de água para não ressecar, como orientado pelo seu amigo oriental muito simpático (vulgo eu), mas, logo em seguida, ele emenda um combo de desgraça e diz: “jogaram a garrafa fora”. Simples assim. Estava no palco, não está mais. Tive vertigens, a sensação de ter feito algo muito ruim para alguém sem nem ter ideia foi horrível. Olhei para o chão. Garrafas de água. Peguei uma, bingo!: olhos vermelhos boiando lá dentro. Entrego a garrafa para o Pajé e saio andando enquanto acontece uma explosão ao fundo: buuuum!
A última história foi um desespero proporcionado pelo show do Gusttavo Lima. Era a última noite em Maués, geral feliz, fim de viagem, cliente contente e satisfeito, só alegria. O DJ tinha avisado sobre os papeis picados e fogos que seriam soltos na parte da frente do palco - poxa vida, eu já fiz vários festivais, erro.
Começou o show com uma música que falava incansavelmente “EU VOU MORRER”. Isso, combinado com as explosões dos papéis picados, o DJ tinha razão, era bruto e vinha direto na nossa cara, já que estávamos na frente do palco. Mais explosões. Olho para trás e uma senhora estava sendo tirada da grade. Colocaram ela do meu lado. Mais papel, mais “EU VOU MORRER”, a senhora desmaia do meu lado. Mais papel, “vou morrer”, tiazinha no chão, morrendo, explodindo, señora, socorro!!! A senhora e todos nós conseguimos sair de lá ilesos no final. Na verdade, a senhora até subiu no palco e abraçou o ídolo um pouco depois de quase morrer - vencer!
No último dia, fomos conhecer a casa do Natanael. O nome dele está nas latas do guaraná que estão circulando agora, elas dizem que são as mãos dele que fazem a parada acontecer. Em uma casa supersimples, moram ele, sua mulher e dois filhos - o resto da criançada estava lá pra comer melancia, um deles andou duas horas pelo mato para isso: melancia.
As crianças estavam assistindo uns vídeos baixados no celular, riam um bocado e quase não ligavam para mim lá fotografando. Natanael estava torrando as sementes de Guaraná. O lugar era muito quente, ele já estava mexendo fazia uma hora, mas, para ficar pronto, ainda faltavam cerca de quatro horas ali no fogo, mexendo sem parar, trabalho pesado e braçal.
Lá, me conectei com uma vida simples, sem luxos nem nada sobrando. Voltei naquela noite aproveitando a vista absurda das estrelas que tínhamos enquanto navegávamos por 20 horas até Manaus. No barco, navegando pelo rio, pensei que o Natanael tem aquele céu estrelado todas noites. Deu uma saudade de casa.