A mídia e o corpo gordo
Uma história que (ainda) não deu certo
Publicado em 06/2022
Antes de começar eu queria que você se fizesse 2 perguntas:
1. De todos os filmes, séries e desenhos que você já assistiu, quantos personagens gordos você consegue se lembrar?
2. De todos os personagens gordos que você se lembra, quantos deles são protagonistas ou não seguem algum estereótipo?
E se eu te disser que até poucos anos atrás eu não havia me questionado sobre isso? Para mim, que sou gordo maior, era completamente normal não me ver representado, afinal, somente pessoas dentro do padrão eram exibidas na mídia. A pele deveria ser branca, o corpo deveria ser magro e o cabelo liso. Eu acreditava, realmente, que eu não deveria estar ali. Até que cerca de cinco anos atrás eu entendi o que era a gordofobia, e compreendi que o que eu já havia passado não era sobre mim, mas sim sobre todas as pessoas gordas ao redor do mundo que são atacadas, invisibilizadas e perdem seus direitos diariamente somente pelo tamanho dos seus corpos.
Hoje eu consigo entender que o fato de não me ver representado contribuiu para que eu me sentisse insignificante, que me ver sempre sendo tratado de modo depreciativo ou seguindo estereótipos de desleixado, engraçado, desastrado, entre outros, fizeram com que a autoestima positiva passasse longe daqui. Eu me via como, literalmente, "motivo de piada". E eu cresci, me construí e vivi assim por 25 anos da minha vida.
Eu não consigo me lembrar de filmes com protagonistas gordos onde o corpo não fizesse parte da trajetória do personagem, onde não houvesse uma guerra pela autoestima, pela aceitação de si mesmo ou não houvesse o humor autodepreciativo. Eu sinto falta de ver personagens gordos somente existindo, podendo passar por um problema ou outro relacionado à gordofobia, porque não adianta invisibilizar os problemas que estão presentes na vida de todas as pessoas gordas, mas que a história desses personagens não se baseiem neles ou em seus corpos. Eu quero ver personagens gordos seguindo a trajetória da história.
E quando digo personagens gordos, falo especificamente sobre pessoas gordas ocupando esses lugares e trazendo essa representatividade. E não o tal do fat suit, onde pessoas magras usam vestimentas, enchimentos e truques de maquiagem para se parecerem com pessoas gordas, como acontece por exemplo nos filmes "O Professor Aloprado", "Hairspray" ou na personagem Dona Redonda na novela "Saramandaia".
No final de 2019, como conclusão da minha graduação em publicidade e propaganda, produzi um documentário sobre a falta de representatividade e o uso de estereótipos relacionados ao corpo gordo, e quais os reflexos na nossa sociedade. Estudando sobre o assunto, realizei uma pesquisa com 500 pessoas onde 93% das pessoas gordas não se sentiam representadas em filmes, séries ou programas de televisão, em contraponto, 60% das pessoas magras se sentiam. 96% das pessoas percebiam o quanto os personagens gordos eram cercados de estereótipos, e 99% acreditavam no quanto esses estereótipos influenciam negativamente no imaginário social acima do corpo gordo. 88% das pessoas gordas admitiram já terem se sentido constrangidas com supostas "representações" do corpo gordo e 92% percebem a ausência de protagonistas gordos como uma questão gordofóbica na indústria do cinema e da publicidade. E por fim, 98% dos entrevistados acreditam que a inclusão de protagonistas e personagens gordos que não sigam estereótipos e que não tenham suas jornadas influenciadas por questões com seu corpo, influenciaria positivamente na imagem relacionada ao corpo gordo, melhorando assim, a questão da gordofobia social.
Falando sobre filmes e séries onde protagonistas gordos quebram estereótipos, queria trazer aqui três indicações de filmes e séries onde o corpo não é necessariamente uma questão para as personagens gordas. A primeira delas é o filme Fora de Série, a comédia conta a história de duas amigas, Molly e Ammy, que quebram os estereótipos acima do corpo gordo e do que chamamos de "nerd". Ao entender que a diversão é um papel fundamental para a época do colégio, e não apenas os estudos, elas resolvem quebrar suas barreiras e intensificar suas experiências no ensino médio. É um filme super leve e divertido de assistir.
A segunda indicação é a minissérie A vida e a história de Madam C.J. Walker, que conta a história da primeira mulher da América a ficar milionária a partir de um produto de beleza. Além da maravilhosa Octavia Spencer como protagonista, são abordadas questões como feminismo, racismo e sobre a importância de acreditar firmemente em seus objetivos.
E por último, mas não menos importante, a terceira indicação é a série Dietland, interpretada pela Joy Nash. A série, diferente das outras, tem o corpo da atriz como questão, porém em caráter de empoderamento. Ela se inicia com a protagonista se preparando para fazer uma cirurgia bariátrica, até que ela começa a se questionar sobre o patriarcado e a crueldade do padrão de beleza, e segue em uma jornada incrível de autoconhecimento e amor próprio. Particularmente, como pessoa gorda, a série me trouxe vários gatilhos que somente quem já passou por essas situações vai conseguir pescar, mas acredito que para o público em geral, talvez essas cenas não fiquem tão em evidência. É uma série que com certeza eu indicaria para todo mundo assistir, mas talvez em pequenas doses.
Espero e luto, com toda a minha força e esperança, para que a gente tenha uma lista enorme desses filmes nos próximos anos, e veja cada vez mais representatividade para pessoas gordas e para pessoas de qualquer etnia, condição ou cultura que não seja realmente representada. A gente costuma estranhar o que não vê, então que a gente comece hoje, pra quem sabe no futuro, nossa existência seja normalizada. Afinal, existimos. E é exaustivo demais ter que lutar diariamente pelo direito de simplesmente existir.
Contratem pessoas diversas, dêem voz, segurem nas mãos e lutem junto. Só assim a gente vai conseguir transformar o nosso mundo em um lugar melhor e mais justo. Btw, fora Bolsonaro.
______
Créditos imagens (em ordem):
1 a 7: Malu Jimenez por Ju Queiroz
8 e 9: Amanda Vieira, Di Mothe e Stella Nunes por Dave Avigdor
10 a 12: William Kahlo por Derek Mangabeira
13 a 16: Documentário "Gordo" de Dave Avigdor
17: Filme "Fora de Série" de Olivia Wild
18 e 19: Série "A Vida e História de Madam C.J. Walker" de Nicole Asher
20 e 21: Série "Dietland" de Marti Noxon